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Funcionamento reflexivo e transmissão intergeracional da segurança de vinculação

A vinculação na adolescência

2. Relações de vinculação aos pais, pares e par amoroso na adolescência

2.5. Funcionamento reflexivo e transmissão intergeracional da segurança de vinculação

“Estas são as mães que descrevem terem tido uma infância extremamente infeliz mas que apesar disso têm filhos que exibem com elas vinculações seguras. A característica de cada uma destas mães, que as distingue das mães de crianças inseguras, é a de que, apesar de descreverem muita rejeição e infelicidade ao longo da infância, muitas vezes fazendo-o em lágrimas, cada uma é capaz de contar fluente e coerentemente a sua história, na qual foi dado um lugar apropriado aos aspectos positivos das suas experiências que parecem integradas com todas as negativas que também experimentaram.” (Bowlby, 1988, p. 134).

As questões do funcionamento reflexivo aliadas à transmissão da vinculação em termos intergeracionais chamaram também a nossa atenção, na procura de uma descrição do que pode ser a vinculação na adolescência, mas sobretudo porque abrem um olhar pouco fatalista acerca da continuidade da insegurança de vinculação. Este ponto serve para nós como introdução às questões da continuidade e mudança na vinculação, questão aliás que privilegiámos.

Essencialmente a teoria da vinculação procurou compreender a natureza das relações entre pais e filhos a partir de dois pontos de vista complementares: um ponto de vista individual, isto é, considerando a elaboração por parte de cada um dos elementos desta díade, em termos da história pessoal, de expectativas acerca dos outros e de si mesmos, porém, também do ponto de vista de construção interpessoal da relação, ou seja, tendo em conta que a interacção pessoal sugere a cada elemento da díade quer a clareza de envio de uma mensagem, quer a interpretação adequada e sensitiva da mesma (Kobak & Esposito, 2002). Porém, a teoria tem vindo também a expandir a possibilidade de que há um outro nível de análise, um modo de compreender o porquê quer da maior observação da estabilidade preditiva de vinculação ao nível da segurança, quer das revisões e da actualização dos modelos internos de funcionamento, o nível metacognitivo na terminologia de Main (Hesse, 1999; Main, 1990; Main & Weston, 1981; Main et al., 1985), o funcionamento reflexivo na terminologia de Fonagy (Fonagy, 1987, 1999a, b, c, d; Fonagy, Steele & Steele, 1991), ou de outro modo, a capacidade de pensar de modo global acerca de si e dos outros.

O que estas perspectivas apontam é justamente que um progenitor pode ter tido experiências na infância que lhe permitiram construir, a um nível interpessoal, relações de vinculação inseguras com um ou os dois pais, no entanto, a capacidade maior ou menor que estes (agora pais) têm de coerentemente analisar as suas experiências, compreendendo o ponto de vista dos seus prestadores de cuidados, influencia decisivamente o funcionamento seguro da prole. As experiências são analisadas ao nível da interpretação pessoal. De outro modo, esta capacidade não é mais do que a aptidão para a compreensão de si e dos outros

enquanto psicologicamente diferentes. Assim, não é suficiente para a segurança de vinculação deter um ambiente constante, progenitores capazes de reflectir acerca dos seus modelos internos de funcionamento e nos dos filhos, filhos cuja experiência é no sentido da reflexão acerca de si e dos pais separadamente, mas como é também evidente, deter em paralelo o correlato comportamental dessa segurança. Ou seja, analogamente os pais terão que consistentemente demonstrar-se sensitivos mas também responsivos às necessidades filiais de modo que potencialmente apenas seja possível a segurança. Assim, e por reprodução, a transmissão desta competência de reflexão e a sensibilidade demonstrada através da mesma às necessidades dos outros, garante que os filhos sejam capazes de também eles pensar acerca dos pensamentos, afectos e sentimentos dos outros, tornando- se mais sensíveis às necessidades dos outros significativos, e por isso mesmo, às necessidades dos seus próprios filhos. Está assim garantida a transmissão de um funcionamento seguro (para uma revisão do modelo vide Lagos, 2007). Mas existirá de facto evidência de que a compreensão interpessoal potencia a formação de modelos internos mais abertos a revisão e por isso plausivelmente mais seguros?

Em termos de relacionamentos pais-criança na infância existem já estudos que sugerem justamente que a transmissão intergeracional da vinculação acontece através da complementaridade da função reflexiva e dos comportamentos de prestação de cuidados da mãe. Dois estudos complementares (Grienenberger, Kelly & Slade, 2001; Slade, Grienberger, Bernbach, Levy & Locker, 2001) seguiram uma amostra de grávidas desde o terceiro trimestre de gravidez, com avaliação da segurança às mães recorrendo a AAI, aos 10 meses de idade dos filhos – aplicando a Parental Development Interview (PDI, Aber, Slade, Berger, Bresgi & Kaplan, 1985, um instrumento que avalia as representações maternas da criança) e, aplicando o procedimento da Situação Estranha aos 14 meses em ordem a obter scores de segurança mãe-criança. Mediu-se ainda a comunicação afectiva disruptiva das mães através do Atypical Maternal Behavior Instrument for Assessment and

Classification (AMBIANCE, Bronfman, Parsons & Lyons-Ruth, 1999). A ideia era analisar o

funcionamento reflexivo das mães e o seu comportamento de prestação de cuidados, associando-os eventualmente à vinculação quer pessoal adulta (AAI), quer das crianças (Situação estranha). Os resultados indicaram que uma mãe altamente reflexiva (sobre si própria e a criança) oferece à criança um roteiro congruente com a sua experiência interna, o que conjuntamente com um nível correspondente de responsividade, permite à criança integrar consistente e coerentemente a ideia de self e complementarmente a ideia da própria relação enquanto segura. Nesta relação observou-se ainda a capacidade de reflexão materna é mediadora (numa mediação total) da associação entre segurança de vinculação das mães (AAI) e vinculação dos filhos (Situação estranha).

No início da adolescência já existe a capacidade de produzir um discurso ponderado (reflexivo) acerca de si e das relações que se construíram com pais e pares, tendo sido verificado (Steele & Steele, 2005a e b) que a competência da exactidão e coerência no discurso de pré-adolescentes de 11 anos acerca das relações significativas, é mais provável tendo mães (e para os rapazes, pai e mãe) que já evidenciavam essa capacidade anteriormente ao nascimento dos filhos, embora a probabilidade aumente se esta capacidade for actualizada ao longo de toda a relação e não se centre apenas num período inicial.

Não é difícil colocar estes resultados ao serviço de especulações maiores: esta capacidade de mentalização, de metacognição, de reflexão dos pais trabalhará como protecção para a segurança nas relações dos filhos com pais e pares? Muito provavelmente sim, porém, a posição que defendemos é a de que esta competência é apenas um potenciador para a segurança, concorrendo com esta competência muitos outros factores.

Neste ponto não quisemos deixar de referir com algum pormenor o estudo de Benoit e Parker (1994), acerca da estabilidade e a transmissão da vinculação ao longo de três gerações. 110 grávidas45 (recrutadas de diversas fontes) constituíram a base inicial do

estudo. As medidas utilizadas foram a AAI (mães e avós) e a Situação estranha para as díades mãe-criança. Os resultados da AAI para as mães em termos de estabilidade foram extraordinários sendo a solidez de 77% numa classificação de 4 categorias46 e de 90% em

três categorias (medidas obtidas na gravidez e 12 meses após o parto).

Em termos de transmissão intergeracional, se observadas as díades mães-avós através das três classificações clássicas de vinculação existia uma concordância inter- sujeitos significativa, porém, se observados os dados numa classificação quadripartida da vinculação tal já não acontecia (avançando-se como razão para tal o número elevado de mães autónomas e avós não-resolvidas).

A relação entre a classificação das mães e a classificação dos bebés foi prospectiva (mães com avaliação efectuada na gravidez; crianças avaliadas aos 12 meses de idade), tendo a estatística apontado no sentido da continuidade das classificações de vinculação (na classificação quadripartida com uma concordância de 68% e na classificação tripartida uma concordância de 81%); o mesmo tipo de resultados foi obtido nas avaliações contemporâneas da vinculação para estas díades (com os mesmos instrumentos), sem que houvesse efeitos de sexo ou de ordem de nascimento das crianças.

45 Destas, 14 abortaram e das 96 restantes, 12 entre elas não completaram partes do estudo. A amostra era caucasiana, onde todas as mães eram casadas e provenientes da classe média ou média alta. A amostra recorria ainda às avós maternas (destas, 15 das 96 desistiram) e às respectivas crianças nascidas já após o início do estudo.

46 As classificações em quatro categorias foram para mães e avós as de Autónomas, Desinvestidas, Preocupadas e Não-resolvidas, enquanto que para as crianças foram as de Seguros, Evitantes, Resistentes e Desorganizados. A categorização tripartida (original) elimina a última classe quer para mães e avós, quer para crianças.

Os resultados apontam para a estabilidade de vinculação na adultícia, embora tal aconteça mais no quadrante Seguro da vinculação (através da avaliação dos resultados das mães obtidos durante a gravidez e do resultado dos filhos ao ano de idade). Os possíveis mediadores da estabilidade que foram aqui estudados (stressores, apoio social, auto-estima e satisfação marital), não se apresentaram como explicação viável para os resultados desta amostra dado que estes foram inconclusivos, no entanto o que parece acontecer é uma maior probabilidade de continuidade no quadrante Seguro e uma maior probabilidade de descontinuidade nos quadrantes inseguros da vinculação.

Quanto às avós, 54% foram classificadas de não-resolvidas (comparadas a 30% de mães com esta classificação), sendo avançadas como explicações o maior número de perdas detidas por esta subamostra, poderemos então dizer por especulação que a menor probabilidade de perdas (neste caso das mães, já que mais jovens) será um factor hipotético de estabilidade, ou ainda que as perdas ou a falta de capacidade de integração dos lutos poderão ser factor de descontinuidade para a segurança de vinculação.

Numa análise ainda mais fina dos dados foram constituídas tríades de avós, mães e crianças (para as mães usando-se os dados da AAI durante a gravidez). Os resultados obtidos para a transmissão intergeracional são concordantes em 65% das tríades, o que apoiará a hipótese da continuidade pais e filhos em termos de vinculação (neste caso com implicações ao nível de três gerações. No entanto estes resultados deverão ter em conta as questões de normalidade da distribuição da amostra, claramente inclinada para a segurança. O estudo não explorou os factores adjacentes a esta continuidade, embora o número de sujeitos Seguros da amostra possam ter concorrido para tal (e de novo se nos deparamos com a segurança como factor da continuidade, ou talvez como factor protector relativamente a possíveis stressores em comparação com os quadrantes inseguros da vinculação).

Os resultados são interessantes e deixam entrever algumas questões: serão as classificações inseguras mais permeáveis a factores stressores, ou serão estes factores per

se os desencadeadores da descontinuidade? Será a continuidade assegurada pela

segurança inicial de tal modo que a transmissão poderá ser efectuada ao longo de três gerações? Pensamos contudo que não é de descurar o facto de termos em mãos uma amostra onde a transmissão estudada é feita, nos elementos mais velhos, no feminino, talvez se o estudo recorresse à transmissão diferenciada por género parental “avós” os resultados não fossem tão concordantes (vide Belsky, Campbell, Cohn & Moore, 1996). Pensamos ainda que todas as questões que acima colocamos poderão ser respondidas afirmativamente ou não, e que, embora a questão do funcionamento reflexivo possa também ter aqui uma palavra a dizer, a realidade psicológica é demasiado complexa para apenas um preditor. Os autores recorreram a Bowlby (1969/1990, 1973/1998b) para a justificação dos

resultados obtidos quando este chamou a atenção para o facto de que os padrões de interacção mãe-criança são fruto quer das características iniciais do bebé, quer da cultura de proveniência da mãe, quer ainda da família de origem da mãe, quer, finalmente, da idiossincrasia materna, logo, a probabilidade de encontrar concordância na segurança entre três gerações de uma mesma família é elevada. O que não se explica é contudo o mecanismo através do qual este tipo de transmissão é efectuado, pelo que o funcionamento reflexivo pode ser potenciador da segurança de vinculação na relação com os filhos e esta, ao potenciar também a segurança noutros relacionamentos (quer pela internalização dos modelos pessoais, quer através do condicionamento à proximidade de sujeitos também seguros) criaria um ciclo quase que vicioso onde a probabilidade da constância da segurança é elevada.

2.6. Processos de continuidade e de mudança na vinculação: O privilégio dos