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7.1 SUPERAÇÃO DOS ÓBICES TRADICIONALMENTE OPOSTOS À

7.1.6 Afronta à coisa julgada

7.1.6.1 Natureza jurídica da coisa julgada

Num primeiro momento, sob a tradição romanística, atualmente prevalente na doutrina alemã88, entendeu-se que a coisa julgada seria “um dos vários efeitos produzidos pela sentença ou, ainda, identificar-se-ia com o próprio efeito declaratório89”. Segundo essa ideação, “a autoridade de estabilidade do julgado seria a própria declaração, com força obrigatória e indiscutível, presente em todas as sentenças cognitivas90”. Não participariam da coisa julgada, pois, os efeitos constitutivos e condenatórios.

Tal ordem de ideias é consectária dos fundamentos do próprio Direito Romano, no qual não se falava em autonomia do direito material ante o processual. Por isso, a coisa julgada nada mais era do que o próprio direito consumado pela actio, de modo que a res

iudicata se tornava o único e exclusivo efeito do iudicatum. Nesse passo, seria incoerente

falar em coisa julgada como presunção de verdade: ele era a própria verdade jurídica reconhecida91.

Em Chiovenda, encontram-se fundamentos iniciais, ainda fragmentários, para a superação de tal entendimento, considerando a necessidade de se distinguir os efeitos da

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CAPPELLETTI, Mauro. Juízes irresponsáveis? Traduzido por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1989. p. 29.

88 De que são representantes, como informa Barbosa Moreira, Hellwig, Goldschmidt, Rosenberg, Nikisch e

Tübingen (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 59, vol. 416, p. 9-17, jun./1970. p. 10).

89 TALAMINI, Eduardo. Partes, terceiros e coisa julgada (os limites subjetivos da coisa julgada). In: Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil (e assuntos afins). DIDIER JUNIOR, Fredie;

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (org). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 193-246. p. 193-194. Segundo o autor, essa concepção é adotada por Goldschmit, Schönke, Rosenberg, Lent, Jauernig e Stefan Leible, exemplificativamente.

90 Ibid., p.195.

91 LIEBMAN, Enrico Tulio. Eficácia e autoridade da sentença. Traduzido por Alfredo Buzaid e Benvindo

Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente de Ada Pellegrini Grinover. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 3-4.

sentença, de um lado, e a coisa julgada, de outro. Os efeitos da sentença, em sua lição,

ocorrem e valem perante todos, como se dá com qualquer ato jurídico: por exemplo, um contrato, enquanto vínculo entre A e B, não deixa de dever ser considerado por terceiros que com eles venham a se relacionar; assim também a sentença prevalece perante aqueles que não tomaram parte no litígio.

Tais efeitos, contudo, não se confundem com a coisa julgada, que se restringe às partes. O fato de a sentença ser apta a gerar efeitos perante terceiros não significa que se deva admitir que ela possa prejudicar juridicamente outros, que permaneceram estranhos à lide92. Nesse sentido, Chiovenda, afirma que “la sentencia se limita a las partes y vale sólo como

sentencia entre éstas93”. Em outra passagem, aparta expressamente coisa julgada e efeitos da sentença, ao aduzir que “las partes pueden renunciar a los efectos de la sentencia, no

pretender, aun estando conforme, uma nueva decisión sobre uma relación ya decidida94”. Foi Liebman quem, por sua vez, sistematizou melhor a teoria, ao enunciar a conhecida lição no sentido de que a coisa julgada “não é o efeito da sentença, mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-se dos seus efeitos, quaisquer que sejam, vários e diversos, consoante as diferentes categorias de sentenças95”. Em seu entendimento, a equiparação entre o conceito de coisa julgada e o de efeito declaratório da sentença “deixa sem a proteção da coisa julgada o efeito condenatório e o constitutivo e desconhece, por outro lado, a autonomia do efeito declaratório, que vem a ser absorvido na coisa julgada96”.

O posicionamento, para ele, padece de um grave “erro lógico”, uma vez que o efeito declaratório pode dar-se, inclusive, antes ou independentemente da autoridade da coisa julgada, sem que tenha sua essência desnaturada. Nesse sentido, efeito declaratório pode ocorrer, por exemplo, em atos administrativos, que não transitam em julgado. Assim, “a coisa julgada é qualquer coisa mais que se ajunta para aumentar-lhes [aos efeitos da sentença] a estabilidade, e isso vale igualmente para todos os efeitos possíveis das sentenças97”.

Noticia Talamini que, quanto ao cerne da doutrina liebmaniana em referência, há ampla adesão na Itália e na França, contando com o apoio de Chiara Besso, Micheli, Fazzalari, Verdi, Caponi e Lagarde, dentre outros, e é objeto de “consenso generalizado” no

92 CHIOVENDA, Jose. Principios de Derecho Procesal Civil. Traduzido por José Casais y Santaló. Tomo II,

vol. I. Madrid: Reus, 1941. p. 429.

93 Ibid., p. 432. 94

Ibid., p. 420.

95 LIEBMAN, Enrico Tulio. Eficácia e autoridade da sentença. Traduzido por Alfredo Buzaid e Benvindo

Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente de Ada Pellegrini Grinover. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 6.

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LIEBMAN, loc. cit.

Brasil98. Contudo, em sendas pátrias, conhecida é a ressalva de Barbosa Moreira acerca do tema.

Para este autor, a coisa julgada se relaciona com a imutabilidade do conteúdo da sentença. Critica, pois, a concepção de Liebman acerca da imutabilidade dos efeitos da sentença. Embora concordando que a coisa julgada não poderia ser equiparada a um mero efeito, diagnostica um equívoco em Liebman, uma vez que os efeitos da sentença podem ser modificados ou extintos, seja pela sua normal atuação (por exemplo, o pagamento após a condenação), seja por tratar de direito disponível, quando as partes podem ajustar solução diversa99.

Para ele, a contradição de Liebman reside no fato de que “a imutabilidade (ainda ilimitada) do conteúdo da sentença não importa, é óbvio, na imutabilidade da situação jurídica concreta sobre a qual versou o pronunciamento judicial100”. O que restará inviabilizado é a obtenção de outro comando, junto a qualquer juiz, para aquele mesmo objeto do processo antes decidido pela sentença revestida da coisa julgada.

Mas, como bem observou Talamini, “a crítica de Barbosa Moreira é antes um reparo à fórmula sintética da tese de Liebman (‘coisa julgada é qualidade dos efeitos’) do que uma oposição ao conteúdo da teoria liebmaniana como um todo101”. O próprio Liebman reconhecia que a relação jurídica objeto da sentença pode ser posteriormente modificada pelas partes, sem que isso afete a coisa julgada102. Reconhecia também que a definição da coisa julgada é a

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TALAMINI, Eduardo. Partes, terceiros e coisa julgada (os limites subjetivos da coisa julgada). In: Aspectos

polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil (e assuntos afins). DIDIER JUNIOR, Fredie;

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (org). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 193-246. p.197.

99 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 59,

vol. 416, p. 9-17, jun./1970. p. 12-13.

100 Ibid., p. 15.

101 TALAMINI, op. cit., p. 198.

102 Liebman deixa claro tal entendimento nos seguintes trechos: “De certo modo todas as sentenças contêm

implicitamente a cláusula rebus sic stantibus, enquanto a coisa julgada não impede absolutamente que se tenham em conta os fatos que intervierem sucessivamente à emanação da sentença: por exemplo, se o devedor paga a soma devida, perde a condenação todo o valor” (LIEBMAN, Enrico Tulio. Eficácia e autoridade da sentença. Traduzido por Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente de Ada Pellegrini Grinover. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 25); “De fato, quaisquer que sejam e de qualquer modo que se definam os efeitos da sentença, limita-se a autoridade da coisa julgada a torná-los imutáveis. Observou-se, contudo, que essa definição contradiria a circunstância inegável de que uma relação jurídica que foi objeto da sentença pode ser sucessivamente modificada pelas partes. A objeção, porém, não me parece fundada, porquanto confunde o objeto com o resultado do processo: o que a coisa julgada torna imutável é o efeito da sentença, isto é, a declaração ou a mudança, não a relação jurídica em que incide o efeito, relação sobre a qual conservam as partes plena e íntegra a sua liberdade de disposição. Se uma sentença declara Tício devedor de Caio, pode este, todavia, fazer a remissão do débito; qual é aqui o papel da coisa julgada? A declaração do débito permanece invariável e não poderá Tício negar ter sido devedor antes que o liberasse a generosidade de Caio” (Ibid., p. 183).

“imutabilidade do comando emergente da sentença103”, embora explique que tal imutabilidade se estende aos efeitos da sentença. Disso dessume-se que a concepção de Moreira não nega, mas refina tecnicamente a ideação de Liebman.

Adota-se neste trabalho, pelas razões expostas, a concepção de Liebman, refinada por Barbosa Moreira. Duas consequências serão aqui bastante relevantes: a uma, distinguindo-se entre a autoridade da coisa julgada e os efeitos da sentença, estatui-se que, em que pese a coisa julgada determine a imutabilidade do conteúdo do decisum, os efeitos que dele decorrem não são imutáveis, podendo ser, em muitos casos, livremente alterados pelas partes; a duas, a concepção de coisa julgada como verdade presumida torna-se destituída de fundamento, pois ela “apenas pragmaticamente, torna imutável o resultado da atuação jurisdicional104”.

Ao apartar coisa julgada e efeitos da sentença, tal concepção permite melhor compreender porque a responsabilização do Estado por atos jurisdicionais, ainda que transitados em julgado, não é obstada pela imutabilidade da coisa julgada.