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A vinculação na adolescência

2. Relações de vinculação aos pais, pares e par amoroso na adolescência

2.6. Processos de continuidade e de mudança na vinculação: O privilégio dos estudos longitudinais

2.6.1. Papel dos acontecimentos de vida

Um segundo grande grupo de estudos (Waters, e Waters e colaboradores) levanta a questão do papel dos acontecimentos de vida na alteração da segurança inicial de vinculação, pese embora este tema seja transversal nesta dissertação. Estes estudos servir- nos-ão posteriormente de guia no levantamento de um grupo específico de hipóteses.

“No caso das crianças e dos adolescentes vemo-los, à medida que crescem, aventurando-se progressivamente e por períodos de tempo cada vez maiores a partir da base. Quanto mais confiança em que a base é segura, além de pronta a responder se solicitada, maior a percepção de que esta está garantida. Contudo basta um ou outro pai cair doente ou morrer, que o imenso significado da base para o equilíbrio emocional da criança ou do adolescente ou do jovem adulto é de imediato visível.” (Bowlby, 1988, p. 11).

Waters e colaboradores (2000a, b e c) estudaram dados relativos a classificações de vinculação de crianças à mãe na infância, avaliando os participantes 20 anos depois através da AAI. De facto existia uma relação significativa entre a segurança de vinculação inicial à mãe e a segurança na AAI 20 anos depois. 72% da amostra obteve a mesma classificação na AAI que na avaliação inicial e apenas 36% mudaram as suas classificações. Os autores levaram em conta tanto os problemas advindos das duas medidas utilizadas, mas também, e aqui concordantemente com o primeiro estudo referenciado, sugere-se que os acontecimentos de vida que ocorrem no período que medeia a infância à jovem adultícia, podiam explicar tanto a continuidade quanto a mudança na dicotomia estudada. Também os acontecimentos de vida ansiogénicos relacionados teoricamente com a vinculação (divórcio parental, morte de um dos pais ou de ambos, doença grave dos pais ou do próprio, perdas significativas de outros significativos, etc.) detinham efeitos nos resultados, já que se estes não eram relatados pelas mães, concorriam para cerca de 78% da concordância na continuidade em termos de segurança de vinculação. Ora de facto começamos a entender a continuidade e a mudança na vinculação, não como processos eliminatórios entre si, mas justamente como processos coexistentes ao longo do desenvolvimento. Note-se ainda que neste estudo a classificação inicial não interferia na probabilidade de mudança, antes eram os acontecimentos de vida ansiogénicos que suportavam essa possibilidade. Verificámos aqui duas importantes conclusões interligadas, nomeadamente que a probabilidade da manutenção da segurança de vinculação da infância à juventude é mais provável que a mudança, pelo que, de algum modo, na ausência de acontecimentos de vida negativos

maiores a avaliação das representações actuais de vinculação aos pais pode reflectir o padrão estabelecido na infância.

Weinfield e colaboradores (1999, 2000, 2004) e Hamilton (2000) observam o mesmo tipo de resultados (em amostras diversas embora mantendo os procedimentos de avaliação de Waters e colaboradores) ao verificarem que a manutenção da classificação Seguro- Seguro se relacionava com a ausência de situações de vida ansiosas, e que a da classificação Inseguro-Inseguro se aliava à manutenção de situações de vida ansiogénicas.

Por seu turno Lewis, Feiring e Rosenthal (2000) estudaram a vinculação ao longo do tempo numa amostra de 84 raparigas54. Os resultados obtidos através de testes de Qui-

quadrado indicam que a vinculação ao ano de idade não está relacionada com a vinculação aos 18 anos de idade. Os sujeitos inseguros obtiveram uma percentagem de concordância de vinculação apenas de 38%, enquanto que a descontinuidade traduzida em percentagem entre seguros na primeira avaliação e inseguros aos 18 anos foi de 48%.

A questão dos acontecimentos de vida negativos serem factor de influência do estatuto de vinculação ganha força, ao observar-se que as memórias retrospectivas dos jovens (aos 13 anos) quando negativas se reflectiam, aos 18 anos de idade, numa vinculação insegura em 70% dos casos. O grupo detentor de memórias positivas apenas obteve resultados de insegurança de vinculação aos 18 anos em 37% dos casos.

Existiu ainda uma relação significativa entre divórcio parental, insegurança ao ano de idade e classificação insegura aos 18 anos de idade; dito de outro modo, os adolescentes que experienciaram o divórcio dos pais, quando detinham relações avaliadas já como inseguras ao ano de idade, eram mais prováveis serem inseguros aos 18 anos, enquanto que a segurança era mais provável advir nestas adolescentes quando provenientes ou de famílias intactas, ou de famílias divorciadas embora cujas relações de vinculação com as crianças ao ano de idade eram seguras. Ainda de outra forma, os efeitos parecem reflectir a qualidade relacional inicial e não o processo de divórcio.

Os resultados rechaçaram também a hipótese de que a idade dos sujeitos aquando do divórcio tivesse influência no estatuto posterior de vinculação. Mais ainda, os tratamentos estatísticos encontraram evidência que a segurança inicial não protege a manutenção da classificação aos 18 anos de idade, se existe em paralelo a experiência de divórcio o mesmo padrão emergindo (embora não significativamente), ao falarmos de adolescentes inseguros inicialmente, isto é, os inseguros são mais prováveis alterarem a sua classificação para seguros no caso de não existir divórcio parental. Sugere-se então que a continuidade de vinculação é afectada pelos níveis de ansiedade familiar, e neste caso, pelo

54 Lewis et al. (2000) utilizaram uma versão modificada da Situação Estranha (Waters, Wippman & Sroufe, 1979, Estudo 2) aos 12 meses de idade, sendo a amostra depois submetida à AAI aos 18 anos de idade. Como dados complementares, os autores recolheram informação acerca das memórias infantis aos 13 anos de idade, bem como cotações de desadaptação dos adolescentes (através de mães e professores) nesta e na faixa etária dos 18 anos. Os investigadores observaram ainda o estatuto de divórcio dos pais.

acontecimento de vida maior que é o divórcio parental. A questão que se nos coloca é certamente se a qualidade da relação noutros contextos que não com os pais, pode influenciar o estatuto “presente” da vinculação, debelando os efeitos dos stressores de vida, o que a ser verdade, explicaria o porquê de na mesma condição de vida alguns sujeitos passem a deter um estatuto seguro e outros manterem o estatuto inseguro inicial.

Conclusões similares às do estudo anterior foram obtidas por Allen e colaboradores (Allen, Kuperminc & Moore, 2005; Allen, McElhaney, Kuperminc & Jodl, 2004) numa amostra adolescente avaliada aos 16 e aos 18 anos de idade. Os resultados integravam dados provenientes das dimensões da AAI, da avaliação da autonomia com manutenção da relação numa tarefa filmada, da avaliação da sintonia da compreensão materna das auto- percepções filiais, das representações adolescentes das qualidades relacionais e do apoio na relação com a mãe (escalas da Mother-Father-Peer Scale, Epstein, 1983), e ainda do nível de sintomatologia depressiva relatada pelos adolescentes (Beck Depression Inventory, Beck & Steer, 1987). A partir das análises efectuadas os autores concluíram que a segurança mãe-adolescentes é provável ser continuada na ausência de stressores como a pobreza ou a depressão.

Ainda a este propósito Sundin, Wiberg e Eklof (2002) estudaram longitudinalmente uma amostra de crianças suecas de classe média, classificando-as em termos de vinculação à mãe aos 3 anos (através de um procedimento videográfico onde a criança era filmada a brincar com uma casa de bonecas com o tema “um dia na família”; Wiberg, Humble & de Chatêau, 1989), e posteriormente, aos 23 anos, avaliava-se o estilo de vinculação dos jovens adultos através de uma entrevista semi-estruturada (Wiberg, Blom, Gjertsson, Hedlund, Hezekielsson, Jansson & Karlsson, 2001). Era ainda preenchida na adultícia um inventário de acontecimentos de vida (Paykel´s Life Events List, Paykel, 1983) que integrava na sua maioria situações de vida negativas associadas aos pais, mas que incluía também a doença ou abuso sexual da criança. Os resultados indicaram uma concordância na segurança e na insegurança de vinculação nos dois pontos temporais que se associava, respectivamente, a uma menor frequência (M=.9) de acontecimentos negativos (antes dos 18 anos) e a uma média de 1.4 acontecimentos de vida ansiogénicos. Foram ainda observados os grupos onde à segurança inicial se sucedia a insegurança e o grupo que passava da insegurança à segurança, verificando-se que ao primeiro grupo correspondia a média mais elevada de acontecimentos de vida ansiogénicos e no segundo uma média de 1.2 acontecimentos por sujeito. Repare-se aqui em duas questões essenciais: Por um lado encontramos uma continuidade de vinculação não em termos de um mesmo contexto relacional mas do contexto da relação com a mãe no funcionamento padrão mais geral da vinculação na jovem adultícia (ao nível do relacionamento interpessoal em 47% dos casos), por outro lado, observa-se a possibilidade de que os acontecimentos

de vida negativos possam influenciar não só a relação de vinculação com os pais, mas estender-se, na adultícia, ao funcionamento mais geral dos sujeitos. Pensamos que talvez esta perspectiva fosse mais bem entendida se colocarmos a hipótese da mediação através dos acontecimentos negativos na associação da qualidade inicial de vinculação com a qualidade dos modelos internos gerais na juventude.

Carlivati (2003) quis também ela compreender a relação entre vinculações seguras na infância e a qualidade das relações com pares na adolescência, utilizando para tal dados (Minnesota Longitudinal Study of Parents and Children) da Situação Estranha, de uma escala de ansiedade para mães (64 meses de idade dos filhos), aos 16 e 19 anos de idade dos respondentes da Adolescent Life Events Scale (Compas, Davis, Forsythe & Wagner, 1987), e ainda uma escala de competência social (jardim infantil e16 anos) e uma outra de adaptação pessoal no final da adolescência (19 anos). Assim, os resultados permitiram observar a existência de continuidade de segurança de vinculação entre as relações com a mãe e as relações com os pares, contudo, aqueles que eram inseguros na relação com a mãe na infância mas seguros aos pares na adolescência, tinham experienciado elevados níveis de ansiedade na infância mas baixos em fases posteriores do ciclo vital. Foi encontrada também uma tendência que ressaltava que os adolescentes que tinham mais competências de relacionamento com os pares no jardim-de-infância, embora fossem na

Situação Estranha inclusos no grupo inseguro, eram mais prováveis terem classificações

seguras no relacionamento com pares na adolescência do que os inseguros que não tinham exibido essas competências relacionais. Deste modo, podemos considerar não só os acontecimentos de vida ansiogénicos como influenciando os percursos de vinculação, mas diversos outros factores como facilitadores da utilização de contextos alternativos de segurança ao dos pais – por exemplo a qualidade relacional com pares, que permite a aquisição de estratégias relacionais capazes de abrir a possibilidade de um modelo alternativo de segurança aos pares na presença de insegurança inicial à mãe (ou a revisão dos modelos de vinculação).

Finalmente, e numa tentativa de verificar se eram as características dos acontecimentos de vida ou se seriam os significados dados aos mesmos que se associavam às alterações de segurança de vinculação, Davila e Sargent (2003) estudaram uma amostra de 154 jovens (média de idades de 19.3 anos) ao longo de 8 semanas consecutivas. Os procedimentos metodológicos incluíram o preenchimento de um diário e ainda de questionários que avaliavam quer os acontecimentos de vida negativos, quer as perdas a eles associadas (60 itens, nas áreas “escola”, “emprego”, “família”, “amigos”, “relações amorosas”, “doença”, “situações de convivência” e “actividades extracurriculares”), a disposição (Positive and Negative Affect Schedule, Watson, Clark & Tellegen, 1988) e a segurança de vinculação (segundo uma perspectiva de estado actual de segurança - a

variabilidade ao longo dos 58 dias - mas também de traço - scores médios de Evitamento e

Ansiedade; Revised Adult Attachment Scale, Collins & Read, 1990). O modelo de regressão

linear deu conta de que as percepções de maior perda interpessoal associavam-se a níveis mais elevados de insegurança quotidiana, controlados os efeitos da especificidade dos acontecimentos de vida e a disposição afectiva dos jovens. O funcionamento ao nível da segurança internalizada não moderava esta relação, pelo que se tratava apenas da influência directa dos significados dos acontecimentos de vida na segurança de vinculação diária. Ou seja, independentemente da segurança ao nível prototípico, as percepções de perda mais significativas eram sempre associadas a decréscimo na segurança actual, o que era verdade mesmo que os jovens mais ansiosos tendessem a reforçar os seus modelos inseguros (na medida em que era menos provável diminuírem o grau de ansiedade ao longo do tempo); por seu turno, os seguros tendiam com a passagem do tempo a aumentar o seu conforto com a intimidade. Em suma, a um nível estritamente pessoal parece que os níveis de segurança diminuem com a interpretação das situações negativas enquanto perdas, independentemente do funcionamento pessoal mais internalizado ou constante ser mais ou menos seguro.

Sintetizando o que foi dito até aqui, de facto os acontecimentos de vida negativos cuja intensidade é percepcionada como significativa, parecem interferir com o funcionamento pontual mas também com o funcionamento mais normativo (ou se quisermos, mais internalizado) da segurança de vinculação. É de prever contudo, maior interferência na alteração dos níveis regulares da segurança apenas quando quer a intensidade, quer a quantidade dos acontecimentos se verificam em graus de negatividade e de acumulação, respectivamente, que permitam interpretações pessoais de que a imagem de si ou do outro (ou ambas) sofram interferências no sentido pejorativo; reforçam-se este modo os funcionamentos inseguros, e seria potencialmente alterado em direcção à insegurança o funcionamento dos anteriormente seguros.

Quanto ao tipo de acontecimentos com potencial de reforço de insegurança ou de mudança para insegurança, surgem-nos o divórcio, a doença ou morte parental, ou a doença ou abuso dos próprios, desde logo situações claramente de perda, quer do sentido da existência da Base segura primária, quer do sentido dos outros enquanto responsivos e disponíveis (o que possivelmente influenciará além do modelo positivo dos outros, o modelo interno de si enquanto merecedor de amor e protecção); de outro modo, situações de ameaça definidas como activadoras do sistema de vinculação.

Por tudo o que acabámos de dizer fará sentido pensar que estas alterações em termos dos modelos internos do self e dos outros provenientes de acontecimentos de vida negativos maiores, poderão produzir então mudanças ao nível de posteriores relacionamentos (com pares e par amoroso), pese embora consideremos também, que

estes dois contextos poderão servir como alternativas de segurança. Neste momento ambas as hipóteses se apresentam viáveis, razão pela qual iremos trabalhar também nas nossas hipóteses a eventual relevância dos acontecimentos de vida maiores na segurança de vinculação nos contextos de vinculação aos pais, pares e par amoroso.