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Responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais como afirmação da

7.1 SUPERAÇÃO DOS ÓBICES TRADICIONALMENTE OPOSTOS À

7.1.6 Afronta à coisa julgada

7.1.6.4 Responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais como afirmação da

A coisa julgada gera efeito não só negativo – impossibilidade de rediscussão da mesma causa em outro processo – mas também positivo. O efeito positivo vincula o julgador, quando a mesma questão estiver sendo discutida de forma incidental em processo posterior. O juiz fica adstrito ao que foi anteriormente decidido, não podendo julgar essa questão de modo diverso, sob pena de malversação da autoridade da coisa julgada. Enquanto o efeito negativo é matéria de defesa, o efeito positivo é utilizado como fundamento de nova demanda.

Como exemplo, tem-se que, decidida em ação própria a paternidade, tal questão não pode ser rediscutida em posterior ação de alimentos. Ainda que a paternidade seja questão incidental na segunda demanda, o juiz não pode julgar diversamente do que já foi decidido. Da mesma forma, decidida em ação própria a validade de contrato de locação, não se pode mais rediscutir a questão incidentalmente em ação de cobrança de alugueres.

Nessa ordem de ideias, se encaixam as palavras de Souza, para quem:

todos devem se comportar nas relações jurídicas entre as partes do processo e o bem da vida nele disputado segundo o estatuído na sentença. Em qualquer outro processo, não importa quem sejam as partes, não importa qual o pedido ou a causa de pedir, não importa o ato que venha nele a ser praticado, como, por exemplo, uma penhora, tem de levar em conta que existe uma certeza jurídica firmada por sentença passada em julgado, por mais injusta que seja tal sentença [...]

Sendo assim, no fundo, admitir ação de indenização contra o Estado, sob alegação de erro judiciário sem revisão da sentença criminal ou rescisão da sentença cível é o mesmo que eternizar lides envolvendo o Estado. Por mais que se queira dizer que a lide é outra [...], a ação de indenização está a questionar a sentença passada em julgado sem prévia revisão ou rescisão, o que não se pode admitir142”.

Concorda-se aqui com tal premissa adotada pelo autor, mas discorda-se de sua conclusão. Aparentemente ele confunde a autoridade da coisa julgada com os efeitos da sentença, equívoco que Chiovenda, Liebman e Barbosa Moreira, retrocitados143, esmeraram- se para superar. O fato de todos deverem se comportar de acordo com o estatuído na sentença é uma projeção dos efeitos da mesma, os quais, como fartamente demonstrado na seção anterior, não são imutáveis – o que nada tem que ver com a imutabilidade do comando sentencial, consectário da coisa julgada. Entender que uma ação de reparação de danos causados por ato jurisdicional constitui questionamento da sentença passada em julgado levaria à necessidade de aceitar, por imposição lógica, que o autor que, por sentença transitada em julgado, teve reconhecido um crédito em face do réu, não poderia, sob pena de estar “questionando a sentença passada em julgado”, perdoar a dívida. Evidentemente, o perdão, no caso, significa a alteração dos efeitos da sentença, o que em nada afeta a coisa julgada: na situação deduzida em juízo, o crédito existia, e isto é o que não pode mais ser discutido.

O desdobramento da questão a que procede Alves de Souza merece também análise. Ao arguir que admitir ação de indenização contra o Estado por erro judiciário, independentemente da desconstituição do julgado, “é o mesmo que eternizar lides envolvendo o Estado”, o autor não se aparta daqueles que defendiam a teoria da irresponsabilidade, sob o fundamento da criação de enormes encargos ao tesouro público. Como já se abordou supra144, se as condenações do Estado são tão frequentes que chegam a comprometer o patrimônio público, isso será um sintoma de uma grave desordem administrativa, que cumpre ser remediada o quanto antes – e o chamamento do Estado à responsabilidade por erros sucessivos é justamente o remédio mais eficaz145.

Mutatis mutandis, se, ao ser chamado a decidir sobre a responsabilidade do Estado por

atos jurisdicionais, mesmo passados em julgado, o Estado-juiz causa novo dano, não se

142 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à justiça e responsabilidade civil do Estado por sua denegação: estudo

comparativo entre o Direito brasileiro e o Direito português. 2006. 427 p. Tese (Pós-doutorado em Direito) - Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006. p. 363-364.

143 V. seção 7.1.6.1. 144 V. seção 3.1.2, supra.

145 SOURDAT, M. A. Traité Général de la Responsabilité ou de l’Action em Dommages-Intérêts em Dehors des Contrats. Tome II. 3éme éditon revue et augmentée. Paris: Imprimerie et Librairie Générale de Jurisprudence, 1876. p. 418.

haverá de utilizar esse argumento para, simplesmente, negar tal direito fundamental ao cidadão. O direito fundamental à boa jurisdição deve ser observado desde o processo original, onde o dano foi causado. Caso tenha havido violação a tal direito, e disso haja resultado dano, caberá, caso não seja a questão resolvida administrativamente, nova ação judicial – na qual também deverá ser observado o citado direito fundamental. Caso violado novamente, por qualquer motivo, isso ensejará novo direito à reparação, e assim sucessivamente. Legítimo é ao cidadão voltar-se contra o próprio Estado e exigir-lhe reparação civil pelo dano, pouco importando que por tal via também enfrente idêntica dificuldade. “Só o acionar já representa uma forma de pressão legítima e publicização do seu inconformismo contra a Justiça emperrada, desvirtuada e burocratizada146”.

Observe-se que tal situação é análoga – na verdade, é decorrência, é a manifestação no plano processual – do fenômeno, já abordado supra147, da “retroalimentação entre os efeitos do inadimplemento e o da obrigação de indenizar148”, diagnosticado por Edvaldo Brito. O inadimplemento de uma obrigação – inclusive a de prestar uma boa jurisdição – produz efeitos, dentre os quais a obrigação de indenizar. Inadimplida tal obrigação, gerar-se-ão normalmente os efeitos do inadimplemento como em qualquer outra obrigação, o que pode fazer surgir nova obrigação de indenizar. E nem por isso se ouvem vozes no sentido de que esse fenômeno significaria uma “eternização das obrigações de indenizar”.

Decerto, sucessivas violações ao direito fundamental à boa jurisdição revelarão sintoma de grave desordem no sistema judicial, caso em que responsabilizar o Estado será uma forma excelente para instá-lo a adotar as providências necessárias ao saneamento das falhas estruturais que serão expostas.

Por outro lado, há casos evidentes em que o trânsito em julgado é o próprio fundamento da ação de indenização a ser proposta em face do Estado. Se um indivíduo beneficiado por sentença absolutória alega a injustiça da perseguição judicial, a prova do trânsito em julgado da decisão que o inocentou passa a ser essencial para a configuração do seu direito à indenização149, assim como o será no caso de buscar indenização pela injusta prisão processual a que foi submetido, tendo sido, ao final do processo, inocentado. O próprio trânsito em julgado demasiadamente tardio ensejará a responsabilidade: seu advento, quando

146 DELGADO, José Augusto. Responsabilidade civil do Estado pela demora na prestação jurisdicional. Busca Legis. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, [1983]. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/9702-9701-1-PB.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2012. p. 16-17.

147 V. seção 2.1 deste trabalho.

148 BRITO, Edvaldo. Revisão do Atualizador. In: GOMES, Orlando. Responsabilidade civil. Texto revisado,

atualizado e ampliado por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2011. passim. p. 12.

149

DUEZ, Paul. La responsabilité de la Puissance Publique (en dehors du contract). Nouvelle édition entiérement refondue. Paris: Dalloz, 1938. p. 255.

extrapola o tempo razoável para sua prolação, é esvaziado de sua utilidade e, com isso, cristaliza o dano à parte150.

Nesse sentido, pode-se ir além: qualquer que seja a decisão transitada em julgado que gere dano indenizável, ela possuirá, como efeito positivo, a impossibilidade de rediscussão da questão na posterior ação de reparação desse mesmo dano. A coisa julgada anterior é justamente o fundamento da demanda de indenização: a mesma tem lugar, inclusive, porque a decisão resta imodificável. Assim, consagra-se a ideia de que posterior ação indenizatória por danos causados por decisão transitada em julgado não viola a autoridade da coisa julgada, antes a confirma e a reforça.

Como já dito, nenhum óbice existe ao reconhecimento de responsabilidade decorrente de atos lícitos, em face do acolhimento expresso em nosso ordenamento da teoria do risco, pelo art. 927, parágrafo único, do CC/02 e pelo art. 37, § 6º da CF/88. Assim, mesmo que a coisa julgada tratasse da “verdade” cristalizada – res judicata pro veritate accipitur, na clássica lição de Ulpiano151 – o fato de essa sentença causar dano indenizável não implica, necessariamente, no fato de ela ser injusta ou ilícita. Dessa forma, não se questiona, na ação de reparação de danos, a integridade da sentença. Como questão prejudicial acobertada pela coisa julgada, deverá a mesma ser tomada como ato lícito.

Assim, é certo que “não é dado aos ordenamentos jurídicos exigir das pessoas comportamento contraditório prescrevendo normas incoerentes, afirmando que determinada conduta é lícita e ilícita152”. Contudo, somente a partir de um apego a vetustas teorias da responsabilidade civil, que a enxergam, exclusivamente, nos atos ilícitos stricto sensu, poder- se-ia compreender a afirmação de Alves de Souza, no sentido de que isso seria “de certo modo, o que ocorreria se o Estado fosse obrigado a fazer cumprir a sentença, respeitando-a como direito certificado, e ao mesmo tempo ter que pagar indenização como resultado de outra sentença ao fundamento de que a sentença anterior que passou em julgado é injusta153”. Como dito e repisado, não é necessário que a “sentença anterior que passou em julgado” seja injusta, para ensejar o direito à indenização; basta que ela haja imposto a alguém um dano jurídico, certo, específico e anormal, a ser distribuído por toda a coletividade, de cujos interesses o serviço público da jurisdição vem ao encontro.

150 V. seção 7.2.2, infra. 151

ROMA. Digesta. Recognovit Theodorus Mommsen. In: ______. Corpus Juris Civilis. Volumen Primum. Editio Stereotypa Quinta. [Berlin]: Berolini Apud Weidmannos, 1889. p. 8.

152 SOUZA, Wilson Alves de. Acesso à justiça e responsabilidade civil do Estado por sua denegação: estudo

comparativo entre o Direito brasileiro e o Direito português. 2006. 427 p. Tese (Pós-doutorado em Direito) - Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006. p. 364.

Interessante notar, a propósito, que o próprio CPC estatui, em seu art. 468, que “a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas154”. Doutrina e jurisprudência já são assentes em reconhecer a responsabilidade do Estado por leis inconstitucionais, e mesmo pelas constitucionais, se de efeitos concretos. Se a coisa julgada “tem força de lei”, e de ordinário ela possui efeitos concretos, nenhuma razão persistiria, então, para negar a responsabilidade pela coisa julgada, ainda que legítima: ubi eadem ratio ibi idem jus.