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A vinculação na adolescência

1. A transferência das componentes ou funções de vinculação: O modelo de Cindy Hazan

1.1. Construção de um modelo de transferência

1.1.2. Desenvolvimentos empíricos: Cindy Hazan e Debra Zeifman

Os desenvolvimentos posteriores da teoria da transferência retomam em Hazan e Zeifman (1994, 1997, 1999) o conceito de figura de vinculação discriminada definido pelo trabalho de Bowlby (1969/1990) e de Ainsworth (1967, 1982). Trata-se da proximidade preferencial a uma única figura entre as que estão disponíveis ao redor de uma criança, à qual Bowlby chamou monotropia (vide Bowlby, 1958, p.370) e, que constitui o fundamento à construção de uma rede hierárquica de vinculação que inclui a partir da adolescência pelo menos o par amoroso:

“(…) Uma vinculação permanece frequentemente por grande parte do ciclo de vida. Embora durante a adolescência as vinculações iniciais possam atenuar-se e serem suplantadas, e em alguns casos substituídas por novas, as vinculações iniciais não são facilmente abandonadas e habitualmente perduram. (…) A construção de um laço é descrita como apaixonar-se, manter um laço como amar alguém, e perder um parceiro como fazer o luto a alguém. (…) Em sequência do que tem vindo a ser afirmado, o indivíduo que exibe comportamentos de vinculação é habitualmente referido como criança e a figura de vinculação como mãe. Isto acontece apenas porque este comportamento só foi até ao momento estudado em pormenor em crianças. O que se afirmou, é contudo aplicado também a adultos e a qualquer pessoa que esteja a agir como figura de vinculação – frequentemente um cônjuge, por vezes um progenitor e com maior frequência do que se possa supor uma criança.” (Bowlby, 1977a, p. 203-204).

O desafio de Hazan e Zeifman foi justamente tentar especificar de que modo no contexto de uma relação de pares, cada um pode ascender ao lugar cimeiro da hierarquia de vinculação, lugar até aí onde apenas se encontram as figuras parentais. Tendo em conta que entre o final da infância e ao longo da adolescência as relações entre pares podem ser consideradas próximas, com exibição de comportamentos similares aos de Porto seguro, de tal modo que no fim da adolescência os pares transformam-se nas principais fontes de apoio emocional (Furman & Buhrmester, 1985; Hartup, 1983; Steinberg & Steinberg, 1985; Lewis, 1982, citados por Hazan & Zeifman, 1994), tratava-se de encontrar o modo como no período entre a infância e a adolescência as componentes eram transferidas19 dos pais aos pares.

No primeiro estudo, 100 crianças e adolescentes entre os 6 e os 17 anos de idade responderam a uma entrevista de avaliação da utilização de cada elemento da sua rede de vinculação, tendo em conta o recurso preferencial para cumprimento das quatro funções de vinculação. As respostas foram categorizadas em duas classes bastante amplas: Pais (incluía mãe, pai, madrasta, padrasto e avós) e Pares (incluía amigos de ambos os géneros e pares amorosos). Os resultados apresentados tiveram em conta apenas a idade.

Na Procura de proximidade os jovens eram orientados aos pares em qualquer um de

quatro grupos etários (6-7, 8-10, 11-14 e 15-17 anos), sendo este um processo em crescendo com a idade para os pares e decrescente para com os pais. No recurso para a componente Porto seguro, os resultados verificaram que os pais eram as figuras mais solicitadas até aos 10 anos de idade, porém a partir desse ponto passavam a ser os pares os mais nomeados com os pais a apresentarem-se cada vez menos como recursos a este nível. Quanto ao Protesto de separação os pais eram os mais nomeados em qualquer uma das idades, porém, existia um movimento crescente do protesto relativamente aos pares, de tal modo que entre os 15 e os 17 anos quase havia um equiparar na menção de ambos.

Finalmente, para a Base segura as figuras alvo de maior designação foram em qualquer idade os pais, contudo, notou-se um pico de recurso entre os 11 e os 14 anos de idade (e correspondente nível menos elevado de recurso a pares), sendo que nos adolescentes mais velhos os pares eram citados de forma muito próxima à dos pais. As autoras verificaram deste modo que a transferência das componentes era efectuada sequencialmente, concluindo que os verdadeiros marcadores da vinculação (a Base segura e o Protesto de separação) existiam apenas nas relações com os pais, nos jovens mais novos e, nas relações com pais ou par amoroso nos adolescentes mais velhos. Embora posteriormente (1997, 1999) as autoras corrijam uma posição inicial que defendia que nos relacionamentos recíprocos, apenas as relações amorosas exibiam as quatro componentes, a primeira formulação referia de facto que apenas quando a componente sexual ou pelo menos de atracção sexual estava presente, as relações de pares podiam ser vinculações

totais20.

O estudo avaliou ainda o tempo necessário para que um laço de vinculação estivesse totalmente formado (ou vinculação total) nas relações adultas, utilizando-se o instrumento WHOTO (Hazan & Zeifman, 1994) aplicado a um grupo entre os 18 e os 82 anos de idade. A investigação centrou-se em três categorias de figuras alvo: pais, amigos e par amoroso.

O WHOTO foi originalmente uma medida de entrevista, onde por cada componente eram realizadas várias questões (De quem gosta de estar próximo, passar tempo, etc.? – Procura de proximidade; De quem não gosta de estar longe, que sente a falta quando há separação, etc.? – Protesto de separação; Quem procura para conforto quando está incomodado, a sentir-se em baixo, etc.? – Porto seguro; Quem sente que pode sempre contar, que sabe estar disponível se necessitar, etc.? – Base segura) sendo pedido a cada respondente que refutasse relativamente a apenas a pessoa - a preferida em cada situação.

Uma conclusão genérica foi a de que as relações amorosas com duração inferior a dois anos eram de qualidade (ao nível das funções de vinculação) substancialmente diversa das que duravam há dois ou mais anos. Assim, quando não existia relação amorosa os adultos orientavam-se aos amigos em termos de Procura de proximidade e Porto seguro, porém, o Protesto de separação era indiferenciado para com amigos e pais. A preferência era pelos pais na componente Base segura. O quadro alterava-se com a relação amorosa. Nas relações com menos de dois anos os pais apenas são procurados mais que amigos ou par amoroso na componente Base segura (nas restantes componentes detêm sempre a menor percentagem de recurso) e os amigos são preferidos na função Porto seguro. Na

Procura de proximidade e Protesto de separação a orientação é ao par amoroso. Contudo,

quando as relações amorosas tinham dois ou mais anos, o recurso a pais e amigos era residual e a figura primária era o parceiro romântico. A Figura 2 representa o modelo.

FIGURA 2.

Representação do modelo de transferência das componentes de vinculação PAIS

PROCURA de PROXIMIDADE PORTO SEGURO

Nota: Presença de vinculações totais apenas nas relações com pais e maior possibilidade nas relações amorosas que nas de amizade; vinculações totais na relação amorosa apenas em relações iguais ou superiores a dois anos de duração.

Embora tenham sido efectuados tratamentos em função do género dos respondentes, não é perceptível se foram encontradas (e não foram reportadas) diferenças ao nível do recurso a pais e pares ou, se apenas se encontraram as diferenças relativas às figuras alvo

irmãos e filhos, o que poderá ter condicionado algumas conclusões.

O estudo foi de facto inovador dado que conseguiu ainda encontrar diferenças ao nível dos estilos de vinculação, concordantes com a formulação de Ainsworth e colaboradores. Os respondentes classificados como Evitantes relataram maior afastamento dos pares, ao mesmo tempo que se mostraram mais prováveis que Seguros ou Ambivalentes em não contar com apoio a não ser de si próprios. Os Ambivalentes relataram recorrer para exercício de funções de apoio, a mais figuras além da amorosa quando comparados aos restantes dois estilos.

Dando ainda mais suporte à pretensão de que as relações de vinculação existem além da infância, as autoras apresentam um paralelo entre comportamentos descritos por Bowlby nas relações mãe-bebé e o que parece acontecer nas relações adultas (Quadro 1).

QUADRO 1.

Modelo do processo de formação da vinculação na adultícia

Fases Não existe ainda vinculação Vinculação

Pré-vinculação Estabelecimento da vinculação Vinculação Parceria por objectivo corrigido Componente de

vinculação*

Procura de proximidade

Porto seguro Ansiedade de separação Base segura

Contacto físico Casual/”acidental” Frequente, prolongado, excitante, “parental” Frequente, menos prolongado, reconfortante Menos frequente, deliberado, específico ao contexto Contacto visual Olhares furtivos,

Miradas intermitentes Frequente, miradas mútuas prolongadas Frequente, menos miradas mútuas prolongadas Menos frequente, miradas mútuas de acordo com o contexto

PROTESTO de SEPARAÇÃO BASE SEGURA INFÂNCIA PARES fase 1 PROCURA de PROXIMIDADE ADOLESCÊNCIA PORTO SEGURO PARES fase 2 PROCURA de PROXIMIDADE PORTO SEGURO PROTESTO de SEPARAÇÃO ADOLESCÊNCIA/ADULTÍCIA PARES/PAR AMOROSO PROCURA de PROXIMIDADE PORTO SEGURO PROTESTO de SEPARAÇÃO BASE SEGURA Duração< 2 anos (parciais) Duração> 2 anos (totais)

(cont. Quadro 1.)

Fases Não existe ainda vinculação Vinculação

Pré-vinculação Estabelecimento da vinculação Vinculação Parceria por objectivo corrigido Conteúdo do discurso Neutro emocionalmente, superficial, auto centrado Elicitar de carinho, revelação emocional

Menos emocional, elicitar de carinho, mais

mundano

Predominantemente mundano

Qualidade vocal Animada, tom mais grave, emocionalmente

modulada

Sons murmurados,

sussurros, calma Calma de acordo com o contexto, tons mais normais e graves

Predominantemente normal

Comer/Dormir Normal Diminuição Quase normal Normal

Representação mental do outro

Modelo geral, expectativas

Em construção Início de estabilização Estabelecimento robusto, facilmente evocado Neuroquímica/

Hormonas

Entradas de feromonas, FEA

FEA, oxitocina (FEA), oxitocina, opióides Oxitocina, opióides

Reacções ao fim da relação Nenhuma/ pequeno desapontamento Letargia, pequena depressão Ansiedade, interrupção de actividades Ansiedade extrema, prevalência de desorganização física e psicológica Nota: * As entradas nesta coluna representam a componente de vinculação acrescentada durante cada fase, de tal modo que as quatro componentes estão presentes na fase final.

Legenda: FEA: Feniletilamina

Traduzido e adaptado a partir de Zeifman e Hazan (1997)

Embora este modelo tenha dado um contributo fundamental ao alargamento da teoria da vinculação, nomeadamente porque se foi recolhendo evidência dos relacionamentos mútuos enquanto passíveis de serem vistos enquanto relações de vinculação, não deixaremos de discutir opções que nos parecem ter obscurecido um pouco a teoria.

Este modelo foi estabelecido a partir de dados que não tomaram em consideração as diferenças entre figuras alvo, isto é, pensamos que uma abordagem por género quer de pais, quer de pares íntimos (do mesmo género e de sexo oposto), quer ainda por género dos respondentes deveria configurar diferenças ao nível das respostas de recurso. Esta é uma questão saliente em termos teóricos, tendo em conta as evidências de diferenciação qualitativa da vinculação nas díades mãe-filhos(a) e pai-filhos(as), mas também nas relações entre amizades do mesmo género e de géneros opostos em adolescentes e, ainda, das representações das relações românticas em rapazes e raparigas que, em última instância, dão suporte aos resultados distintos no que diz respeito à avaliação de dimensões da vinculação amorosa.

Uma outra crítica diz respeito ao requisito da nomeação de apenas uma figura para cada uma das componentes, o que enviesa os resultados dado não poderem ser consideradas vinculações secundárias e existir a forte possibilidade de que não fossem encontradas vinculações totais para algumas das figuras alvo. Esta é aliás uma análise que Hazan também realiza (Hazan, Campa & Gur-Yaish, 2006a) e que muitos autores tiveram

em consideração em estudos posteriores, com o instrumento de Hazan e Zeifman21 ou

outros, dando instruções aos respondentes no sentido da nomeação de uma ou mais figuras para cada componente (Allen, Porter, Tencer, & Williams, 2003; Doherty & Feeney, 2004; Feeney & Hohaus, 2001; Fraley & Davis, 1997, Friedlmeier & Granqvist, 2006; Freeman & Brown, 2001; Freeman & Newland, 2002; Markiewicz, Lawford, Doyle & Haggart, 2006; Nickerson & Nagle, 2005; Trinke & Bartholomew, 1997), embora existam outros estudos que mantiveram a formulação inicial (Diamond & Dubé, 2002; Mayseless, 2004).

Tendo em conta que o trabalho de Hazan e Zeifman representa a fase mais incipiente da tentativa de validar e consolidar um aspecto da teoria da vinculação acerca do qual muito pouco tinha sido realizado, é natural que as questões acerca da influência da qualidade da vinculação não estivessem presentes enquanto factor capaz de influenciar o recurso às diferentes figuras alvo. Esta é uma área chave para o modelo, nomeadamente porque tomadas separadamente, cada uma das componentes de vinculação resulta em comportamentos de vinculação que podem constituir-se, ou não, em laços duradouros e posteriormente em vinculações. Há contudo reconhecimento por parte de Cindy Hazan a este propósito (Hazan et al., 2006a; Hazan, Campa & Gur-Yaish, 2006b), tendo sido deixada esta tarefa a cargo dos estudos subsequentes.