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6.4 REFLEXOS PRÁTICOS

6.4.2 Dever de motivação

A racionalidade do processo de sopesamento, na visão de Alexy, está condicionada à fundamentação da decisão, ideia com a qual busca refutar as críticas dos que imputam à sua teoria a pecha de modelo aberto e irracional. Expressamente, ele reconhece que “se o sopesamento se resumisse à formulação de um tal enunciado de preferências e, com isso, à determinação da regra relacionada ao caso – que decorre desse enunciado –, o sopesamento, de fato, não representaria um procedimento racional”108, mas configuraria um modelo

decisionista, que se contrapõe ao modelo fundamentado por ele proposto.

Nesse modelo, Alexy desloca o problema da racionalidade do sopesamento para a fundamentação racional dos enunciados das regras de direito fundamental atribuídas que estabelecem a preferência condicionada entre princípios colidentes109. Tal fundamentação deve basear-se no que ele chama de lei do sopesamento, assim enunciada: “quanto maior for o grau de não-afetação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da

108 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São

Paulo: Malheiros, 2011. p. 164.

109 Em suas palavras: “O modelo fundamentado, por sua vez, distingue entre o processo psíquico que conduz à

definição do enunciado de preferência e sua fundamentação. Essa diferenciação permite ligar o postulado da racionalidade do sopesamento à fundamentação do enunciado de preferência e afirmar: um sopesamento é racional quando o enunciado de preferência, ao qual ele conduz, pode ser fundamentado de forma racional” (Ibid., p. 165).

satisfação do outro110”. Assim, conclui ele que, em que pese o sopesamento, isoladamente, não forneça nenhum parâmetro definitivo para a solução dos casos, o modelo de sopesamento como um todo oferece um critério seguro, “ao associar a lei de colisão à teoria da argumentação jurídica racional. A lei de colisão diz o que deve ser fundamentado de forma racional. Nesse sentido, não se pode dizer que ela nada diz e que é, portanto, uma fórmula vazia111”.

Veja-se como Alexy insiste em afirmar que a racionalidade de sua proposta repousa na coerente fundamentação da regra que estabelece a preferência condicionada de um princípio em face do princípio colidente. Interpretando, pois, a contrario sensu, suas palavras, é forçoso reconhecer que em sua obra encontram-se elementos para tachar de irracionais decisões, que, a pretexto de aplicar a técnica do sopesamento, não logram fundamentar-se coerentemente, à luz de sólida argumentação jurídica, em face dos condicionantes fáticos e jurídicos do caso posto à decisão.

E, como imperativo de racionalização das decisões, é que se deve exigir, para a sua perfeita legitimidade, motivação consistente e coerente, com base na hierarquização axiológica dos princípios eventualmente em conflito. Este é o comando decorrente do dever de escolher bem, uma das facetas do direito à boa administração e, identicamente, à boa jurisdição.

Legítima será, pois, a “liberdade” decisória exercida em conformidade com as regras e, acima delas, com os princípios e objetivos fundamentais da Constituição, o que deve ser, caso a caso, demonstrado racionalmente. Nesse sentido, o Direito Público deve ser entendido, nas palavras de Juarez Freitas, como “o direito da motivação consistente e do controle principialista e fundamentado das decisões estatais112”.

Nesse ensejo, cabe lembrar que o mérito do ato administrativo é insindicável pelo Judiciário – já que se trata da função típica da Administração decidir a melhor forma, dentro dos limites que lhe são inerentes, de atender ao interesse público na efetivação dos objetivos constitucionais, por estar mais bem equipada e estruturada para tais análises sob o ponto de vista macro113. O mérito apenas pode ser revisto pela própria Administração, o que se pode proceder por meio do próprio agente prolator da decisão ou por recursos administrativos (autotutela). Da mesma forma, o mérito do ato jurisdicional é insindicável pela

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ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 167.

111 Ibid., p. 173-174.

112 FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 16.

Administração, e somente pode ser revisto pelo próprio Judiciário (reconsideração pelo próprio magistrado, nos casos legalmente admitidos, ou em sede de recursos ou ações de impugnação próprias).

Como já afirmado supra114, uma das distinções entre o ato administrativo e o jurisdicional se dá quanto ao momento da atuação: o ato jurisdicional tem lugar em um segundo momento, quando o sujeito obrigado não se desincumbe de suas obrigações. O esperado, idealmente, é que os sujeitos cumpram espontaneamente as obrigações a que estão vinculados. Por tal razão é que, no aspecto específico do controle judicial da administração pública, os atos administrativos podem ser revistos, nos aspectos ligados à legalidade (no sentido amplo da juridicidade115), pela atuação jurisdicional.

O controle jurisdicional das decisões administrativas, nesse ensejo, não se pode voltar para a análise de mérito propriamente dito, mas para a motivação obrigatória das decisões tomadas, e sua compatibilidade plena com os princípios constitucionais e a finalidade da efetivação dos direitos fundamentais. A partir das razões declinadas é que o ato será sindicado, não para se identificar se a conduta foi a melhor, mas se foi racionalmente fundamentada e legitimamente aceitável.

Contudo o controle de mérito do ato jurisdicional possui bases bem mais estreitas. Os recursos judiciais são cravados de requisitos para sua admissibilidade, e as sucessivas reformas do direito processual têm tornado ainda mais excepcional o seu cabimento. Vias autônomas de impugnação (cujo exemplo palmar é a ação rescisória) são de ainda mais difícil manejo. E a garantia constitucional da coisa julgada perpetua a decisão tomada, o que pode chegar a impedir, definitivamente, a rediscussão do mérito do ato jurisdicional.

As constatações que se acabam de fazer, apesar da evidente obviedade, são relevantes para destacar o quão importante é a necessidade de motivação das decisões, sobretudo das jurisdicionais, considerando que as possibilidades de sua revisão são muito mais limitadas que a dos próprios atos administrativos.

A questão ganha ainda mais relevância quando se constata que os fundamentos da decisão, seja do juiz, seja do administrador público, são, em larga medida, probabilísticos116, mesmo diante da mais estrita previsão legal. A cognição humana possui limitações, derivadas, por exemplo, do atual desenvolvimento tecnológico para apurar danos futuros ou de condutas

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V. seção 5.2.

115 Acerca da evolução da legalidade para a juridicidade, já noticiada na seção 5.2 desta dissertação, v.

BARRETO, Lucas Hayne Dantas. Atuação administrativa contra legem com fundamento na máxima da eficiência. Revista Síntese [de] Direito Administrativo, São Paulo, ano VII, n. 79, p. 69-89. jul. 2012.

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FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração

dolosas de terceiros que distorcem a verdade disponível ao julgador, de modo que uma decisão jurisdicional pode significar a imutabilidade jurídica do provimento e a cristalização de danos injustos, nos casos em que a probabilidade antevista não se concretiza.

Em qualquer decisão, o direito fundamental à boa jurisdição sempre vinculará a atuação estatal, conferindo ao magistrado apenas a liberdade necessária para o desempenho adequado de suas funções – o que implica em uma atuação nem excessiva, nem omissa, ou seja, proporcional. Tal direito fundamental impõe à jurisdição o dever de observar a totalidade dos princípios constitucionais que regem a sua atividade, sempre orientada finalisticamente para a efetivação dos demais direitos fundamentais.

Considerando o exposto na seção anterior, tem-se que toda decisão, não importa a carga de discricionariedade ou vinculação que contenha – ante a necessidade de observância dos princípios constitucionais – deve ser lastreada na proporcionalidade. Em consequência, a motivação, assim entendida como a indicação dos fundamentos de fato e de direito que levaram o agente a adotar tal decisão, passa a ser obrigatória, pois é a partir da motivação que se viabilizará a apreciação intersubjetiva do ato, e, consequentemente, a legitimação do controle e da apuração das consequências dos atos. Por tal razão, o dever de motivação é um dos mais relevantes aspectos do direito fundamental à boa jurisdição.

Sua relevância se avulta na revelação dos princípios jurídicos envolvidos e as ponderações realizadas na decisão do caso concreto, de sorte que permita o debate em bases racionais e a determinação de critérios capazes de nortear novas decisões de maneira isonômica117. É, justamente, a devida motivação, um instrumento de combate às arbitrariedades ocultadas sob o manto de uma suposta “independência”. São os motivos alegados que permitem a aferição da legitimidade da decisão, e sua compatibilidade com os objetivos constitucionais.

É por isso que a discricionariedade, a autonomia, a independência funcional – ou qualquer que seja o nome que se empreste à liberdade (jurídica) para tomar decisões públicas – é delimitada, em sua extensão, pelo direito fundamental à boa administração pública ou à boa jurisdição. Tal liberdade, desvinculada, seria uma afrontosa arbitrariedade, geradora de lesão a direitos, pelo que se preconiza emprestar o alcance devido ao controle governado por princípios, sem frouxidão ou vinculação excessiva118.

117 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do Direito Civil e seus efeitos sobre a

responsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 29, p. 233-258, jun./dez. 2006. p. 235-236.

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FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração

Nesse sentido, não se desincumbe do dever de motivação a autoridade que lança alegações de cunho genérico. É insuficiente para a devida motivação alegar-se que a decisão é discricionária, ou que o agente goza de “independência” para decidir. São justamente os motivos alegados, especificamente demonstrados, que permitem o controle adequado do ato, para aferir se o mesmo encontra-se viciado por excesso ou omissão. Em suma, a motivação é o veículo da interdição da arbitrariedade, pelo que sua exigência deve ser tão mais rigorosa quanto maior for a autonomia decisória do agente público.

Só uma motivação consistente oferece razões universalizáveis e satisfatórias, aptas a conferir eficácia ao princípio da impessoalidade e ensejar a criação de um ambiente seguro e confiável para as relações jurídicas de longo prazo. Ademais, tende a impedir prejuízos e danos juridicamente injustos a direitos de terceiros119, justamente porque impõe a demonstração de reflexão racional e ponderação da questão envolvida na decisão sob diversos ângulos, com o que se produz uma decisão mais cautelosa e mais atenta aos deveres de prevenção e precaução, adiante examinados.