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Desnecessidade de prévio desfazimento da sentença transitada em julgado

7.1 SUPERAÇÃO DOS ÓBICES TRADICIONALMENTE OPOSTOS À

7.1.6 Afronta à coisa julgada

7.1.6.3 Desnecessidade de prévio desfazimento da sentença transitada em julgado

Há ainda os que defendem que somente há que se falar em responsabilização do Estado por ato jurisdicional caso se providencie, previamente, a rescisão do julgado, via ação rescisória ou revisão criminal, sendo este o entendimento atualmente dominante127. Entretanto

127 V. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. A responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional

no Brasil. Interesse Público, Belo Horizonte, ano 9, n. 44, p. 67-99, jul./ago. 2007. p. 87; ARDANT, Philippe.

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Disponível em:

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denegação: estudo comparativo entre o Direito brasileiro e o Direito português. 2006. 427 p. Tese (Pós-

doutorado em Direito) - Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006. p. 362; STOCO, Rui. Tratado de

defender tal teoria implica em entender que somente há responsabilidade caso se demonstre a ilicitude da sentença passada em julgado – o que envolve análise de fraude, dolo, culpa ou erro, ex vi do art. 485 do CPC e art. 621 do CPP – em manifesto descompasso com o atual estágio da teoria da responsabilidade civil.

Como vem sendo afirmado ao longo deste trabalho128, resta superada historicamente a ideação de que apenas atos ilícitos são aptos a ensejar a responsabilidade. Ainda que essa seja a regra básica, a cláusula geral do art. 927, parágrafo único, do CC/02, deixou estreme de dúvidas que, mesmo no âmbito do direito privado, o risco assume, em grande medida, o lugar da culpa como centro axiológico da responsabilidade civil. No âmbito do direito público, a disciplina é encontrada no art. 37, § 6º, da CF/88, inspirada pelos mesmos fundamentos: a atividade estatal traz, intrinsecamente, um risco, que deve ser por todos assumido, já que tal risco é criado em benefício de toda a coletividade.

Entender que a responsabilização do Estado por sentença passada em julgado não prescinde de sua rescisão implica em impor ao cidadão, individualmente, um sacrifício passado em favor da coletividade. Não se defende aqui que todo prejuízo causado por tal sorte de sentença deva ser indenizado, mas que, na análise dos danos causados, devam ser utilizados os mesmos fundamentos para a aferição da responsabilidade civil do Estado pelos seus atos administrativos129. Em especial, o dano indenizável, tratando-se de decorrência de ato lícito, deve ser qualificável como jurídico, certo, específico e anormal130. Do contrário, qualquer sucumbente teria ação contra o Estado, o que não se pode admitir.

É válido lembrar que, no âmbito da ação rescisória, existe um prazo para seu manejo, fixado em dois anos a contar do trânsito em julgado da sentença rescindenda131. Após tal decurso, fala-se em coisa soberanamente julgada, a qual seria imodificável. Na revisão criminal, a seu turno, há a peculiaridade da possibilidade de seu manejo a qualquer tempo, bem como pela previsão expressa da possibilidade do condenado postular, na própria ação de revisão, o reconhecimento a uma justa indenização, a ser liquidada no juízo cível132.

Nesse passo, ainda que não rescindida a sentença cível, ou revista a sentença penal, legítima se afigura a possibilidade de condenar-se o Estado a reparar o dano causado por suas

128 V. seções 2.2, 3.3.2 e 4.1. 129 V. seção 7.

130 V. seção 4.3. 131

V. art. 495 do CPC (BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm>. Acesso em: 05 maio 2012).

132 V. art. 630 e § 1º do CPP (BRASIL. Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo

Penal. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 05 maio 2012).

sentenças133, desde que dentro do prazo prescricional da pretensão indenizatória. Tanto é que a sentença subsiste, mesmo que a ação de indenização seja julgada procedente134.

Apenas do ponto de vista formal pode-se afirmar que a função da justiça termina com a sentença transitada em julgado. Se de tal decisão adveio dano indenizável, a justiça somente se perfará, sob o ângulo substancial, com a reparação do mal causado. Nesse sentido, a rescisão ou revisão da sentença apenas restabelecem, formalmente, a ordem jurídica: a efetivação da verdadeira justiça pressupõe a reparação substancial do dano causado135, independentemente da formalização da eventual equivocidade da sentença mediante seu desfazimento.

A relevância da eventual rescisão ou revisão da sentença recai não no direito à reparação considerado em tese, mas na eventual dosimetria da indenização, em face da extensão do dano. Obviamente, se a sentença for desconstituída, menor será o dano sofrido, pois, do contrário, seus efeitos declaratórios persistirão. Como se demonstrou, caso rescindida ou revista a sentença, aquele ato será considerado expressamente como ilícito, o que torna mais fácil a qualificação do dano como indenizável, pois bastará que seja jurídico e certo para ensejar a indenização136.

Existem, é verdade, algumas hipóteses legalmente previstas para rescisão do julgado que podem se constituir em causas excludentes, ou mesmo atenuantes, da responsabilidade do Estado, dentre as quais se identificam, por exemplo, o dolo da parte vencedora ou a colusão entre as partes, a configurar culpa exclusiva de terceiro ou da própria vítima e elidir o nexo

133 No mesmo sentido, ARAÚJO, Edmir Netto de. Responsabilidade do Estado por Ato Jurisdicional. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 143; BUZAID, Alfredo. Da responsabilidade do Juiz. Revista de

Processo, São Paulo, ano III, vol. 9, p. 15-36, jan./mar. 1978. p. 28; CAHALI, Yussef. Responsabilidade civil do Estado. 3ª ed. rev. atual. ampl. 3ª tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 476; ; DERGINT, Augusto

do Amaral. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 145HENTZ, Luiz Antonio Soares. Indenização do erro judiciário. São Paulo: Leud, 1995. p. 43-45.

134 Interessante notar que Di Pietro, em seu artigo “Responsabilidade do Estado por Atos Jurisdicionais”, parece,

num primeiro momento, concordar com essa tese, ao escrever que “ainda nessa hipótese [de coisa soberanamente julgada] em que não cabe mais ação rescisória, por estar prescrita, não há por que recursar-se o reconhecimento do direito à indenização a quem foi lesado pela decisão; não se trata de pleitear a alteração da mesma, que já se tornou imutável, mas de, em outro processo entre partes diversas, já que o Estado é, necessariamente, o réu, pleitear indenização decorrente do erro judiciário (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol. 198, p. 85-96, out./dez. 1994. p. 88.)”. Contudo, mais adiante (fl. 93), ela parece contradizer-se quando afirma que, caso se trate de erro da própria sentença, a mesma “deve ser desconstituída por via de ação rescisória, pois, do contrário, “parece contraditório aceitar que em outra ação se possa voltara discutir a ocorrência ou não do erro da decisão, pois, com isto, cairia por terra o velho princípio segundo o qual a coisa julgada contém uma verdade legal (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais. Revista de Direito

Administrativo, Rio de Janeiro, vol. 198, p. 85-96, out./dez. 1994. p. 92)”.

135 BIELSA, Rafael. As vítimas dos erros judiciários nas causas criminais e o direito à reparação. Traduzido por

Gil Castelo Branco. Revista Forense, Rio de Janeiro, ano XLIII, vol. 105, fasc. 511, p. 482-486, jan. 1946. p. 483; 486.

causal. Nesses casos, o fundamento acolhido na rescisória pode ter alguma influência no processo de reparação de danos, minorando (concausalidade) ou impossibilitando (excludente) a indenização137.

Frise-se que o art. 630 do CPP, ao prever a possibilidade de postulação da indenização no bojo do próprio processo de revisão138, não torna tal conduta imperativa, nem condiciona a reparação à revisão. Trata-se, apenas, de uma faculdade concedida ao lesado, a fim de facilitar-lhe o acesso a tal direito, uma vez reconhecida a ilicitude da sentença condenatória. Como expôs Dergint, “o tribunal [no julgamento da revisão criminal] somente poderá reconhecer o direito à indenização após julgada procedente a revisão e absolvido o réu, pela prova de sua inocência. Assim, o direito à indenização não ocorre dentro da revisão, mas fora dela139”. Ressalte-se que o referido autor não vincula a reparação do dano à procedência da revisão, mas apenas destaca que, quando tal pleito for postulado, ele somente pode ser acolhido num segundo momento, tratando-se de verdadeira cumulação objetiva de ações. Dessa forma, nada impediria que o interessado optasse por discutir a questão da responsabilidade em outro processo, no juízo cível, destacando esse segundo momento de que fala Dergint para seu foro típico140. Entender pela impossibilidade de pleitear indenização fora da ação de revisão significaria criar “uma forma de decadência não prevista na lei141”.

Reforça a ideação o fato de o art. 5º, LXXV, da CF/88 em nenhum momento ter vinculado a indenização por erro judiciário à revisão da sentença penal, de modo que qualquer interpretação nesse sentido vulneraria, indevidamente, uma garantia fundamental, que deve ser inspirada pelo princípio da máxima efetividade.

Nada obsta, assim, a busca pela indenização em ação própria, ainda que antes da revisão da sentença, caso em que a responsabilidade se lastreará em conduta lícita do Estado- juiz. O mesmo raciocínio se aplica aos casos cíveis, em que não se requer a espera pela rescisão da sentença para legitimar o ingresso da ação de reparação de danos.

Os mesmos fundamentos permitem concluir que a possibilidade da ação de reparação de danos não fica prejudicada nem mesmo pela improcedência da ação rescisória ou

137 V. seção 4.2.2. 138

BRASIL. Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

139 DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1994. p. 175.

140 No mesmo sentido, ARDANT, Philippe. La responsabilite de l’État du fait de la fonction juridictionelle.

Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1956. p.177; SILVA, Juary C. A responsabilidade do

Estado por atos judiciários e legislativos. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 192. 141

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Vol. 2. 5ª ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p 280.

revisional, já que tal resultado nada mais fará do que confirmar a “presunção de verdade legal” de que as sentenças transitadas em julgado já gozavam – o que, como exposto, não inviabiliza a reparação dos danos indenizáveis.

Destaque-se que, nesse contexto, o trânsito em julgado deixa de ser considerado óbice à reparação, para ser alçado à categoria de pressuposto da mesma: se a sentença transitada em julgado vier a ser rescindida, e a restituição ao status quo ante seja lograda plenamente (situação de rara ocorrência, é verdade, ante as gravosas consequências de um dos mais poderosos veículos do poder estatal, mas teoricamente possível), não haverá que se falar em dano. Do contrário, o dano pode consistir justamente na impossibilidade de desconstituição dessa sentença, pelo que a indenização ao lesado impor-se-á.

7.1.6.4 Responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais como afirmação da