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A vinculação na adolescência

1. A transferência das componentes ou funções de vinculação: O modelo de Cindy Hazan

1.1. Construção de um modelo de transferência

1.1.1. O trabalho a montante: Cindy Hazan e Phillip Shaver

Se a universalidade e a qualidade filogenética da vinculação estão por demais investigadas (incluso em estudos que recorrem a comparações entre evolução de espécies,

vide Fraley, Brunbaugh & Marks, 2005), a questão da transmissão, de modo eventualmente

sequencial e padronizado das componentes de vinculação de pais para outras figuras sociais só na década de 90 começou a ser sistematicamente colocada.

Embora o pressuposto da presença do sistema de vinculação em todas as fases do desenvolvimento humano remonte a Bowlby e Ainsworth, o modo como das relações iniciais de vinculação se constroem outras relações da mesma categoria, embora com diferentes actores relacionais, esteve envolta em alguma opacidade teórico-empírica até Hazan e Shaver (1987) explorarem a possibilidade de que as relações amorosas poderiam constituir- se em relações de vinculação. Esta especulação teve por base justamente o posicionamento de Bowlby (1969/1990, 1973/1998a, 1973/1998b) de que a continuidade da segurança de vinculação é mais provável, dado que a internalização dos modelos de si e do outro acontecem numa dinâmica relacional criança-mãe onde existem expectativas e respostas de cada membro da díade que, por acção da continuidade e da estabilidade do contexto envolvente, permitem o estabelecimento de regularidades de funcionamento ou padrões de vinculação. Embora da obra de Mary Ainsworth transpareça uma certa relutância

em considerar como relações de vinculação as além das estabelecidas inicialmente com mãe e pai (ou outros prestadores de cuidados iniciais) e figuras subsidiárias (consistentemente presentes desde a infância, vide em especial Ainsworth, 1982, 1989), não é descartada a hipótese de que os relacionamentos com pares/amigos íntimos e sobretudo com o par amoroso possam ser vistos como de vinculação, no entanto sugere-se um forte investimento empírico para comprovar ou infirmar esta hipótese.

Hazan e Shaver (1987), partindo destes pressupostos, consideraram a possibilidade de que os relacionamentos amorosos, partilhando muitas das características das relações de vinculação na infância, poderiam ser observados como vinculações e ainda, que diferentes experiências relacionais entre pares amorosos providenciariam estilos de vinculação comparáveis qualitativamente aos definidos por Ainsworth e colaboradores (1978): Seguros, Evitantes e Ansiosos/Ambivalentes. Esta perspectiva incluía ainda um correlato ao nível dos modelos internos dinâmicos, pelo que era esperado que a cada estilo correspondessem formas automatizadas de encarar o self como merecedor de afecto e os outros como disponíveis, confiáveis e responsivos (ou não). Inicialmente com Shaver (1987, 1994a), Cindy Hazan considera que as relações com pares implicam a novidade da reciprocidade enquanto que até ao final da infância a complementaridade das relações é a norma entre pais/prestadores de cuidados-crianças. Postula-se então:

“Se os pares adultos começam a cumprir e satisfazer necessidades de apoio emocional e segurança similares às da responsabilidade dos pais ao longo da primeira infância e da infância, então em dado ponto a vinculação será transferida de pais a pares.” (Hazan & Shaver, 1987, p.8).

A partir de 620 respostas de uma amostra entre os 14 e os 82 anos e de 180 outras de jovens universitários (média de 18 anos de idade), a uma medida construída para avaliar os três estilos de vinculação nas relações adultas (a partir do enquadramento de Ainsworth e colaboradores, 1978), e a um questionário para avaliação dos modelos internos, elaborado a partir de medidas de amor romântico e extrapolações da literatura acerca da prestação de cuidados mãe-criança, Hazan e Shaver (1987) encontraram fortes sugestões de que as relações amorosas significativas podiam ser lidas à luz da teoria da vinculação. Estava aberto o caminho para realizar as investigações que Ainsworth (1982) considerava necessárias à honestidade teórica para que os relacionamentos com pares fossem passíveis de serem observados enquanto relações de vinculação.

São ainda Cindy Hazan e Phillip Shaver (1994) a dar continuidade a este trabalho, transformando em corpo teórico as conclusões que desde 1987 foram sendo recolhidas da investigação na área da vinculação adulta. De novo são solicitadas as bases da teoria segundo as quais o sistema de vinculação existe inicialmente para preencher as

necessidades de sobrevivência, dada a falta de competências físicas e mentais que o ser humano exibe à nascença e que, embora desenvolvendo-se, se mantém por vários anos incapaz de sobreviver longe de um adulto que lhe providencie cuidados e protecção. O estabelecimento do sistema é facilitado com a proximidade a um adulto que consistentemente (ou não) responda às necessidades da criança, sobretudo nas situações de insegurança e medo. As componentes da manutenção da proximidade são justamente a

Procura de proximidade (activa, em ordem à manutenção da proximidade) e o Protesto de separação (para readquirir a proximidade, quando por qualquer razão esta se perde). É a

partir destas duas componentes ou funções de vinculação que o prestador de cuidados começa a ser visto como um Porto seguro (ou não, ou às vezes não), na medida em que presta apoio e cuidados em situações ansiogénicas. Este Porto seguro permite, numa lógica de consistência, que seja possível sair dos limites mais próximos do prestador de cuidados para explorar o meio ambiente, na certeza (ou não) de que este, quando o sistema está “em modo exploratório”, é uma Base segura à qual é possível voltar no caso de ameaça. Assim,

Porto e Base segura são as outras duas componentes de vinculação definidas por Mary

Ainsworth (1967, Ainsworth et al., 1987).

O modo consistente ou inconsistente como a interacção dos membros de uma díade se vai desenrolando permite que ao nível interno se construam moldes relacionais, modelos mentais, representações que segundo a teoria (Ainsworth et al., 1978; Bowlby, 1973/1998a; Collins & Read, 1994; Collins & Sroufe, 1999; Pietromonaco & Barrett, 2000 a e b) não só influenciam o modo como o self e outros são lidos, mas também como o meio envolvente é interpretado, de tal modo que os processos de atenção e a acção são dirigidos para a confirmação dessas organizações cognitivas. É mais provável a manutenção de determinado funcionamento que a mudança, utilizando para tal dois processos complementares: a estabilidade relacional e os processos de atenção dirigida. Mas a mesma teoria alega ainda que existe lugar a alguma plasticidade. O excerto abaixo revela as condições de continuidade e de mudança na organização de vinculação.

“(…) o indivíduo constrói modelos de como as figuras de vinculação provavelmente se comportarão com respeito a si próprio, numa variedade de situações; e nesses modelos apoia todas as suas expectativas e, portanto, todos os planos para o resto da vida.

Separar o indivíduo, por breve ou longo tempo, de uma figura de vinculação, perde-la ou ver-se ameaçado de separação ou abandono – tudo isso age, agora o vemos, para desviar o desenvolvimento de uma linha que está dentro dos limites óptimos, levando a outra que talvez esteja fora deles. Voltando à analogia do caminho-de-ferro: essas experiências agem de forma que os pontos de um entroncamento se deslocam, sendo o comboio desviado da linha principal para uma secundária.” (Bowlby, 1973/1998a, p. 385- 386).

Bowlby e Ainsworth tinham já afirmado que na infância existe na rede afectiva de cada sujeito mais do que uma vinculação, referindo a valoração diferenciada que é dada à vinculação estabelecida com o principal prestador de cuidados (Vinculação primária) em relação com outros adultos que cuidam também da criança (Vinculações secundárias), observando-se que a intensidade dos correlatos comportamentais das componentes é superior com a figura de vinculação primária que com as restantes. Ao longo do desenvolvimento outras relações de vinculação são possíveis com amigos e com pares amorosos, mas, o que de inovador o modelo de Hazan e Shaver observou foi exactamente o modo sequencial, ligado à idade, como as componentes são transpostas, ao mesmo tempo que indicou a existência de uma hierarquia16 a partir das diversas relações de vinculação da vida dos sujeitos, assinalada através da frequência do tipo de laços que são vinculações totais17. Muitos trabalhos versaram esta transferência na idade adulta, nomeadamente Fraley e Shaver (1997), Trinke e Bartholomew (1997), Mikulincer, Gillath e Shaver (2002), e mais recentemente Rowe e Carnelley (2005) dos quais voltaremos certamente a falar.

O modelo define que a transferência das componentes de vinculação de pais a pares segue um processo sequencial onde, por questões exploratórias e de afiliação, a primeira componente transferida é a Procura de proximidade (observada com pares já no final da infância). A proximidade permitirá na adolescência que seja possível iniciarem-se comportamentos de Porto seguro que, pelo mecanismo da repetição, levam à construção dos pares em Bases seguras. Se existe continuadamente a procura do outro para apoio e conforto, surge o Protesto de separação ao seu afastamento18, quando este está além do

limite permitido pela homeostasia do sistema pessoal.

Um outro pressuposto é o de que os pais nunca deixam de ser figuras de vinculação, porém perdem importância na hierarquia de vinculação dos filhos à medida que o ciclo vital decorre. Existirá então uma orientação clara aos pais para o cumprimento das funções de vinculação na infância, uma orientação aos pares na Procura de proximidade e Porto seguro do final da infância e durante a adolescência, e uma orientação aos pares (sobretudo ao par amoroso) para as quatro funções ou componentes no final da adolescência e na idade adulta. Em termos da hierarquia de vinculação o modelo prevê que a importância dos pais decrescerá à medida que crescem as redes sociais e por isso a possibilidade das vinculações com pares e, dentro desta categoria relacional, à medida que o tempo passa e o sistema sexual é activado, serão mais importantes as relações amorosas de vinculação que as relações de amizade. Vide Figura 1 para uma representação gráfica do modelo de transferência.

16 Estas hierarquias, como veremos em capítulos posteriores desta tese, encontram-se ligadas ao tipo de relação (com pais, pares ou par romântico) e fazem-se depender de variáveis como o género ou a duração da relação. 17 Vinculação Total é o termo utilizado para as relações de vinculação onde são exibidas em simultâneo as quatro componentes.

FIGURA 1.

Modelo da transferência de vinculação de Hazan e Shaver (1987) e correspondentes lugares superiores na hierarquia de vinculação

a b

Procura de Proximidade

Procura de

Proximidade Porto SeguroPorto Seguro

Protesto de Separação Protesto de

Separação Base Segura Base Segura PAIS PAIS PAIS PARES PARES PARES PARES Infância Adolescência

Adultícia Par amoroso

Pais/Pares Pais

Infância

Adolescência

Adultícia

Legenda. (a): Modelo de transferência das componentes; (b): Hierarquia da rede de vinculação (a figura relatada em cada círculo temporal é aquela que detém teoricamente o lugar cimeiro na hierarquia de vinculação).

Hazan e Shaver (1994) consideraram ainda um paralelo entre a vinculação na infância, normalmente à mãe, e a vinculação na adultícia, constatação que é aferida posteriormente (Zeifman & Hazan, 1997). Tal como acabámos de expor, a probabilidade de que as relações adultas sejam observadas a partir dos modelos mentais construídos na infância é grande, porém, a natureza das relações na adolescência e adultícia não é de todo a mesma. Se na infância a vinculação é essencialmente complementar, a adolescência e a jovem adultícia trazem as relações simétricas onde por vezes se é um prestador de

cuidados e outras vezes sujeito de cuidados. Passamos a ter pares como figuras potenciais

de vinculação, embora no essencial se mantenham os objectivos do sistema: a protecção, a segurança e o apoio emocional.