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3.3 TEORIAS PUBLICISTAS DA RESPONSABILIDADE

3.3.2 Teoria do risco

Sem abandonar a teoria da culpa do serviço, o Conselho de Estado francês passou a adotar a teoria do risco, que serve de fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado92. A noção de culpa é, então, substituída pela noção de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço e o prejuízo experimentado pela vítima, derivado do risco ínsito à atividade administrativa. Nela, pouco importa se houve ou não um funcionário culpado ou se o serviço funcionou bem ou mal. Tampouco a Administração poderá se livrar da responsabilidade provando que não agiu com culpa, seja do serviço, seja do funcionário. Basta, pois, demonstrar a relação de causalidade entre a ação administrativa e o prejuízo sofrido pelo terceiro93.

O próprio Direito Civil já vem adotando a teoria do risco em diversos cenários. Tal ideação resulta de uma visão que substituiu o patrimonialismo do século XIX, fruto dos ideais iluministas, pela concepção mais solidarizante da sociedade, na qual tem lugar especial a valorização da dignidade da pessoa humana94. Nesse sentido, sintomática foi a edição do CDC, de 1990, que incorporou a teoria do risco nas relações de consumo95 e tornou lá, por primeiro, despicienda a distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual96.

O próprio CC/02, apesar de ainda prever a culpa como núcleo do sistema (arts. 186 e 187), introduziu a teoria do risco num cláusula geral (art. 927, parágrafo único), além de

90 DUEZ, Paul. La responsabilité de la Puissance Publique (en dehors du contract). Nouvelle édition

entiérement refondue. Paris: Dalloz, 1938. p. 40-47.

91 V. seção 4.1.2, infra. 92

DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 42.

93 DUEZ, op. cit., p. 59.

94 PEDRO, Fábio Anderson de Freitas. A socialização da responsabilidade civil: a evolução do subjetivo-liberal

ao objetivo-social. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, vol. 18, n. 32, p. 65-77, dez. 2011. p. 65.

95 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1990.

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

também adotar expressamente a teoria unitária da responsabilidade civil97. Tal passo civilista, nitidamente, tanto influenciou quanto foi influenciado pelas modernas concepções da responsabilidade do Estado, de modo que aí se percebe, na verdade, uma reaproximação entre Direito Administrativo e o Direito Civil, que reunificam suas bases, no que se refere à responsabilidade civil, a partir da noção de risco. Ao tornar a análise da culpa desnecessária para a responsabilização, abrem-se as portas para a responsabilidade decorrente de atos lícitos, ou seja, de atos praticados mesmo em conformidade com o ordenamento jurídico98.

A teoria do risco admite variações acerca da amplitude do risco a ser assumido pelo autor do fato, falando-se, aí, em risco administrativo, risco integral ou risco social99.

Pelo risco administrativo, em que pese não se discutir a existência ou não de culpa, pode o Estado furtar-se à indenização caso demonstre a inexistência de nexo causal entre uma conduta sua e o dano alegado – o que pode ser obtido pela prova de situação de caso fortuito ou força maior, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro. E, quando tais fatores, apesar de não excluírem o liame causal, concorrem para o evento danoso, verá o Estado ser minimizada a sua responsabilidade, proporcionalmente à sua relevância na produção do dano100.

O risco integral, por sua vez, é a modalidade extremada da doutrina do risco101, pela qual o Estado assumiria a responsabilidade por qualquer dano causado a qualquer vítima, quando algum comportamento ou omissão de agente seu se inserir na linha de desdobramento causal, numa concepção extremamente alargada de nexo de causalidade. Não cabe, segundo tal teoria, a alegação de excludentes do nexo a fim de elidir a responsabilidade estatal. Nas palavras de Dergint, “obrigar-se-ia o Estado a indenizar todo e qualquer dano, ainda que decorrente de dolo ou culpa da vítima, o que levaria ao abuso e à iniquidade social102”. Por conta disso, sua aplicação no cenário jurídico atual é absolutamente excepcional103.

Por fim, o chamado risco social enseja a chamada responsabilidade sem risco, e tem por fundamento o papel do Estado como garantidor da paz social e da realização das necessidades coletivas e individuais dos cidadãos. Trata-se de obrigação de indenizar imposta

97 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Subchefia para Assuntos

Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

98

V. seção 4.1, infra.

99 Sobre a teoria do risco, também controverte a doutrina acerca do próprio conceito de risco, como será adiante

abordado, na seção 4.1.1.

100 Tais fatores serão melhor abordados quanto do estudo do nexo causal, na seção 4.2.2, infra. 101

STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 750.

102 DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade do Estado por atos judiciais. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1994. p. 45.

103

No Brasil, prevalece que a responsabilidade civil do Estado por danos nucleares, forte no art. 21, XXIII, da CF/88, funda-se no risco integral, apesar de naquele dispositivo isto não estar expresso.

ao Estado, em virtude de danos que não derivam de qualquer comportamento seu104. O objetivo é não deixar a vítima alijada de qualquer reparação, em casos em que não se logra identificar o responsável ou em casos de insolvência do mesmo – o que poria em risco a tranquilidade social105.

Na verdade, apenas impropriamente se pode dizer que se trata de aplicação da teoria do risco, tendo em vista que se trata de mera obrigação de indenizar decorrente de fato de terceiro, imposta por lei. Essa situação que, aliás, ocorre também no direito privado, ex vi, por exemplo, dos arts. 932, 936 e 938 do CC/02, que preveem responsabilidade independentemente da criação ou incremento de qualquer risco pelo indigitado responsável106. Trata-se antes de situações em que o legislador pretendeu assegurar, às vítimas, o direito a alguma reparação, a qual restaria frustrada caso se exigisse a prova da culpa107.

Não havendo qualquer conduta estatal inserida na linha de desdobramento causal do dano, tal “responsabilidade” seria antes uma garantia formatada para bem atender aos reclamos do risco social. O Estado, nessa linha, pode servir-se do sistema de seguros obrigatórios, cujo exemplo mais antigo no direito pátrio é a legislação sobre acidentes de trabalho. Outro caso é o do seguro obrigatório acoplado ao licenciamento de veículos automotores, para cobrir os riscos de acidentes de trânsito108. Tais mecanismos visam assegurar, à vítima de acidentes, uma reparação mínima, sem que se importe em saber, para tais efeitos, quem foi o responsável. Daí se falar em socialização da responsabilidade.

Disso decorre que a teoria do risco, apesar de ser o principal, não é o único fundamento da responsabilidade objetiva, uma vez que existem situações nas quais se a atribui independentemente de culpa ou de criação ou incremento de risco pelo responsável – que, muitas vezes, sequer é o causador do dano.

104 Como é o caso da responsabilidade da União por danos a bens e pessoas provocados por atentados terroristas,

atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo, nos termos do art. 1º da Lei 10.774/2003 (BRASIL. Lei n. 10.774, de 9 de outubro de 2003. Dispõe sobre a assunção, pela União, de responsabilidades civis perante terceiros no caso de atentados terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.744.htm>. Acesso em: 01 jun. 2012).

105 BAHIA, Saulo José Casali. Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 92-93. 106 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos

da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

107 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à

diluição dos danos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p . 29-30.

108

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 289- 290.

No Brasil, como dito alhures, a teoria do risco administrativo foi consagrada expressamente a partir da Constituição de 1946, em seu art. 194109. A previsão da culpa restringiu-se à ação de regresso contra os funcionários causadores do dano, com o que se rejeitou categoricamente a solidariedade entre Estado e funcionário110. Tais dispositivos foram repetidos no art. 105 da Constituição de 1967111 e no art. 107 da Emenda Constitucional (EC) nº 1, de 1969112.

Atualmente, a matéria encontra-se disciplinada pela CF/88 no seu art. 37, § 6º, a qual fez englobar, na mesma teoria, a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, e alterou a referência a “funcionários”, substituindo-a pela noção mais abrangente de “agentes”113.

Embora não tenha constado nos citados dispositivos constitucionais clara referência à responsabilidade objetiva ou à desnecessidade de culpa, não se tem dúvidas que a previsão expressa do elemento subjetivo para viabilizar a ação de regresso contra o agente público num parágrafo permite interpretar o silêncio do caput como eloquente. Identicamente, a não reprodução da tradicional redação constante de Constituições anteriores reforça tal argumento, pelo que não mais se discute a adoção constitucional da teoria do risco na responsabilização do Estado, ao menos como regra geral114. O Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive, há muito sufragou expressamente essa teoria115.

109 Não se olvida que, antes da Constituição de 1946, o direto positivo já havia consagrado, em alguns casos

específicos, a responsabilidade civil do Estado segundo a teoria do risco administrativo, a exemplo do Decreto nº 2.681/1912, que disciplinava a responsabilidade civil das Estradas de Ferro, como já referido na seção 2.2,

supra.

110 BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Subchefia para Assuntos

Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

111 BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Subchefia para

Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 05 abr. 2012.

112 BRASIL. Constituição (1967). Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Subchefia para

Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 05 abr. 2012.

113 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Subchefia para Assuntos

Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%E7ao.htm>. Acesso em: 05 abr. 2012.

114

CAHALI, Yussef. Responsabilidade civil do Estado. 3ª ed. rev. atual. ampl. 3ª tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 32.

115 “CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., 1967, art. 107. C.F./88,

art. 37, par-6. I. A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa e irrelevante, pois o que interessa, e isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, e devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais. II. Ação de indenização movida por particular contra o

O vigente CC/02, em seu art. 43, também consagra a responsabilidade objetiva do Estado, apesar de omitir-se quanto à responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviços públicos116, advindo atrasado em relação à CF/88, no particular.

Ante a clareza de tais dispositivos, não mais se contesta a admissão, no ordenamento jurídico pátrio, da responsabilidade objetiva do Estado. O que ainda pode ser objeto de discussão, isto sim, é a exclusividade de tal teoria para reger apenas ações ou também as omissões do Estado, no exercício apenas da função administrativa ou também das demais funções estatais. Ao longo dos próximos capítulos, essas questões serão enfrentadas.

Município, em virtude dos prejuízos decorrentes da construção de viaduto. Procedência da ação. III. R.E. conhecido e provido” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n. 01135875/210, da Segunda Turma. Recorrentes: José Carlos Deluca Magalhães e s/ mulher. Recorrido: Prefeitura Municipal de São Paulo. Relator: Min. Carlos Velloso. Brasília, 18 out. 1992. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28113587%2ENUME%2E+OU+1135 87%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 07 maio 2012. p. 1).

116 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Subchefia para Assuntos

Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

4 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Durante longo período, a responsabilidade civil fundamentou-se fortemente na culpa, dado o seu caráter marcadamente individualista e subjetivista, o que, aliás, refletiu-se no revogado CC/16. A culpa representava, assim, tradicionalmente, um dos elementos constitutivos do ato ilícito – o elemento subjetivo – ao lado do elemento objetivo, o dano.

A culpa, por si só, nem sempre gera um resultado danoso. Portanto ela só será relevante caso passe do plano puramente moral para a execução material, quando se apresentará sob a forma de ato ilícito1. Não existirá, pois, ato ilícito, ausente a culpa ou o dano, vinculados por um nexo causal; consequentemente, à antijuridicidade deve-se juntar a subjetividade, cumprindo perquirir-se a vontade do agente.

Não há que se confundir, destarte, ilicitude com antijuridicidade – embora seja usual a referência à antijuridicidade como ilícito lato sensu. Antijurídico é o ato pura e simplesmente contrário ao direito, caracterizado pela desobediência às exigências estabelecidas na lei para a sua validade2. A reação típica do ordenamento a casos tais, sobretudo no âmbito do direito público, é a nulidade de tal ato.

Conclui-se, portanto, que o ilícito é uma espécie do gênero antijuridicidade: a chamada antijuridicidade subjetiva. O ato antijurídico é ilícito quando pessoa capaz de entender e querer, violando norma jurídica, por ação ou omissão culposa, lesa direito subjetivo de outrem, causando-lhe dano.

Já a chamada antijuridicidade objetiva consiste em situações consideradas desfavoravelmente pela lei, resultantes de fatos jurídicos stricto sensu ou de atos jurídicos, que causam dano. Nesses casos, pode a lei também impor o dever de indenizar. Embora tanto na antijuridicidade subjetiva (atos ilícitos) como na antijuridicidade objetiva possa-se encontrar a causa de uma obrigação de indenizar, isto não significa que sejam ambas idênticas, pois, na última, o ordenamento não leva em conta o comportamento do agente, para tanto; já na primeira, exige-se um ato voluntário, praticado por quem tem discernimento3.

1 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Vol. 1. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 126.

2 No âmbito do Direito Público, ante a pouca relevância da vontade individual para a formação da vontade do

Estado (que é disciplinada objetivamente pelo direito positivo), a expressão “ato ilícito” é tida simplesmente como sinônima de “ato antijurídico”, no sentido ora exposto. Assim, para evitar equívocos de compreensão, toda vez que neste trabalho se visar destacar o ilícito no sentido técnico ora enunciado, que pressupõe a presença do elemento subjetivo da conduta, especificar-se-á que se trata de ilícito stricto sensu.

3

GOMES, Orlando. Responsabilidade civil. Texto revisado, atualizado e ampliado por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 57-58.

É de se destacar, portanto, que o dever de indenizar não permite, por si só, identificar a existência de um ato ilícito stricto sensu a ensejá-lo. Isto porque, como dito linhas atrás4, dada a teoria da unidade da responsabilidade civil adotada pelo CC/02, a obrigação de indenizar pode ter surgido por determinação legal, sem que o obrigado tenha, efetivamente, cometido estritamente ato ilícito. Tal afirmação é essencial para a devida compreensão da teoria da responsabilidade objetiva.

Não se pode confundir o dever de indenizar, consequência legal (eventual) do ato ilícito, com o próprio ato ilícito. A tendência de alargamento dos casos de responsabilidade sem culpa, ou seja, independentemente da prática de ato ilícito stricto sensu, não se presta a substituir ou modificar o conceito do próprio ato ilícito, antes se tratando de uma tendência à substituição dos fundamentos da responsabilidade5.

O CC/02, ao conceituar ato ilícito em seu art. 1866, foi claro ao prever, entre os requisitos, o elemento subjetivo (“por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência”) e o elemento objetivo (“causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral”), adotando, pois, a teoria aqui exposta.

O fato de o art. 187 do mesmo código ter equiparado a ato ilícito o abuso de direito7 não significa que tal abuso possua natureza de ato ilícito em sentido estrito, uma vez que, no citado artigo, não se prevê o elemento subjetivo para a sua configuração. Contenta-se, para qualificá-lo, com a atipicidade do exercício do direito, mediante desvio de sua função. Sendo tal concepção meramente objetiva – não havendo, pois, que se investigar a culpa do agente –, não é certo concluir que o Código considera-o ato ilícito, mas apenas que o trata, doravante, como uma categoria a ele similar8.

O art. 927 do mesmo código, ao disciplinar a obrigação de indenizar, reporta-se expressamente aos citados arts. 186 e 187, com o que se preservou a regra geral de responsabilidade lastreada na culpa9. Todavia, no parágrafo único do mesmo art. 927, foi

4

V. Seção 2.1, supra.

5 GOMES, Orlando. Responsabilidade civil. Texto revisado, atualizado e ampliado por Edvaldo Brito. Rio de

Janeiro: Forense, 2011. p. 61; 63.

6 “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar

dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro

de 2002. Institui o Código Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República:

Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 05 maio 2012).

7

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (Ibid.).

8 GOMES, Orlando. Responsabilidade civil. Texto revisado, atualizado e ampliado por Edvaldo Brito. Rio de

Janeiro: Forense, 2011. p. 61-62.

9

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (BRASIL., op. cit.).

introduzida uma cláusula geral de responsabilidade objetiva, fulcrada na previsão legal expressa ou na teoria do risco10, divergindo a doutrina sobre a modalidade de risco incorporada nesse dispositivo.

Tem-se que existem atividades que, embora inerentemente perigosas, são indispensáveis para a coletividade. Assim, com base na chamada teoria do risco permitido, admite-se a exploração dessas atividades, desde que se observe uma série de medidas de segurança, para evitar, ao máximo, a efetivação desses danos. Negligenciados tais cuidados, o risco permitido é extrapolado, constituindo-se, assim, um risco extraordinário e ilícito.

No primeiro caso, a responsabilidade pelos danos é propriamente objetiva, já que o dano foi decorrente dos riscos normais da atividade. No segundo caso, o descumprimento das cautelas exigíveis implica na presença de negligência ou imprudência, pelo que se ensejaria a responsabilidade subjetiva.

Contudo, tratando-se de atividade que se possa subsumir na cláusula geral de responsabilidade objetiva, para o lesado será despicienda a discussão sobre a culpa, ainda que,

in casu, ela exista. Tal discussão somente será relevante para o exercício do eventual direito

de regresso, da pessoa condenada à reparação, contra aquele que laborou com dolo ou culpa11, ou, de forma contingente, para fins de dosimetria do montante da condenação, nos termos do