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3.3 TEORIAS PUBLICISTAS DA RESPONSABILIDADE

3.3.1 Teoria da culpa do serviço

A teoria em referência visava substituir a ideia da culpa do funcionário pela noção de culpa do serviço (também tida por culpa anônima), assim entendida, segundo a clássica lição de Paul Duez, como aquela existente quando “1º le service a mal fonctionné (culpa in

commitendo); 2º le service n’a pas fonctionné (culpa in omittendo); 3º le service a fonctionné tardivement79”. Para o francês, essa divisão corresponde, essencialmente, à evolução cronológica da jurisprudência do Conselho de Estado, sendo que, no primeiro título, se incluem os casos de comportamentos e atividades da Administração suscetíveis de causar danos, que são os de mais evidente identificação, contemplados nos arestos iniciais.

Com relação ao não funcionamento do serviço, trata-se de situação na qual o Estado, posto que obrigado a agir, não o faz. Comete assim uma falta, caso em que deve reparar as consequências de sua inação. O exercício de uma competência administrativa não é um privilégio, mas um dever para o agente que tem obrigação funcional de ser vigilante.

Valendo tal assertiva não só para os casos de competência vinculada, esta foi uma alternativa encontrada pelo Conselho de Estado para controlar o poder discricionário da Administração: apesar de não poder obrigá-la a agir, por não haver, estritamente, ilegalidade, poderia declará-la responsável pelas consequências na omissão80.

Por fim, adveio a responsabilidade pela lentidão do serviço, modalidade mais recente de culpa administrativa. A Administração tem por dever funcional ser diligente, e a falta de certo grau de diligência administrativa deve ser sancionada pela responsabilidade.81.

Em todas as três categorias, não importa se o dano é causado por um ato jurídico ou um fato material: ambos podem, igualmente, ensejar a responsabilidade. Ademais, não é necessário que tenha tido lugar uma ilegalidade para que se reconheça a responsabilidade, bastando a ocorrência de negligência ou erro de fato para tanto. E, por fim, supera-se definitivamente a distinção entre atos de império e atos de gestão, sendo tal separação irrelevante para a configuração do dever de indenizar82.

Como se pode observar, a grande contribuição de Duez à teoria da responsabilidade civil do Estado repousa na sistematização do afastamento entre a noção de culpa do

79 DUEZ, Paul. La responsabilité de la Puissance Publique (en dehors du contract). Nouvelle édition

entiérement refondue. Paris: Dalloz, 1938. p. 27.

80 Ibid., p. 29-30. 81

Ibid., p. 34-35.

funcionário e a de culpa do serviço, tornando desnecessário precisar, dentro do universo dos servidores estatais, aquele que laborou com culpa individual. Afasta-se definitivamente das antigas noções de culpa in vigilando ou in elegendo das pessoas de direito público, bem como as analogias com as regras privadas de responsabilidade do patrão ou comitente por seus funcionários ou prepostos83.

A culpa administrativa, como defendeu Duez, deve, nesse contexto, ser fundada em caracteres próprios, a saber: culpa autônoma, primária, anônima, matizada e geral.

Por culpa autônoma, entende-se a culpa desapegada das noções de direito civil, sendo uma construção original a partir dos princípios de direito público. Tal concepção foi cristalizada no já referido caso Blanco, no qual o autor pleiteou a responsabilidade do Estado com fundamento no Código Civil francês. Todavia o Conselho de Estado, apesar de reconhecê-la, fixou expressamente que a mesma não pode ser regida pelos princípios ali estabelecidos, mas por regras especiais que variam de acordo com as necessidades do serviço e com o imperativo de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados84.

O caráter primário da culpa do serviço revela-se na possibilidade de a vítima acionar diretamente o Estado, sem precisar acionar por primeiro o funcionário ou provar sua insolvência. A personalidade do agente não mais aparece, pois sua figura é absorvida dentro da organização administrativa, da qual é um simples órgão.

É dita anônima por não exigir que se identifique a culpa de um funcionário nominalmente identificado. Basta demonstrar uma má condução do serviço, no qual o dano pode ser imputado a uma falha, seja na sua organização, seja no seu funcionamento. Julga-se o serviço, e não mais o agente85.

Ademais, nem todo serviço defeituoso ensejará responsabilidade. A culpa deve ser

matizada de acordo com o serviço, o local e as características. Deve-se apreciar a culpa in concreto, segundo a diligência média que se pode legitimamente esperar do serviço86.

83 SERRANO JÚNIOR, Odoné. Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais. Curitiba: Juruá, 1996. p.

56.

84 FRANÇA. Tribunal des Conflits. Arrêt de conflit n. 00012. Recorrente: Adolphe Z. Recorrido: Jean Y.

Relator: M. Mercier. Paris, 8 fev. 1873. Disponível em:

<http://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriAdmin.do?idTexte=CETATEXT000007605886&dateTexte=>. Acesso em: 02 maio 2012. No original: “[...] la responsabilité, qui peut incomber à l’Etat, pour les dommages causés aux particuliers par le fait des personnes qu’il emploie dans le service public, ne peut être régie par les principes qui sont établis dans le Code civil, pour les rapports de particulier à particulier; [...] cette responsabilité n’est ni générale, ni absolue ; qu’elle a ses règles spéciales qui varient suivant les besoins du service et la nécessité de concilier les droits de l’Etat avec les droits privés”.

85 DUEZ, Paul. La responsabilité de la Puissance Publique (en dehors du contract). Nouvelle édition

entiérement refondue. Paris: Dalloz, 1938. p. 21-24.

Por fim, a culpa deve ser geral, englobando todas as entidades que integram a Administração Pública. A relevância que Duez deu a esse caráter deve-se à relutância inicial da jurisprudência francesa em conferir às comunas o mesmo tratamento dado ao Estado central, aplicando-lhe as teorias de direito privado mesmo após consolidado o entendimento acerca da autonomia da culpa87.

Como restou demonstrado, a culpa ainda é elemento nuclear dessa teoria publicista, de modo que não é correto considerá-la vertente de responsabilidade objetiva. É, isto sim, reponsabilidade subjetiva, lastreada na culpa, posto que redefinida segundo critérios de direito público.

Em diversas situações, ainda assim seria um esforço desproporcional para o particular provar a culpa anônima, porquanto provar que o serviço não funcionou a contento implica, não raro, em conhecer a intimidade da máquina pública, seu funcionamento, limites e possibilidades, o que inviabilizaria a reparação. Como quem quer os fins não pode negar os correspondentes meios, tal teoria passou a contemplar uma presunção de culpa, pelo que alguns autores defendem que se trata de teoria distinta, a que chamam de teoria da culpa presumida88. Contudo o máximo que se poderia reconhecer é que a “culpa presumida” seria uma mera variante da teoria da culpa anônima, uma vez que seus fundamentos são rigorosamente os mesmos, tratando-se de distinção tão somente processual: a mera inversão do ônus da prova.

Dispensando-se o lesado da prova da culpa (anônima), tal concepção faz parecer que a culpa é irrelevante, pelo que se confundiria com a responsabilidade objetiva. Mas não é esse o caso, pois o Estado poderia se esquivar da reparação mediante a prova de que o seu serviço não padecia de culpa – o que demonstra sua permanência subjacente na questão89.

Da doutrina de Duez, acima referida, dessume-se que não será qualquer culpa do serviço que engendrará a responsabilidade; mas somente aquela dotada de certa gravidade, apreciada in concreto, em cada caso, em função da diligência que o administrado pode legitimamente exigir da Administração. Tal apreciação deve ter em conta as circunstâncias de tempo e de lugar, os encargos do serviço, os recursos disponíveis para fazer face às obrigações, a situação da vítima à vista do serviço público e a natureza do serviço causador do

87 DUEZ, Paul. La responsabilité de la Puissance Publique (en dehors du contract). Nouvelle édition

entiérement refondue. Paris: Dalloz, 1938. p. 25.

88 V. BAHIA, Saulo José Casali. Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 27;

RIBEIRO, Ana Cecília Rosário. Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais. São Paulo: LTr, 2003. p. 26.

89

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Responsabilidade extracontratual do Estado por comportamentos administrativos. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 70, n. 552, p. 11-20, out. 1981. p. 15-16.

dano90. Parte da doutrina ainda entende que a teoria da culpa do serviço tem aplicação nos casos de responsabilidade por omissões estatais, o que será adiante objeto de consideração91, a fim de reduzir tal doutrina aos seus verdadeiros termos.