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4.2 NEXO CAUSAL

4.2.2 Excludentes e concausas

Como visto, a depender da teoria adotada, variarão os fatores considerados determinantes para o resultado danoso, os quais serão alçados à categoria de causas. Os demais, que influenciaram o evento, serão meras condições. Nesse sentido, causa e condições não diferem ontologicamente, mas apenas na qualificação jurídica que lhes são emprestadas pelo ordenamento78.

O causador físico do dano pode ser uma força da natureza, um terceiro ou a própria vítima, casos em que poderão ser identificadas as chamadas causas excludentes do nexo de causalidade: a saber, respectivamente, caso fortuito ou força maior79, conduta exclusiva de terceiro, e conduta exclusiva da vítima. Tais causas impedem o estabelecimento da relação causal entre a conduta estatal e o dano, não permitindo o surgimento da responsabilidade do Estado caso tenham produzido o resultado.

Entretanto tem-se assistido a uma gradual relativização do poder de filtro dessas excludentes, cada vez mais afastadas na análise da identificação do nexo causal entre o dano e

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n. 409.203-4 Rio Grande do Sul, da Segunda Turma. Recorrente: Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Lucia Terezinha Pereira Iorio. Relator Originário: Min. Carlos Velloso. Relator para o acórdão: Min. Joaquim Barbosa. Brasília, 7 mar. 2006. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=439294>. Acesso em: 07 maio 2012. p. 39.

78 NORONHA, Fernando. O nexo de causalidade na responsabilidade civil. Revista dos Tribunais. São Paulo,

vol. 816, p. 733-752, out. 2003. p. 734-735.

79 Não se aprofundará, em virtude das limitações deste trabalho, as numerosas propostas de distinção entre os

conceitos de caso fortuito e força maior, lembrando apenas que os mesmos se aproximam por trazerem consequências inevitáveis.

a conduta apontada, com vistas à proteção da vítima80. Nessa linha, tem-se distinguido as noções de fortuito interno e fortuito externo, sendo o primeiro aquele que se liga à pessoa ou à empresa do responsável. Trata-se de uma impossibilidade relativa de evitar o dano, ou seja, uma impossibilidade para o agente. Já o fortuito externo corresponde à ocorrência de um fato sem ligação alguma com a empresa ou a pessoa do responsável, sendo uma impossibilidade absoluta, para todos81.

Assim, no contexto da responsabilidade objetiva, somente o fortuito externo deve ser considerado excludente de causalidade, uma vez que o fortuito interno integra o risco da atividade82. Não obstante, a jurisprudência pátria tem estendido a responsabilidade por risco em casos de fortuitos externos, quando o mesmo é considerado uma causa conexa à atividade do autor. Destaca-se que o fato de terceiro pode ser, em tudo, equiparado à situação de caso fortuito, uma vez que, não havendo qualquer domínio do indigitado responsável sobre a conduta de quem com ele não mantém relação, tal conduta afigura-se, de regra, imprevisível. Por tal razão, aplica-se a tal excludente o mesmo raciocínio desenvolvido supra, a respeito de diferençar se o mesmo decorre de fator completamente externo à atividade, caso em que não haverá responsabilidade, ou se o decorre de uma atividade conexa ou dá ensejo a uma situação de estado de necessidade83. Nesses casos, embora não se exonere a responsabilidade, poderá o responsabilizado manejar ação de regresso em face do verdadeiro culpado84.

80

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 68.

81 MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. Revista dos Tribunais.

São Paulo, vol. 854, p. 11-39, dez. 2006. p. 30.

82

DUEZ, Paul. La responsabilité de la Puissance Publique (en dehors du contract). Nouvelle édition entiérement refondue. Paris: Dalloz, 1938. p. 62.

83 São exemplos reconhecidos pela jurisprudência nacional: danos causados por assaltos ocorridos em

estacionamento de hipermercado e shopping center (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.

419.059 - SP, da Terceira Turma. Recorrentes: Porto Seguro Companhia de Seguros Gerais, Supermercados

Paes Mendonça S/A, Julie Caroline França Jordão e outros. Recorridos: Os mesmos. Relatora: Min. Nancy

Andrighi. Brasília, 19 out. 2004. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=437266&sReg=200200214026&sData=200 41129&formato=PDF>. Acesso em: 08 jun. 2012); no interior de agência bancária (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no agravo de instrumento n. 997.929 - BA, da Quarta Turma. Agravante: Banco Bradesco S/A. Agravados: Isa Novas Sobral e Outros. Relatora: Min. Maria Isabel Gallotti. Brasília, 12

abr. 2011. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=1051538&sReg=200702949009&sData=20 110428&formato=PDF>. Acesso em: 08 jun. 2012); extravio de talonário de cheques durante o transporte,

posteriormente utilizado (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n. 685.662 - RJ, da Terceira

Turma. Recorrente: Rita de Cássia de Sousa Machado. Recorrido: Banco ABN Amro Real S/A. Relatora: Min.

Nancy Andrighi. Brasília, 10 nov. 2005. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=593103&sReg=200401229836&sData=200 51205&formato=PDF>. Acesso em: 08 jun. 2012); Recentemente, uniformizando o entendimento em face dos precedentes sobre atividade bancária, foi editada a Súmula n. 479 do Superior Tribunal de Justiça: “as

instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.

Por fim, a causa do dano pode ser a conduta exclusiva da própria vítima, cabendo, no particular, a análise das hipóteses de consentimento do ofendido e da assunção do próprio risco. Ainda que de risco seja a atividade, não caberá a responsabilização do suposto autor quando o bem jurídico lesado for disponível e a vítima tiver dado seu consentimento, nem quando a vítima tenha, voluntária e conscientemente, assumido o risco de dano a bem jurídico indisponível85.

Há situações, porém, em que tais excludentes não possuem aptidão para, por si sós, produzirem o resultado danoso, somando-se a outra conduta para, em conjunto, gerarem o dano. Em situações tais, tratar-se-ão de concausas, que não impedirão o nexo causal, mas atenuarão, proporcionalmente, a responsabilidade. Concausas são, portanto, outras causas que têm capacidade de influenciar o processo de relação de causalidade já em andamento86.

Como visto, não é fácil a determinação do nexo causal, sobretudo quando se aborda situação para a qual concorre uma pluralidade de circunstâncias. E, a depender das premissas teóricas adotadas, diversas podem ser as conclusões obtidas, não raro absolutamente opostas87.

Mas algumas decorrências podem ser inferidas do quanto até aqui exposto. As concausas pré-existentes, na medida em que já existiam ao momento da deflagração do nexo causal, não têm aptidão para rompê-lo. Com relação às concausas supervenientes, somente serão aptas a romper o desdobramento causal quando venham a adquirir o status de causa necessária do dano, tendo, nesse sentido, por si só produzido o resultado danoso. Não o fará caso apenas agrave ou reforce o iter causal. Idêntico raciocínio pode ser feito em relação às concausas concomitantes88.

O indigitado autor do fato danoso poderá escusar-se da indenização, nesse sentido, se provar que, apesar da necessariedade da causa, o dano aconteceu efetivamente em virtude de um fato novo – concomitante ou superveniente – e independente, que sozinho pode ser considerado a origem do liame causal e, por isso, exclui a anterior relação de causalidade.

Súmula n. 479. Brasília, 27 jun. 2012. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/SearchBRS?b=SUMU&livre=@docn='000000955'>. Acesso em 08 ago. 2012).

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MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 854, p. 11-39, dez. 2006. p. 31.

85 MORAES, loc. cit.

86 BARROS, Raimundo Gomes de. Relação de causalidade e o dever de indenizar. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, vol. 27, p. 32-41, jul./set. 1998. p. 37.

87 SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Nexo causal e excludentes da responsabilidade extracontratual do Estado. Interesse Público, Belo Horizonte, ano 12, n. 59, jan./fev. 2010. Biblioteca Digital Fórum. Disponível em:

<http://www.bidforum.com.br/bid/PDIexibepdf.aspx?tipoConteudo=Normal&vw=S&pdiCntd=65363>. Acesso em: 20 maio 2012. p. 2.

Nesse conjunto se incluem os referidos fatos qualificados como casos fortuitos, de força maior, de terceiros ou da própria vítima89.

É válido relembrar que, nos casos de responsabilidade estatal por omissões, a causalidade será estabelecida justamente por uma dessas causas: o causador real do dano é a força da natureza, o terceiro ou a própria vítima. Mas o Estado responderá por ter, como dito, um dever legal de evitar tal dano, pelo que já se afirmou que nesses casos a causalidade é normativa90. Mas, para atrair a responsabilidade, o Estado tem que ter, em concreto, condições efetivas de impedir a produção do dano. Assim, as omissões estatais ou serão ilícitas, por violar o referido dever de agir, ou não ensejarão a responsabilidade do Estado.

Conquanto predomine na prática dos tribunais a teoria da causalidade necessária, tem- se que, cada vez mais, afigura-se inviável uma uniformidade, vez que os intrincados problemas gerados pela causalidade impõem a adoção, pelo julgador, do preceito da razoabilidade. Referido entendimento se coaduna com a complexidade inequívoca da causalidade múltipla, realidade fática que se entrelaça com o paradigma da pós-modernidade e impõe a análise in concreto de cada situação fática, a fim de obter a justa solução. Assim, tem-se que a determinação do nexo causal torna-se, inexoravelmente, uma questão de fato. A própria jurisprudência brasileira, como observou Tepedino, apresenta uma variedade de soluções, decorrente de uma diversidade de hipóteses, sendo aparentemente contraditória91, mas o que se deve lembrar é que, no particular, nenhuma teoria ou regra deve ser aplicada de forma automática.

Nesse diapasão, a expressão “dano direto e imediato”, contemplada tanto no Código Civil vigente como no anterior, presta-se à interpretação dos juristas, uma vez fixado que sua significação não é afeita apenas a um critério cronológico. Apenas à luz de cada caso concreto é que se poderá identificar se determinado fato foi ou não causa do dano, para o que será essencial o recurso à razoabilidade, seja para qualificá-lo como causa adequada, seja como causa necessária. Isso demonstra que tais teorias não se distinguem ontologicamente: trata-se, antes, de uma questão de grau de convencimento. A extrema vacilação doutrinária é demonstração da real impossibilidade de apartar tais teorias.

89 NORONHA, Fernando. O nexo de causalidade na responsabilidade civil. Revista dos Tribunais. São Paulo,

vol. 816, p. 733-752, out. 2003. p. 750.

90 V. seção 4.1.2, supra. 91

TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade. Revista Jurídica. [São Paulo], ano 50, n. 296, p. 7- 18, jun. 2002. p. 15.

O que não se pode aceitar é que se aponte, arbitrariamente, um dos fatos integrantes da cadeia causal como o fato gerador da responsabilidade92. Portanto a decisão que considerar determinado fato como causa necessária do dano alegado deve ser racionalmente fundamentada, à luz de um juízo de ponderação lastreado na máxima da proporcionalidade93.

O exposto demonstra que se constata, cada vez mais, “a erosão do nexo causal como filtro da reparação94”. Nesse contexto, deve-se ter o cuidado para que a ampla margem de discricionariedade na aferição da causalidade jurídica não resulte em insegurança no que concerne às próprias responsabilidades, nem produza decisões incoerentes. Já se afirmou que na análise do nexo causal interferem “fatores os mais variados, de cunho mais político, moral e ideológico do que jurídico, e que tornam verdadeiramente imprevisível o resultado de certas demandas95”, contra os quais se deve acautelar.

Do contrário, restarão estimulados pedidos de reparação fundados mais na penúria da vítima do que na possibilidade jurídica de imputação do infortúnio ao sujeito apontado como responsável, ensejando a chamada vitimização social ou blame culture96. Trata-se de postura a se evitar, por constituir um desvio de finalidade da teoria da responsabilidade civil, que “imputa a responsabilidade de tragédias pessoais a outros indivíduos ou agentes econômicos que acabam suportando, individualmente, um ônus que uma postura coerente atribuiria à sociedade como um todo, e não simplesmente à pessoa mais próxima da fatalidade97”. O infortúnio puro e simples deve ser objeto de preocupação da assistência ou da previdência social, não da responsabilidade civil, a qual possui pressupostos próprios para sua mobilização.

Tal preocupação, contudo, tem importância diferenciada quando o causador do dano é o Estado, tendo em vista que a condenação que lhe venha a ser imposta já implica, pela sua própria natureza, na repartição desse ônus por toda a sociedade, que o financia. A questão, assim, ganha outra coloração: a de definir, razoavelmente, os danos que merecem ser compartilhados por toda a sociedade (quando caberá ao Estado assumi-los) e os danos que devem ser suportados individualmente pela vítima. Mas, como visto, a análise do nexo perde

92

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.80.

93 Que, como adiante se demonstrará (seção 6.4), são premissas do direito fundamental à boa administração e à

boa jurisdição.

94 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à

diluição dos danos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 78.

95 Ibid., p. 66-67.

96 PEDRO, Fábio Anderson de Freitas. A socialização da responsabilidade civil: a evolução do subjetivo-liberal

ao objetivo-social. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, vol. 18, n. 32, p. 65-77, dez. 2011. p. 71.

sua relevância nesse particular, restando, pois, apenas ao dano o papel de elemento filtrante da responsabilidade.