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3.2 TEORIAS CIVILISTAS DA RESPONSABILIDADE

3.2.1 Panorama da evolução legislativa pátria

Interessante notar que o direito brasileiro não chegou a admitir a teoria da irresponsabilidade geral46. O princípio da responsabilidade civil do Estado jamais foi posto em dúvida em sendas pátrias47, que se achava, de início, submetido ao direito comum quanto aos efeitos de suas relações com as pessoas do direito privado48. Isto porque, apesar de suas origens profundamente marcadas pela influência do direito romano, a evolução jurídica foi modificada pelo concurso dos elementos liberais que intervieram na educação do pensamento nacional49. Como acentuado mesmo por Ruy Barbosa, ainda no final do século retrasado, “pelo damno causado ao direito de particulares não hesitaram jamais as justiças brasileiras em

44 FRANÇA. Code Civil des Français. Paris: Imprimerie de la République, 1804. Édition originale et seule

officielle. Disponível em: <http://www.assemblee-nationale.fr/evenements/code-civil-1804-1.asp>. Acesso em: 01 maio 2012.

45 SOURDAT, M. A. Traité Général de la Responsabilité ou de l’Action em Dommages-Intérêts em Dehors des Contrats. Tome II. 3éme éditon revue et augmentée. Paris: Imprimerie et Librairie Générale de Jurisprudence, 1876. p. 420.

46 Obviamente, aqui não se considera o período colonial, quando ainda não existia um direito brasileiro. Nessa

época, predominava a irresponsabilidade do Estado de Portugal, coerentemente com o regime despótico de antanho.

47

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Responsabilidade extracontratual do Estado por comportamentos administrativos. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 70, n. 552, p. 11-20, out. 1981. p. 11.

48 CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Lemmert, 1905. p. 493.

49 BARBOSA, Ruy. A culpa civil das Administrações Públicas: acção de perdas e damnos de Antonio Martins

Marinhas contra a Fazenda Municipal: razões finaes. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio de Rodrigues & Comp., 1889. p. 54.

responsabilizar municipalidades, provincias, estados, o governo do imperio, o da republica50”. E, enfatizando sua assertiva, chegou a asseverar que “julgados, na magistratura municipal, na estadual, na federal, repetidos e uniformes, em acções de perdas e damnos, vão dia a dia augmentando o thesoiro opulento de arestos, que fazem talvez da nossa jurisprudencia, a esse respeito, a mais persistente e copiosa de todas51”.

Quando ainda recém-independente, a lei de 20 de outubro de 1823, editada pela Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do então Império do Brasil, declarou em vigor “a legislação pela qual se regia o Brasil até 25 de março de 1821 bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D. Pedro, como Regente e Imperador daquela data em diante52”. Com base nela, permaneceu em vigor a lei de 18 de agosto de 1769, contida nas Ordenações Filipinas, que declarava “a autoridade do Direito Romano e Canônico53”, com o que se legitimou a atribuição de responsabilidade ao Estado por seu funcionário, nos mesmos moldes da doutrina alemã acima exposta54.

Tal concepção foi refletida na redação final da Constituição Política do Império do Brazil, de 1824, a qual, em seu art. 99, declarava a inviolabilidade e irresponsabilidade da pessoa do Imperador55, e no art. 129, a irresponsabilidade do Regente e da Regência56. Contudo, no seu art. 179, XXIX, constava expressamente a responsabilidade dos empregados públicos pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções, e por não fazerem responsáveis os seus subalternos57. Como expôs Maximiliano, “a lei brasileira,

50 BARBOSA, Ruy. A culpa civil das Administrações Públicas: acção de perdas e damnos de Antonio Martins

Marinhas contra a Fazenda Municipal: razões finaes. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio de Rodrigues & Comp., 1889. p. 55.

51 BARBOSA, loc. cit.

52 BRASIL. Lei de 20 de outubro de 1823. Declara em vigor a legislação pela qual se regia o Brasil até 25 de

abril de 1821 e bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D. Pedro, como Regente e Imperador daquela data em diante, e os decretos das Cortes Portugezas que são especificados. Coleção de Leis do Império do Brasil.

Câmara dos Deputados: Brasília, 1833. Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-F_82.pdf>. Acesso em: 05 maio 2012.

53

PORTUGAL. Lei de 18 de Agosto de 1769. Declarando a autoridade do Direito Romano, e Canônico, Assentos, Estylos e Costumes. Ordenações Filipinas. Universidade de Coimbra: Coimbra, 1870. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l3pa725.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

54 V. seção 3.2, supra. 55

“Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.

56 Caso o imperador ao assumir tivesse menos de dezoito anos, o Império seria governado pelo parente mais

próximo que contasse com mais de vinte e cinco anos – o Regente – ou, não existindo, por uma junta de três membros nomeada pela Assembleia Geral – a Regência. V. arts. 121 a 124 da Constituição em referência (BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Subchefia para Assuntos Jurídicos

da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1824. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 06 maio 2012).

57 BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Subchefia para Assuntos

Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 06 maio 2012.

adeantadissima neste particular, desde o tempo do império, tem sido liberal para com os cidadãos e rigorosa com os empregados públicos58”.

A disposição do referido inciso XXIX foi praticamente repetida no art. 82 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 189159. Embora não se tenha contemplado a responsabilidade do Estado de forma expressa, enxergava-se ali uma solidariedade com o seu agente, sem se falar em exclusão da responsabilidade estatal60.

Posteriormente, com o advento do CC/16, foi definitivamente consagrada a teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva do Estado brasileiro, nos termos de seu art. 15, o qual previa que “as pessoas jurídicas de direito publico são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrario ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano61”.

Deve-se registrar que existiu controvérsia acerca da devida interpretação do referido art. 1562. Por não contemplar expressamente o conceito de culpa, parte da doutrina entendeu que ali havia sido consagrada a responsabilidade objetiva do Estado, sob a influência das modernas concepções que já eram ventiladas no direito francês63. Todavia não foi a ideação que prevaleceu, em face do contexto marcadamente individualista que permeava o então novo código64. Ademais, a referência a “representante” remetia às antigas ideias sobre responsabilidade do Estado por seu preposto, de nítido caráter civilista, bem como as menções “procedendo de modo contrário ao direito” e “faltando a dever prescrito em lei” contemplariam a noção de ato ilícito, nas formas dolosas ou culposas65. Tal entendimento era reforçado pelo art. 1.522, que mandava aplicar expressamente a previsão de responsabilidade do comitente por seus prepostos às pessoas jurídicas (art. 1.521, III), e pelo art. 1.523, que exigia prova da “culpa ou negligência” do preposto, no caso.

58 MAXIMILIANO, Carlos. Commentarios à Constituição Brasileira. 2. ed. ampl. Rio de Janeiro: Jacintho

Ribeiro dos Santos, 1923. p. 738.

59 BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Subchefia para

Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

60 MAXIMILIANO, op. cit., p. 602; 738.

61 BRASIL. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Subchefia para

Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República: Brasília, 1916. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em: 05 maio 2012.

62 VELOSO, Carlos Mário da Silva. Responsabilidade civil do Estado. Revista de Informação Legislativa.

Brasília, ano 24, nº 96, out./dez, p. 233-252, 1987. p. 240.

63

V., v.g., MAXIMILIANO, op. cit., p. 739.

64 CAHALI, Yussef. Responsabilidade civil do Estado. 3ª ed. rev. atual. ampl. 3ª tir. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2007. p. 31.

65 CAMPOS, Gabriel de Britto. Evolução histórica da responsabilidade civil. Fórum Administrativo – FA,

Belo Horizonte, ano 11, n. 125, ago. 2011. Biblioteca Digital Fórum. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=74477>. Acesso em: 05 maio 2012. p. 8.

A Constituição de 1934, em seu art. 171, reafirmou a teoria da culpa civil, consagrando, expressamente, a responsabilidade solidária entre o Estado e seu funcionário66. Tais previsões foram repetidas no art. 158 da Constituição de 1937, última a contemplar a responsabilidade do Estado em moldes subjetivos67.