• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1: EXPERIÊNCIA SOCIAL, JOVENS E UNIVERSIDADE

1.1. EXPERIÊNCIA SOCIAL NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

1.1.4. Noção de experiência social e vinculações com o sistema

No dia a dia, emprega-se o termo experiência para designar a aquisição de saberes, habilidades e atitudes capazes de possibilitar ao indivíduo a prática de atividades. Mesmo quando considerado como processo científico, o termo conserva esta conotação, como deixa claro o Dicionário de Sinônimos da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, ao definir a experiência como “‘um meio de conhecer’ que consiste em produzir, em provocar os fenômenos, para melhor observá-los, acompanhando-os em sua marcha” (POMBO, 2011, p. 398).

No entanto, há outra compreensão para o termo experiência, a qual aprofunda e torna o significado mais adequado à arquitetura social da pós- modernidade. Tal compreensão aparece na obra de Benjamin (1987a), colaborador da Escola de Frankfurt na primeira metade do século passado. Considerado o pensador do fragmentário e do efêmero, sofreu influência da ideia de perda das grandes narrativas advinda com a pós-modernidade, apesar de não ter adotado uma posição definida com relação ao tema da modernidade.

Em seu texto Teses sobre o conceito de história (BENJAMIN, 1987a) aquele autor propõe que, em vez de conceber o lugar da história um tempo homogêneo e vazio, seria o caso de concebê-lo saturado de agoras. A consciência das classes revolucionárias, capaz de explodir o continuum da história parece ser o remédio benjaminiano, o que tornaria a história desobediente à lógica linear da modernidade. Seria uma cessão de lugar, por parte dela, à experiência (Erfahrung).

Portanto, o autor olha para o presente com o intuito de identificar possibilidades de estruturação de um sentido para o termo experiência, fazendo-o

com a tomada de dois pressupostos: 1) a modernidade seria algo transitório; 2) as descobertas relacionadas ao passado haveriam de ser consideradas, pois só desta maneira seria possível, com o distanciamento entre presente e passado, emergir a necessidade de interpretar o entorno social em que se insere o indivíduo. Desse modo, a experiência estaria estruturada na tradição e relacionada com a história do entorno afeto ao indivíduo.

A partir de uma hermenêutica assentada na crítica, Benjamin (1987b) se perguntou qual estaria sendo o valor do patrimônio cultural humano se a experiência não o vinculava mais aos indivíduos. O vazio da experiência na modernidade (igualmente vazia) decretaria o fim dos valores, da subjetividade, portanto, o fim da própria comunidade, o que levaria a uma nova barbárie – a ser positiva se acaso o indivíduo a utilizasse como força para avançar e a ser negativa se acaso ele se mantivesse pouco tenaz. Assim, o conceito de experiência refere-se à inserção do indivíduo na cultura, pressupondo uma autêntica experiência, circunscrita a determinada temporalidade, à qual pertenceriam várias gerações (crianças, adolescentes e jovens receberiam ensinamentos dos adultos por meio da narrativa). Seria algo diferente da vivência imediata (Erlebnis), desvinculada da tradição (BENJAMIN, 1975).

Por sua vez, e também relacionado à pós-modernidade, Dubet (1994) propõe no final do século passado a noção de experiência social para designar as condutas individuais e coletivas perpassadas pela heterogeneidade de seus princípios constitutivos e pela ação de cada indivíduo, responsável este por construir o sentido de suas práticas no interior dessa heterogeneidade.

Noutros termos, papéis, posições sociais e culturais não mais estariam definindo componentes estáveis da ação porque as condutas se organizariam na heterogeneidade de princípios culturais e sociais, com os indivíduos trazendo consigo uma multiplicidade de orientações. Como explica aquele autor, o declínio das instituições da modernidade fez dos indivíduos, em cada situação vivenciada, artífices da construção social.

Além de possuir esta heterogeneidade de princípios, continua Dubet (1994), a experiência social se caracterizaria pelo distanciamento subjetivo dos indivíduos

com relação ao sistema sociocultural, sendo uma atitude de reserva23 decorrente da heterogeneidade de lógicas de ação. De acordo com o autor, os indivíduos manteriam este distanciamento porque os valores implicados não estariam necessariamente coerentes em seu interior e sim descolados das diversas personagens desenvolvidas por eles. Os papéis sociais já não seriam claramente definidos, como se explicava por meio de postulados clássicos. Enfim, os indivíduos passaram a se recolher em sua subjetividade tal como um mecanismo de defesa com relação à pluralidade de registros que caracteriza a experiência social.

Finalmente, a experiência social estaria caracterizada por uma substituição da clássica ideia de alienação pela noção de construção da experiência coletiva. A dominação social não mais unificaria a experiência coletiva. Ao invés, tornaria esta experiência dispersa em territórios tal como ocorre com a cultura de massa, exclusão econômica, consumo, racismo e participação política. Os indivíduos estariam a sofrer os impactos dos processos de destruição da personalidade, nos tempos atuais, no domínio de lógicas de ação – apesar de não terem sido estas lógicas criadas por aqueles. Este cenário seria, conforme Dubet (1994), o verdadeiro sentido de alienação, pois a dispersão, a separação, torna-se fundamento.

No meio escolar, por exemplo, um aluno age, sobretudo, em função de seus grupos de pertencimento, enquanto o professor age exercendo seu poder carismático, pois o papel e a instituição não mais dão conta das novas situações (GOMES, 2005). Tal dinâmica é a combinação de lógicas da ação que aproxima o indivíduo do sistema, mas o mantém distante em termos de subjetividade – os indivíduos não aderem totalmente a papéis e valores, hoje marcados internamente pela incoerência. Na escola, os círculos sociais e as lógicas de ação são múltiplos, com alunos sem viver totalmente imersos na instituição. Eles criam autonomias separadas porque as funções de socializar, educar e distribuir diplomas e qualificações estão dissociadas e, por isto, poucas oportunidades têm de conciliar aspirações, ressentindo-se de um projeto global em torno do qual se articulariam (DUBET, 1994).

De acordo com Dubet (1994), haveria experiência social com a articulação das lógicas de ação de integração, estratégia e subjetivação. Se, por um lado, cada

lógica geraria posições teóricas controversas mergulhadas na mútua crítica, embora assumissem o papel de representar o conjunto social a partir de uma ideia central; por outro lado, da perspectiva dos atores sociais, não haveria centro algum. Estes atores adotariam diversos pontos de vista, vários tipos de ação, sem a obrigatoriedade de se posicionar. Dessa maneira, Dubet (1994) se afasta da noção corrente de experiência como habilidade originária do exercício contínuo, bem como da concepção de experiência como modo de o indivíduo sentir a si próprio ou a sociedade. Concomitantemente, aproxima-se da perspectiva de Benjamin (1975) com respeito ao assunto, pois, ao teorizar, considera a heterogeneidade de princípios culturais e sociais que envolvem o indivíduo numa multiplicidade de orientações.

Ao remeter a experiência para o social, como se procurasse preencher o vazio da experiência na vazia modernidade (BENJAMIN, 1975), Dubet (1994) define a experiência social como modo de construir o real e a vida. Como explica o autor, ela não se constituiria numa esponja, num modo de incorporar o mundo por intermédio de emoções e sensações, mas numa maneira de construir o mundo. Ela fundaria o caráter fluido da vida, possibilitando interpretar como experiência o que os autores alemães chamam mundo vivido (Lebenswelt). Efetivamente, como explica Touraine (1997):

O mundo vivido, que François Dubet chama a experiência, deixa de ter unidade; não porque a sociedade contemporânea seja demasiado complexa e mude muito depressa, mas porque se exercem sobre os seus membros forças centrífugas, puxando-as por um lado para a ação instrumental e para a atração dos símbolos da globalidade e de uma modernidade cada vez mais definida pela dessocialização e, por outro lado, para a pertença “arcaica” a uma comunidade definida pela fusão entre sociedade, cultura e personalidade (TOURAINE, 1997, p. 65).

Assim, torna-se possível apresentar um resumo esquemático das noções de experiência social e lógicas de ação (Quadro 3).

No entanto, para se tornar um objeto socialmente determinado, a experiência social estaria obrigada a se inscrever na objetividade do sistema – ainda que aquela seja a combinação subjetiva de vários tipos de ação. Se a heterogeneidade de princípios da ação apontaria para aquela objetividade, bem como para a heterogeneidade dos mecanismos determinantes das lógicas de ação, cada ator, por sua vez, construiria de forma autônoma suas experiências utilizando-se de lógicas que não domina.

Quadro 3 – Noções de experiência social e lógicas de ação. EXPLICAÇÕES E TIPOS RESUMOS E xpe riênc ia so cia l Explicações Resumo Definições O ator:

a) Não está totalmente socializado, não porque escape ao social, mas porque sua experiência é forjada em múltiplos registros incongruentes. Ele constrói sua própria ação sem se obrigar a se adaptar às instituições e à dominação.

A experiência social:

a) Tem como objeto a subjetividade do ator, não sendo esta entendida na perspectiva da consciência como reflexo e na perspectiva do sentimento como fluxo contínuo, mas na esteira da liberdade de testemunhar a própria experiência e a gestão de várias lógicas24. b) É construída, não por uma manifestação de um ser ou de um sujeito

puro, mas pelo que se declara a respeito dela. Seu reconhecimento por parte do indivíduo ocorre simultaneamente ao reconhecimento por parte dos outros.

c) É crítica, pois os atores sociais têm necessidade de explicar suas práticas. A reflexão a respeito delas torna-se mais intensa no imprevisível e no maior distanciamento do indivíduo quanto à ideia de papel social. Cada ator é capaz de dominar conscientemente sua relação com o mundo.

Princípios

A ação social:

a) Não possui unidade, sendo o indivíduo obrigado a lidar com várias lógicas.

b) É definida por relações sociais, construindo-se na experiência social.

A experiência social:

a) Realiza a combinação dos tipos puros da ação (no nível do intelecto), das diversas lógicas (no nível do concreto) e dela própria com o sistema. L ó g ica s de ão Tipos Resumo

Integração A identidade do ator constitui-se apenas na maneira como este internalizou os valores institucionalizados por papéis desempenhados. O Ego se estrutura na relação com o Nós, no reconhecimento da diferença e de seu poder de fortalecer a integração.

Estratégia O ator define sua identidade de acordo com a probabilidade (no sentido weberiano do termo) de exercer influência sobre os outros. As relações sociais se definem no âmbito da concorrência conforme os interesses individuais ou coletivos.

Subjetivação

As identidades e as relações sociais são explicadas por meio da crítica cognitiva ou normativa, podendo a identidade do ator ser definida como empenhamento nos diversos modelos culturais definidores da representação do sujeito. Nesta lógica, o ator não se reduz aos seus papéis nem aos seus interesses ao adotar pontos de vista diferentes dos adotados nas lógicas da integração e da estratégia. Ele enfrenta obstáculos ao reconhecimento e à expressão de sua subjetividade.

Fonte: elaboração do autor, com base em Dubet (1994).

24

“Numa perspectiva sociológica, a subjetividade é entendida como uma atividade social gerada pela perda da adesão à ordem do mundo, ao logos” (DUBET, 1994, p. 101). Ver Glossário.

Então, Dubet (1994) elabora uma representação dos vínculos entre a experiência social e os sistemas de integração, interdependência e ação histórico, no intuito de evidenciar como as lógicas da integração, estratégia e subjetivação por meio de processos denominados pelo autor socialização, jogo e dialético – mantêm vinculações de causalidade com esses sistemas (ver Fig. 2).

Figura 2 – Da ação ao sistema25.

Fonte: Dubet (1994, p. 141).

Conforme Dubet (1994), a vinculação causal entre a lógica da integração e o sistema de integração ocorreria por meio dos processos de socialização (como a educação e o controle social), instância que faria a intermediação entre as condutas (comportamentos e atitudes) e as condições objetivas (como a cultura, as relações sociais e as normas). Juntamente com as expectativas, com as ambições programadas e os códigos, a socialização explicaria as condutas dos indivíduos para além da racionalidade presente nas opções vinculadas ao social.

25 Cabem duas interpretações a respeito dessa maneira de explicar as vinculações causais: o título

do gráfico (da ação ao sistema) teria menos a ver com o “modelo de conhecimento sociológico posto em prática que da própria natureza dos mecanismos sociais em questão” (DUBET, 1994, p. 140); por sua vez, as setas utilizadas na figura objetivariam menos a mostrar possíveis direções tomadas pelas vinculações causais (em cada um dos três tipos de processos) que demonstrar o não domínio, por parte dos atores, de elementos mais simples que compõem a experiência social. Para Dubet (1994), em última instância, esses elementos são dados ao ator, preexistindo a ele ou sendo impostos por meio da cultura, das relações sociais, dos constrangimentos de situação ou da dominação.

Sistema de ação histórico Sistema de integração Sistema de interdependência “Dialético” Subjetivação Integração Estratégia “Socialização” “Jogo” EXPERIÊNCIA SOCIAL

Em primeiro lugar, isto ocorreria porque os indivíduos herdariam de uma cultura, de uma sociedade e de uma língua os seus gostos e as suas preferências, o que, no final, resultaria em esquemas corporais que se tornam seus, embora estes esquemas não tenham sido obra deles. Noutros termos, as opções decorreriam de um percurso individual e da mutação coletiva, o que caracterizaria uma experiência da personalidade (explicação da Psicologia).

Em segundo lugar, ocorreria porque os indivíduos herdariam normas e modelos dados, sendo possível correlacionar condutas e posições sociais, o que, no final, resultaria em comportamentos e atitudes – noutros termos, o sistema definiria as condutas (explicação epistemológica e metodológica).

Por sua vez, a vinculação causal entre a lógica da estratégia e o sistema de interdependência se concretizaria nos constrangimentos da intencionalidade racional e estratégica dos atores, invertendo a causalidade do sistema de integração. Enquanto neste sistema tal vinculação se faria por meio da socialização, no sistema de interdependência ela ocorreria por meio do jogo de escolhas definidas pelos indivíduos e grupos em situações com que se deparam. Tal jogo se limitaria à intencionalidade racional dos indivíduos, com possibilidade de correlacionar essas situações e as ações – sem assumir qualquer favorecimento de uma imagem desta lógica em termos de liberdade total.

Como os indivíduos herdam da sociedade um conjunto de oportunidades, suas opções ocorreriam na dependência de melhores condições para atingir seus interesses. De olho nestas oportunidades favoráveis a interesses, os indivíduos agiriam racionalmente ao medir a conveniência de seus atos, fazendo-o como num jogo, num sistema detentor de regras e coações preexistentes, que àqueles se impõe durante as relações sociais. Neste jogo, comportamentos e atitudes definiriam as estruturas (em termos de remodelação) – ainda que a estas não se oponham totalmente as condutas.

Por último, a vinculação causal entre a lógica da subjetivação e o sistema de ação histórico estaria assentada nas tensões entre a adesão a valores já estabelecidos e o distanciamento das estruturas. Apesar de tomar distância crítica ao opor valores às relações sociais, o ator assumiria previamente valores da sociedade. Por meio da crítica, aspira a conduzir a própria vida, mas o faz no apelo a valores e na visualização de óbices aos seus objetivos, pois o movimento humano

de sair do mundo para lhe fazer uma crítica não implica liberdade não social. Como explica Dubet (1994), “a atividade crítica do sujeito não se desenrola nem num vazio cultural nem num vazio social” (p. 152).

Assim, o caráter dialético da tensão acima mencionada (comunidade versus mercado) evidencia que as condutas dos indivíduos se situam na fronteira de sua capacidade crítica (entendida como interpretação da realidade, não descoberta ou invenção). Suas opções decorreriam do uso desta capacidade diante de fatos reais com os quais estaria de acordo. Entretanto, um uso que se faz na oposição de determinados valores (com os quais concorda) às relações sociais. Tanto seus comportamentos como o sistema seriam definidos por este uso.

A partir dessas explicações, é possível compreender que as vinculações causais constituem-se em mecanismos de ligação entre ação e sistemas os quais, a depender da natureza das relações de causalidade, podem situar-se nos processos denominados por Dubet (1994) como socialização, jogo e dialético. A socialização compreende as condutas individuais ou coletivas para além da racionalidade presente nas opções vinculadas ao social; o jogo abrange os constrangimentos da intencionalidade racional e estratégica dos atores; o mecanismo do tipo dialético se refere às tensões entre a adesão a valores já estabelecidos e o distanciamento adotado com relação às estruturas. De modo que, na socialização, o limite da ação individual ou coletiva está na herança cultural; no jogo, está na intencionalidade racional; no dialético, está na capacidade crítica dos atores.

Desse modo, e no pressuposto de que o vínculo entre a ação do ator e os sistemas pela via indireta de cada um desses tipos de causalidade não implicaria unidade do conjunto social, e sim o direcionamento de cada lógica de ação para e em função dos elementos autônomos do respectivo sistema; o argumento teórico conclui que, nos processos de socialização, a ação do ator constitui-se no reflexo das coerções exercidas pelo sistema (como na educação, no controle social, no percurso de vida, nas normas e nos modelos); nos processos de escolha (o jogo), a ação do ator reflete as oportunidades oferecidas pelo sistema; nos processos dialéticos, a ação do ator torna-se reflexo da tensão entre valores e dominação sociais. Ao se vincular cada uma das lógicas de ação ao respectivo sistema, tem-se que o sistema de integração causa as condutas; o sistema de interdependência é

causado pelas condutas; o sistema de ação histórico e as condutas são causados

por uma crítica do ator à realidade (DUBET, 1994).