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CAPÍTULO 1: EXPERIÊNCIA SOCIAL, JOVENS E UNIVERSIDADE

1.3. UNIVERSIDADE E DIÁLOGO

1.3.5. Diálogos estratégicos para a universidade

Entre os gregos antigos, em especial Sócrates e Platão (1997), dialogar significava captar o logos, uma concepção que, de algum modo, esmaeceu nos séculos seguintes. Embora, vale ressaltar, no jogo de perguntas e respostas, com suas dúvidas e revelações surpreendentes, a maiêutica socrática tenha prosseguido

45 De acordo com estatísticas da UNESCO e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE), possivelmente já existem mais de 170 milhões de estudantes na educação superior (UNESCO, 1999; OECD, 2010). No Brasil, de acordo com o Censo da Educação Superior 2012, existem mais de sete milhões de estudantes (CENSO..., 2013).

nas escolas medievais de uma maneira ou de outra com os famosos diálogos platônicos46. No início do século VI, com o fim das chamadas escolas e culturas pagãs, iniciou-se uma cultura influenciada pelas escolas monacais, episcopais e palatinas – sob a condução da Igreja. Desde o século XII, estas escolas vinham assumindo-se como universidade – parecendo evidenciar uma espécie de consciência histórica do valor do diálogo, da conversatio existente entre os antigos gregos, em que a Paideia e a Politeia faziam parte da mesma harmonia (MENDES, 1968; REALE; ANTISERI, 1990).

Ao surgir, o termo universidade indicava mais uma espécie de corporativismo, menos um centro de estudos. Iniciam com Bolonha e Paris nos séculos XI e XII, respectivamente, os modelos de organização nos quais se inspiraria a maioria das universidades. Prosseguindo nos tempos, gera-se como efeito que a tarefa de ensinar a doutrina revelada seria compartilhada com leigos e que o ingresso de mestres e estudantes originários de quaisquer camadas sociais seria permitido na universidade parisiense.

Crescendo juntamente com a civilização medieval, a universidade possuía pessoas criativas em sua composição, geralmente dotadas de enorme capacidade de crítica e de agudeza lógica (REALE; ANTISERI, 1990). Como lembra Síveres (2006), ela nasceu como espaço de liberdade no qual a corporação de seres humanos considerados livres poderia gerar pensamentos e elaborar conhecimentos. Por volta do século XVI, tornou-se refúgio da atividade intelectual e fator de progresso social, numa Europa vivendo o confronto de culturas e de situações favoráveis à mobilidade das pessoas, às ideias e às descobertas (JOSPIN, 1999).

Feita esta rápida retrospectiva, pode-se inferir que o termo universidade embute a ideia de diálogo, mais ainda se for conferido a este termo o significado estrito de articulação. Hoje, isto é mais válido porque a discussão a respeito da universidade é menos a possibilidade de seu funcionamento e mais a necessidade de sua constante invenção (BUARQUE, 1994) – como no diálogo, que se inventa a cada dinâmica que o elabora –, o que pressupõe a capacidade para estabelecer parcerias profícuas, autocrítica e elaboração de estratégias de atuação. Segundo Síveres (2006, 2010), para ser expressiva à sociedade contemporânea, a educação

superior precisa dialogar com os diversos saberes, sejam universais ou locais, tribais ou globais, técnicos ou éticos, estabelecendo uma relação articulada entre eles e apontando para o novo, o diferente, o inovador.

Neste sentido, podem ser citados alguns exemplos de diálogos estratégicos construídos pela e na universidade. Um deles se refere à ideia de organicidade do sistema educativo do qual participa a universidade no momento em que se articula com a escola da educação básica, envolvendo os mais diversos aspectos do processo educacional, considerado em toda a sua extensão, desde a inclusão do indivíduo no sistema educacional até ou depois da formação acadêmica.

Como lembraram os participantes da Conferência Mundial sobre o Ensino

Superior, os estabelecimentos de educação superior fazem parte de um sistema

contínuo a ser fomentado por ela, “começando tal sistema com a educação infantil e primária e tendo continuidade no decorrer da vida” (UNESCO, 1999, p. 22), cabendo à educação superior articular esses estabelecimentos com os demais da educação básica, contribuindo com pesquisas aplicadas, formação inicial dos professores, preparação qualificada dos cidadãos e realização de consultorias, bem como com estudos relacionados com pedagogias e qualidade do ensino em geral47. Tal incumbência teve confirmação durante a Conferência Mundial sobre Ensino Superior

2009, que conclamou a educação superior para a responsabilidade social de, entre

outras coisas, promover o diálogo intercultural na sociedade (UNESCO, 2009). Vale ressaltar que esta incumbência baseou discussões promovidas pelo fórum Universidade e a Educação Básica: políticas e articulações possíveis, realizado em Brasília em 2011. A par da relevância de reduzir a distância entre a universidade e a educação básica, aquele fórum concluiu pelas seguintes responsabilidades da educação superior, dentre outras: realizar pesquisas educacionais na articulação com a prática pedagógica; vincular o currículo da formação inicial com os conteúdos e habilidades necessárias à atuação dos professores da educação básica; proporcionar aos professores da educação básica um melhor conhecimento sobre as características socioculturais de estudantes e deles próprios; proporcionar oportunidades para que o conhecimento produzido na

47 Conforme os anais da Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, referenciada pelas

conferências regionais de Havana, Tóquio, Beirute e Estados Árabes realizadas na segunda metade dos anos de 1990 (UNESCO, 1999, p. 213).

universidade faça sentido para a escola e vice-versa (CUNHA, Célio da; SOUSA; SILVA, 2012).

Desse modo, os processos educativos, seja qual for o nível de ensino, se fortalecem efetivamente com a presença do diálogo nos estabelecimentos educacionais, repercutindo no relevante papel da universidade de prestar serviços à sociedade no contexto em que ela se situa (SEVERINO, 2007). De acordo com as conclusões convergentes entre os participantes do Fórum Nacional de Educação

Superior, realizado em Brasília em 2009, nos países latino-americanos e caribenhos

a dissociação entre as instituições de educação superior e as demais instâncias sociais tem produzido consequências, como a desigualdade e a exclusão histórica de indivíduos, grupos sociais e países (BRASIL, 2009a).

Outro exemplo do diálogo estabelecido pela e na universidade – estratégico ao ter como intento perpassar toda a universidade, uma casa da formação (DEMO, 2009) – refere-se à associação entre as áreas de ensino, pesquisa e extensão. Conforme o art. 207 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), a universidade deve obedecer ao princípio da indissociabilidade entre essas três áreas e, conforme o art. 52 da LDBEN (BRASIL, 1996), a universidade é pluridisciplinar, tendo o objetivo de formar profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano.

Em que pesem as controvérsias acerca da caracterização daquelas áreas como funções da universidade (SEVERINO, 2007) – por exemplo, a extensão seria meramente exercício do ensino e da pesquisa (BOTOMÉ, 1996), um método de ensinar e pesquisar (BUARQUE, 1994), a má consciência de uma instituição que não sabe como evidenciar-se importante em seu processo educacional formativo (DEMO, 2007) ou, ao contrário, seria processo atuante e aprendente na universidade (SÍVERES, 2010) – e, apesar dos desafios para concretizar o que preconizam os dispositivos legais antes mencionados (ROMANELLI, 2003), a universidade considera e procura se concretizar também na associação entre aquelas três áreas. Isto configura que, no limite, a universidade precisa praticar e renovar sua capacidade de dialogar.

Neste sentido, ainda que o foco se restrinja à relação ensino-pesquisa, há que se considerar essa necessidade de dialogar: se se educa por meio da pesquisa,

contribuindo com o objetivo da universidade de formar para a cidadania (DEMO, 2007, 2009), quebrar esse diálogo significaria perder autonomia.

Ao redor dos dois tipos de diálogos mencionados desdobram-se outros, também estratégicos, presente a preocupação de fortalecer a autonomia da universidade. Na Conferência Mundial sobre o Ensino Superior ficou explícito que esta autonomia reveste-se de atuação com liberdade para, dentre outras, escolher seu pessoal, seus estudantes e os temas de pesquisa, bem como determinar os programas de ensino e as normas, tudo isto sendo acompanhado das mínimas condições financeiras e do espírito empreendedor.

Naquela Conferência também se explicitou que o cumprimento das funções fundamentais da universidade deve ter “a participação mais ampla possível dos estudantes, do corpo docente e da administração na tomada de decisões” (UNESCO, 1999, p. 216)48 – recomendações reforçadas pela Conferência Mundial

sobre Ensino Superior 2009 ao ser lembrado que a “autonomia é uma exigência [feita pelos novos tempos à universidade] necessária para satisfazer as missões institucionais, através da qualidade, relevância, eficiência, transparência e responsabilidade social” (UNESCO, 2009, p. 2).

De fato, conforme Santos (2005), a universidade precisa reivindicar autonomia e especificidade organizacional, haja vista que o diálogo com a sociedade ocorrerá à medida que ela articule e crie comunidades interpretativas extramuros e intramuros por meio de ações voltadas para a interlocução entre professores, estudantes, funcionários e demais componentes da sociedade.

Se for descaracterizada como instância autônoma, perdendo seu papel articulador, aumenta a já existente crise em que ela se encontra (PORTELLA, 1999; SANTOS, 2007). Uma crise que será resolvida, ainda de acordo com Santos (2005), só com uma anarquia organizada que considere, por exemplo, que, “se os mais jovens, por falta de experiência, não podem dominar as hierarquias científicas, devem poder, pelo seu dinamismo, dominar as hierarquias administrativas” (p. 225). Tal esperança de autonomização, baseada na rebeldia da ação dos jovens, já floresceu incontáveis vezes na história da universidade. Apenas como exemplo, e no

48 Informação conforme os anais da mencionada conferência, que, neste caso, referenciou-se pelas

conferências de Tóquio, Dacar, Beirute e África, realizadas também na segunda metade da década de 90 (UNESCO, 1999, p. 215-216).

âmbito da América Latina, cite-se a inquietação estudantil que eclodiu com a Reforma Universitária de Córdoba em 1918. Naquele momento histórico, desencadearam-se atos contra a administração universitária, com a exposição de aspectos pontuais revelados pelos protestos de estudantes das faculdades existentes (Medicina, Engenharia e Direito). De tal monta se revelaram a inquietação e a participação dos jovens que resultaram no manifesto La juventud argentina de

Córdoba a los hombres libres de Sud América que, aquela reforma, tem

permanecido no imaginário latino-americano até os dias atuais (FREITAS NETO, 2011).

Presente este espírito de inquietação e rebeldia, cabe lembrar as opiniões de Buarque (2003) a respeito da crise global da universidade, em especial com relação à brasileira, na confluência com a esperança nos jovens. Segundo o autor, ao compartilhar com a sociedade o dilema de escolher entre continuar mergulhada na modernidade técnica ou construir uma modernidade ética alternativa, a universidade, a despeito da crise de identidade, pode contar com a “ânsia de estudar e aprender dos jovens que saem do ensino médio, que se manifesta agora com uma intensidade nunca antes vista” (BUARQUE, 2003, p. 44).

Do seguinte modo é a expressão daquele autor a respeito do assunto, traduzida em forma de convite aos jovens:

Por favor, assumam o papel que sempre lhes coube ao longo de toda a história. Sejam rebeldes (...). Vocês são a primeira geração para quem um diploma universitário não significa um passaporte automático para o sucesso, e a primeira geração cujo diploma estará obsoleto muito antes de a aposentadoria chegar (...). Na defesa dos interesses de uma geração, vocês têm o direito à rebeldia. Exijam mudanças nas universidades em que estudam e pratiquem a tradicional generosidade dos jovens (BUARQUE, 2003, p. 63-64).

Que, sem esquecer também de apelar aos professores, convida-os a aceitarem o risco de ser professor no momento histórico em que o conhecimento muda continuamente e que os obriga a acompanhar as mudanças. Convida-os a aceitarem a audácia de tal risco, sendo criativos, independentemente da efemeridade que possa acompanhar as novas maneiras de conhecer. Dentre estes posicionamentos, destaca-se o de Savater (2010, p. 37), para quem “é necessário que, aqueles que ensinam saibam apreciar as virtudes de uma certa insolência por parte dos neófitos”.

Dessa maneira, a universidade mantém como fundamento o diálogo e conta com a ação dos jovens para se renovar. Neste sentido, ao assumir o ideal grego de diálogo como captação do logos e ao valorizar a criatividade e a inquietude das novas gerações, Mendes (1968) explica que professores universitários erram ao não entenderem que o jovem possui seu logos. Cometem erro ao não compreenderem que somente a partir do logos será possível ao jovem engrenar a sua verdadeira comunicação com o logos do professor. Erram ainda ao não apreenderem que o

logos do estudante é válido por si próprio, e não por mera complacência dos adultos.

Segundo aquele autor, se a universidade é o lugar do diálogo e se os jovens têm, em geral, a característica da indagação, então a eles deve-se atribuir:

O direito de colocar no diálogo, que é o fundamento da universidade, a novidade de sua indagação, a exigência de sua visão com novas raízes, a originalidade de sua apercepção (no sentido herbartiano do termo) na qual os elementos projetados de dentro são mais poderosos que os elementos internalizados de fora (MENDES, 1968, p. 4)49.

Com efeito, como explica a literatura especializada, a autonomia da universidade ocorrerá se for acompanhada de alto grau de responsabilidade e de responsabilização dos diversos públicos de interesse (UNESCO, 1999), tendo como causa e consequência o ato educativo implicado pela presença da relação face a face mantida pelo professor e seus alunos. O que proporciona a oportunidade de apresentar o ambiente da sala de aula como referência fundamental na elaboração e execução de diálogos estratégicos na universidade.