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2 O SER HUMANO E A ALTERIDADE SOLIDÁRIA

2.2 Transcendência: encontro e ética

2.2.1 O éthos do futuro

A humanidade atravessa o percurso da vida na imensa aventura de encontrar o outro, para recuperar o sentido do futuro como esperança, o que significa romper com o pensamento idealista moderno para entrar na dinâmica do éthos.128 Há um esforço na mediação do dualismo que aparece, entre o ser e o nada, o humano e o divino, a razão e a fé, o bem e o mal, no intuito de encontrar o éthos do existir humano. Ao delineá-lo é necessário compreender o significado da palavra éthos como capacidade ética e responsável da estrutura humana. A questão do éthos configura uma atitude de responsabilidade, cuidado com a vida e com os seres que compõe o universo. A lógica do pensamento duplo constrói-se num contínuo modificar-se, entendida como releitura do próprio conhecimento humano e acolhida nas diferenças que emergem da modernidade.

Forte129 resgata em Mancini, na obra Teologia do duplo pensar130, as memórias do

Ocidente que aborda a duplicidade teológica como outra gênese do encontro, que favorece a estrutura do pensamento, no domínio exercido pela hermenêutica. Essa complexidade

127FORTE, Bruno. Um pelo Outro, p. 172-173.

128A expressão éthos manifesta a forma interior da moral humana em que se realiza o próprio sentido do ser. “Cremos, contudo, que a categoria do éthos coincide com a moralidade, se esta designar o estado ou a situação moral da pessoa. [...] o éthos é aquilo que dá unidade à vida moral. Diante duma ética que diversifica muito os conteúdos e as instâncias morais, é necessário dar importância a um tipo de moral unificadora, que constitui a personalidade ética. Contudo, é necessário ter em conta que a personalidade moral não se dá duma vez; vai acontecendo pouco a pouco.” (Cf. VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes: moral fundamental. São Paulo: Santuário, 1978. v.1, p. 487).

129FORTE, Bruno. Um pelo Outro, p. 159.

130Compreende-se aqui a expressão do duplo pensar: “a dura verdade dos duplos sentidos pode ser elevada à estrutura do pensamento, como aquela que não possui mais um valor e um ato únicos, mas sempre se rompe em valores duplos que não necessariamente revelam duplicidade, mas dualidade, falta de olhos simples, transparentes, necessidade séria de levar em conta a simplicidade das coisas.”(Cf. MANCINI, I. Teologia Dei doppi pensieri. In: Essere Teologi Oggi; dieci storie. Casale Monferrato: Marietti, 1986, p. 91s).

teológica refere o éthos na dialética da fé e da razão. Esse dualismo é narrado de um lado, numa visão grega com todo seu arsenal de conhecimento, voltada para a perspectiva ontológica.131 De outro lado, a visão judaico-cristã se inspira nas questões do ser humano e nas relações de convivência com a terra. Na junção dos diferentes jeitos de pensar, a lógica dos pensamentos duplos constrói-se na ação hermenêutica. Podendo emergir no mundo da identidade, ao considerar os fundamentos: na linguagem a riqueza, na oposição o limite e na duplicidade o escândalo.

A questão do éthos do futuro inclui uma complexidade teológica, envolvendo as pessoas numa nova maneira de ser e viver. O éthos não é um valor único, rompe-se em valores duplos numa espécie de fidelidade ao ser humano e a própria terra. Forte coloca-se em diálogo com Mancini, e o reconhece como um defensor da epistemologia teológica, o que assinala toda sua luta humana e espiritual ao delinear as tendências para o éthos do futuro.

Se quiserem delinear, realmente possíveis convergências para um éthos do futuro, que proteja a dignidade do humano e nos defenda do risco sempre iminente da barbárie, a linha do conceito, empenhada em fazer coexistir no mundo vida jurídica e vida moral deverá juntar-se à linha da esperança, aberta para reconhecer no rosto dos outros a medida com a qual se deve analisar a justiça e o bem. 132

A linha do éthos, entendida como estilo vital da humanidade, situa-se numa visão antropoética, capaz de reconhecer, em todo ser humano, o sujeito responsável pelo seu lugar no universo ao alcance do transcendente. Compreende-se como uma forma interior da moral que pondera as falsas realizações não autênticas das realidades humanas e, ao mesmo tempo, configura um ideal normativo para diferentes realizações que perpassa a consciência do próprio ‘eu’ pessoal e coletivo.

O desafio ao qual se abre o éthos do futuro enfrenta os naufrágios dos vários totalitarismos ideológicos, as crises de incertezas, o ateísmo moderno, no qual o mundo é privado de seu caráter sagrado e religioso. É inevitável resgatar a soberania do éthos a partir do outro, fundado no direito e na justiça. Nesse sentido, a primeira ideia chave do éthos inclui a palavra ‘nómos ’que significa ‘designar’. Primeiramente, exprime uma norma vigente, que

131Entende-se aqui a ontologia como determinação do sentido do ser, o que permite questionamentos ao próprio ser humano. Em Heidegger “a compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da pré-sença. [...] Ser ontológico, ainda não diz aqui elaborar uma ontologia. Por isso, se reservarmos o termo ontologia para designar o questionamento teórico explícito do sentido do ser, então este ser ontológico da presença deve significar pré-ontológico. Isso, no entanto, não significa simplesmente sendo um ente, mas sendo no modo de compreensão do ser.” (Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e o Tempo: pensamento humano. Petrópolis: Vozes, 1988, p.38).

regula as relações fundamentadas no respeito a cada um e a tudo que indica ordem, costumes e o próprio habitat. Voltando-se também para a objetividade da justiça. Uma segunda ideia centraliza-se na ‘torah’, força presente na Palavra, motivada pelo emergir do Eterno no tempo. A torah traz consigo um apelo negativo, marcado pela idolatria e uma força positiva que liberta e humaniza no cumprimento da aliança. Em última análise refere-se a ‘iustitia’, significando a justiça que vem de Deus. Uma justiça impregnada da solidariedade humana que contempla os menos favorecidos da história. Forte remete ao éthos pronunciado na história como modo de agir dos redimidos.

A verdade do amor salvífico de Deus motiva a exigência do amor operoso para com o próximo: indicativo teológico que fundamenta o imperativo moral; como a raiz e a fonte do novo agir dos redimidos: a verdade que salva é o éthos, ‘morada’ acolhedora e vivificante no mistério da autocomunicação divina e ‘costume’, compreendido como comportamento habitual e constante, que se origina desta experiência. 133

A experiência do éthos na autocomunicação divina caminha em direção ao êxodo humano e neste vasto horizonte pergunta-se: é possível uma justiça que enlaça um viver juntos com os outros? Pode-se repensar relações solidárias a partir do éthos? Qual a relação do éthos com aBoa Nova do Evangelho? A estes questionamentos fica o desafio de recuperar o éthos, como novidade ética, na qual se abrem possibilidades de salvar a terra e cuidar da humanidade. A responsabilidade pela vida está indissoluvelmente ligada aos problemas que afligem a sociedade contemporânea. A humanidade é chamada a contribuir para uma nova ordem mundial, favorecendo aos princípios da justiça e da solidariedade. Nesse evento, emerge um novo éthos, uma revolução possível em tempos de globalização.134 O éthos da histórica alcança o mistério e faz a experiência salvífica do Eterno que vem ao encontro para revelar o grande mandamento do amor.

É na eloquência da cruz que o Filho de Deus deseja fazer das relações humanas, o lugar da convivência solidária, no possível éthos do futuro. “Essa palavra, última e primeira, essa língua na qual se diz um-pelo-outro da maneira mais autêntica e realizadora em todas as formas da comunhão dos rostos, é a palavra ‘amor’.”135 Assim, o éthos do futuro é a ternura que tem cuidado pelo outro, no gesto amoroso, que protege a vida. É, então, no amor que o

133FORTE, Bruno. L’ Eternità nel Tempo, p. 246.

134No paradigma civilizatório urge o entendimento do éthos como urgência transformadora. “Por éthos entendemos o conjunto das inspirações, dos valores e dos princípios que orientarão as relações humanas para com a natureza, para com a sociedade, para com as alteridades, para consigo mesmo e para com o sentido transcendente da existência: Deus.” (Cf. BOFF, Leonardo. Ethos Mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 17).

advento se revela no caminho da salvação, um peregrinar atento, capaz de perceber no Outro, a fonte de toda beleza.