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CAPÍTULO 1: EXPERIÊNCIA SOCIAL, JOVENS E UNIVERSIDADE

1.1. EXPERIÊNCIA SOCIAL NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

1.1.2. A modernidade do mundo atual

Para Touraine (s/d), a tese da modernidade seria: 1) o ser humano é aquilo que faz. Logo, deve existir uma correspondência entre o que o indivíduo produz e a sociedade, com tal correspondência sendo regulamentada pela lei e pela vida pessoal (esta animada pelo interesse e vontade de se libertar de imposições); 2) como tal correspondência assenta sobre o triunfo da razão, somente se aquela a esta seguir, a humanidade alcançará a abundância, a liberdade e a felicidade. Assim, tal tese admite como agente da modernização a própria razão, do que sobrevém a racionalização como componente indispensável da modernidade.

Trata-se de uma ideologia ocidental sedenta por eliminar obstáculos à vitória da razão, com desdobramentos na relação indivíduo-sociedade, bem como nas maneiras de educar:

O que é válido para a sociedade é válido para o indivíduo. A sua educação deve ser uma disciplina que o liberte da visão limitada, irracional que lhe é imposta pela sua família e pelas suas próprias paixões, e o desperte para o conhecimento racional e para a participação numa sociedade que organiza a ação da razão. A escola deve ser um local de ruptura com o meio de origem e de abertura ao progresso, através, simultaneamente, do conhecimento e da participação numa sociedade assente em princípios racionais. O professor não é um educador interveniente na vida privada de crianças que devem ser apenas alunos, ele é um mediador entre eles e os valores universais da verdade, do bem e do belo. A escola deve também substituir os privilegiados, herdeiros de um passado rejeitado, por uma elite recrutada através das provas impessoais dos concursos (TOURAINE, s/d, p. 25).

Touraine (s/d) explica que para os modernistas os obstáculos ao triunfo da razão devem ser vencidos, o que contribuiria para a emergência de um mundo habitado por uma nova sociedade e por um novo ser humano. Para uns, esta habitação seria viabilizada pelo socialismo científico; para outros, pelo abandono da moral religiosa e pelo conhecimento das leis da natureza, embora se deixem, neste caso, invadir pelo prazer da submissão à ordem natural das coisas. Segundo o autor, há vigor e até violência na concepção clássica de modernidade, que teria virado as costas para a Idade Média e resgatado dos antigos a confiança na razão – possivelmente por acalentar o sonho de outrora de se chegar à verdade das coisas.

Cabe ressaltar que relevante no pensamento moderno é o pressuposto de que o ser humano seria capaz de buscar e alcançar essa verdade – a exemplo do que propunha Descartes (1973), com um plano de ciência enraizada na unidade de raciocínios, e a exemplo da proposta de Hume (1996), com a concepção de filosofia como ciência indutiva da natureza humana mais sensitiva e menos racional.

No entanto, conforme Wilber (2006), significativo no pensamento moderno seria a diferenciação das esferas culturais de valores, a noção weberiana que distingue arte, moral e ciência (WEBER, 1984). Uma diferenciação que teria se superado, tendo promovido, com o tempo, uma dissociação dos diversos subsistemas nos âmbitos econômico, social e cultural. Desse modo, a diferenciação seria a dignidade e a dissociação seria o desastre da modernidade, neste processo em que as esferas culturais de valores teriam se afastado, levando a uma patologia desfavorável ao crescimento daqueles subsistemas.

Com efeito, o que há de original na palavra modernidade é a separação de seus elementos, conforme Touraine (s/d). Menos a rejeitar uma ideia de modernização da sociedade e mais a discutir esta separação, o autor se posiciona:

ao se opor a modernidade à tradição, ela se esvazia. Entra em crise. Enfraquece-se o movimento de libertação proposto inicialmente; perde-se o sentido de toda uma cultura; separam-se sociedade e realidade social. Em tal estado de crise, pergunta o autor: “não temos a impressão de viver num mundo fragmentado, numa não sociedade, uma vez que a personalidade, a cultura, a economia e a política parecem caminhar em direções diferentes (...)?” (p. 121). Embora, como explica o autor, possa existir uma unidade oculta que articularia os componentes das principais ordens desse mundo fragmentado (ver Fig. 1).

Indo longe demais a separação dos componentes da modernidade, restou ao tempo atual a dissociação dos subsistemas sociais. Como explica Touraine (s/d), a “dissociação entre as estratégias econômica e a construção de um tipo de sociedade, de cultura e de personalidade operou-se rapidamente, e é ela que designa e define a ideia de pós-modernidade” (p. 221). Para o autor, haveria uma divisão entre mundo objetivo e mundo subjetivo, entre sistema e agentes, sendo necessário reunir o que se separou – sem ceder à nostalgia da unidade perdida do universo.

Figura 1 – Dissociação na modernidade.

Fonte: Touraine (s/d, p. 126).

Com relação ao termo pós-modernidade, apesar da falta de consenso entre os pensadores quanto ao seu significado, duas posições podem ser identificadas, contribuindo para compreender em que medida o mundo atual ainda é moderno: 1) em sentido amplo, pós-modernidade significaria o não rompimento com a modernidade, um aprofundamento desta, seja como reação, contrapeso ou

Sexualidade Racionalidade instrumental Consumo de mercado Estratégia de empresa Nacionalismo SER MUDANÇA INDIVIDUAL COLETIVO

continuação; 2) em sentido estrito ou técnico, significaria o rompimento com a modernidade, pressupondo-se não mais existir a verdade, mas interpretações construídas socialmente.

Inserido na primeira posição, Habermas (1981, 1990) assume a discussão do pós-modernismo, com início pelo tema da diferenciação weberiana das esferas culturais de valores. Segundo o autor, a diferenciação entre arte, moral e ciência passou a significar a autonomia dos segmentos tratados por especialistas, simultaneamente à exclusão, por parte destes, de uma hermenêutica da comunicação. Ao analisar a realidade, diferentemente das explicações com aporte na visão marxista clássica da base econômica determinando a superestrutura, o autor defende que a crise do capitalismo seria o resultado da contradição entre crenças nos valores e realidade. Haveria uma crise cultural do capitalismo passível de ser solucionada a menos se houvesse novo consenso.

Conforme Bell (1973), teria se estabelecido uma crise do capitalismo decorrente da substituição dos valores-base por valores contraditórios para então gerar uma sociedade pós-industrial. Conforme o autor, esta nova realidade social estaria determinada por certas mudanças nas relações de trabalho (mais até do que por uma vida política ou cultural), pelo novo papel dos cientistas e técnicos e pelo papel central do conhecimento teórico nas decisões e na elaboração de políticas públicas. O autor explica a sociedade em termos de separação entre as estruturas social, política e cultural, presumidamente vinculadas por um sistema de valores, mas agora fragilizado, pois valores como os da ética protestante do trabalho e os valores mais relevantes da burguesia estariam sendo substituídos por coisas como a ética hedonista ou a liberação da autoexpressão e dos erotismos. Diante da exaustão da cultura moderna e da ausência de crença nos valores, não haveria, de acordo com o autor, respostas para a crise cultural do capitalismo (GOMES, 2005).

Com Giddens (1990), o atual período, caracterizado por rápidas mudanças, seria como vincos da modernidade, exigindo dos indivíduos e dos coletivos sociais a reparação da solidariedade perdida e a reinvenção das tradições – a sociedade moderna seria semelhante a um sistema com ação autônoma, mas impulsionador da separação entre o indivíduo e o sagrado. Como explica Touraine (s/d), tal visão significaria uma mescla entre elementos de confiança e elementos de inquietação na

modernidade em alta velocidade, o que prolongaria a noção durkheimiana de solidariedade orgânica.

De acordo com Gomes (2005), nesta visão, a modernidade estaria caracterizada “pela mudança contínua, abrangente geograficamente e pela natureza intrínseca das instituições modernas, de tal modo que prosseguem as consequências desta mudança” (p. 79). De um lado, a confiança; de outro, o risco. Desse modo, num jogo dialético em que combina dispersão e tendência a uma interação global, a modernidade tardia estaria mergulhada num oceano de circunstâncias, compreendida somente se forem admitidos os enfoques conflitantes presentes na racionalidade.

Fazendo parte da segunda posição (pós-modernidade como rompimento com a modernidade), Lyotard (2000) vale-se do termo pós-moderno para designar o estado da cultura advindo do final do século XIX em decorrência das transformações que interferiram no jogo da ciência, da literatura e das artes. Para o autor, estas transformações ocorreram em meio ao conflito entre as grandes narrativas (legitimadas pela filosofia) e a ciência (legitimada ao recorrer às diversas filosofias). Dispersa em nuvens de elementos linguísticos narrativos instáveis e, por vezes, inenarráveis, as metanarrativas teriam ingressado numa tal incredulidade que teria restado uma sociedade menos newtoniana e mais pragmática. Seria tal incredulidade a que Lyotard (2000) consideraria como pós-moderna.

O autor sublinha que o estatuto do saber se altera concomitantemente ao ingresso das sociedades na chamada idade pós-industrial e ao ingresso das culturas na chamada idade pós-moderna – advento que teria iniciado mais ou menos no final dos anos de 1950 quando a Europa finalizava o processo de sua reconstrução. Considerado o saber científico uma classe de discurso, investigado e transmitido em meio aos processos de informatização da sociedade, cairia por terra o princípio da aquisição do saber formativo (Bildung).

Nessa sociedade haveria os provedores do saber e os usuários do saber, caracterizando as sociedades mais informatizadas como as mais desenvolvidas, com a circulação de informações e de conhecimentos em grande velocidade18.

18 Estas preocupações em torno de uma possível segmentação social estão bem representadas em

texto produzido para a UNESCO por Bernheim e Chauí (2008, p. 16): “As tecnologias da comunicação estão criando também nova forma de desigualdade, a desigualdade digital (...),

Nesta condição, a exteriorização do saber se converte em valor de uso, importando com mais intensidade as realizações do sistema – já que o saber não pertence ao indivíduo. Desse modo, como o conhecimento seria ideológico, sendo originário da fragmentação do sentido e da percepção de sua incerteza, não importariam mais as ideias totalizantes. Entendido que a pós-modernidade significaria a recusa de metanarrativas para explicar as diversas realidades, a legitimação do saber ocorreria com a eficácia, a vendabilidade e o desempenho.

Assumindo também a segunda posição, Baudrillard (1995) entendeu que a sociedade atual teria como base o crescimento do consumo, sendo em última instância responsável pela interação entre as pessoas. Se, para a modernidade, relevante teria sido a capacidade para produzir bens com eficiência, para a pós- modernidade o fundamental seria estimular a demanda, cada vez maior, para alcançar mais lucratividade. Para o autor, os processos de informatização estariam contribuindo com este estímulo. Conforme explica Gomes (2005), a respeito das ideias daquele autor, no mundo pós-moderno, os indivíduos encontram sentido para a vida social nas coisas que compram, agora compondo um sistema de signos, o qual seria manipulado pela publicidade. Em lugar da utilidade, estilo; em vez da racionalidade, não racionalidade; substituindo a substância, a imagem.

De maneira que o controle dos signos teria passado a compor a nova história, a nova realidade, em detrimento dos elementos de uma cultura de valores, da moral e da estética. Uma realidade caracterizada pela profusão de informações transformadas em solvente de significados. Uma realidade da qual a mídia faz parte e assume papel fulcral, selecionando o que deve ser informado, matando a realidade ao substituir os fatos por notícias. Assim, como explica Gomes (2005), a mídia passou a ser uma agência de manipulação cultural, uma agência de socialização a partir de valores de mercado. Seu papel seria vender ilusões, tomadas estas pelos indivíduos como verdade. Seria realizar a intermediação entre os indivíduos e as experiências. Tendo suas opiniões manipuladas pela mídia, os indivíduos no mundo pós-moderno vivenciariam “experiências vicárias ou substitutas” (GOMES, 2005, p. 84) em lugar de experiências diretas.

expressada na dualidade entre ‘info-ricos’ e ‘info-pobres’, se falamos sobre setores com acesso àquelas tecnologias ou que não as acessam, por razões econômicas e sociais”.

Estas ideias podem ser reunidas em grupos de explicação, patenteando as duas posições sobre as mudanças contemporâneas: aprofunda-se a modernidade ou rompe-se com a modernidade. Neste sentido, Gomes (2005) sintetizou as ideias desses autores (Quadro 1).

Quadro 1 – O mundo atual: aprofundamento ou rompimento com a modernidade?

Posição Autor Síntese

Mudanças contemporâneas

como aprofundamento da modernidade

Habermas A crise cultural do capitalismo reside na contradição entre as crenças nos valores e a realidade (crise de legitimidade).

Bell A crise cultural do capitalismo consiste na substituição dos valores originais de sustentação por outros, que os contradizem. Não há resposta aos desafios das vanguardas culturais.

Giddens A mudança é inerente à modernidade. Nossa época resulta da mudança acelerada como desdobramento da modernidade. As tendências conflitivas são racionalmente compreensíveis. A reparação das solidariedades desfeitas e a reinvenção das tradições são alternativas propostas.

Rompimento com a modernidade

Lyotard A criação do conhecimento é ideológica e este é relativo como resultado da fragmentação do sentido e da percepção de que o conhecimento é frequentemente incerto. As ideias totalizantes perdem seu sentido. A legitimação do saber passa a fazer-se por meio da eficácia, vendabilidade e desempenho.

Baudrillard A base estrutural da pós-modernidade é o crescimento da sociedade de consumo. Por isso, o consumo se torna meio e substância da interação social, levando o estilo a substituir a utilidade, o irracional, o racional. A pletora de informações nos conduz à hiper-realidade, em que não temos noção do fato, mas da sua versão via notícias. A mídia, portanto, comete o crime perfeito de matar a realidade, sem que haja o corpo da vítima ou provas incriminadoras.

Fonte: Gomes (2005, p. 85).

Nesta altura, cabe lembrar que Bauman (2001) é por muitos considerado o profeta da pós-modernidade, embora ele não concorde com tal designação. Numa entrevista concedida no início do presente século (PALLARES-BURKE, 2004) o autor fez uma contradistinção: enquanto a pós-modernidade significaria um tipo de condição humana, moderna ainda em suas ambições e modos de operar, o pós- modernismo significaria uma visão de mundo distante da ideia de normatização da comunidade humana, mas sem discutir a sério os modos de vida. Dessa maneira, compreendendo pós-modernidade como modernidade sem ilusões e se recusando à rotulação de intelectual pós-modernista, o autor opta pelo termo modernidade líquida e o faz comparando-a com a modernidade sólida – período histórico em que a razão estaria ensimesmada. A primeira modernidade seria obcecada em seu objetivo de

desmontar crenças e subverter tradições para tornar-se sólida outra vez; a segunda modernidade estaria disposta a evitar o congelamento de padrões de conduta em tradições.

Segundo Bauman (2001), duas mudanças seriam responsáveis por renovar a atual situação. Na primeira, não existiria mais a ilusão moderna do fim do caminho pelo qual andaria a humanidade. Noutros termos, não existiria mais telos a ser alcançado pela história, não haveria um fio condutor por onde caminhariam os indivíduos até a perfeição. Ao contrário, diferentemente do planejado na modernidade, estaria havendo desequilíbrio entre a oferta e a procura, deslocamentos e incertezas. Na segunda mudança, teria se fragmentado o que se considerava tarefa da razão humana enquanto propriedade coletiva. O que antes cabia a ela fazer estaria agora a cargo da energia e da administração dos indivíduos no limite de seus recursos. O sólido teria se tornado líquido: esta a metáfora utilizada pelo autor ao estabelecer comparações entre a sociedade do início do século passado e a sociedade do início do século atual, modernas uma e outra, sendo diferentes apenas no modo de ser.

Seu entendimento e explicações auxiliam na compreensão do mundo contemporâneo, altamente mutável, caracterizado por relações sociais e culturais marcadas por uma diversidade de princípios. Na sociedade líquido-moderna, princípios diferenciados constituem a arena onde convivem aspectos econômicos, sociais e culturais, fazendo emergir a variedade de papéis individuais e coletivos. As dinâmicas de socialização se tornaram multidirecionais, coexistindo com a pluralidade do universo cultural e com referenciais utilizados pelos indivíduos na atribuição de sentido a comportamentos e interações sociais (ALVES-PINTO, 2008). Sua posição teórica (BAUMAN, 1999, 2001, 2004, 2006, 2007) com relação ao atual período histórico, fragmentado e fluido, contribui para evidenciar o fato de que os indivíduos percebem sentido na vida a partir do que constroem durante o envolvimento em cada situação vivenciada. Como explica o autor, “somente a vida humana individual vê crescer sua durabilidade, enquanto a vida de todas as outras entidades sociais que a rodeiam – instituições, ideias, movimentos políticos – é cada vez mais curta” (PALLARES-BURKE, 2004, p. 324).

Suas explicações contribuem para compreender as consequências da pluralidade de sentidos elaborados pelos indivíduos de acordo com as diversas

lógicas de ação – as quais não mais seriam entendidas da perspectiva clássica weberiana, passíveis de identificação em sua pureza, mas entendidas conforme explica Dubet (1994) que, com base em Touraine (1997), admite a identificação dessas lógicas só se forem levadas em conta a pluralidade de valores e as rupturas de ação típicas das sociedades contemporâneas.

Então, é o caso de assumir a posição teórica de Bauman (1999, 2001, 2004, 2006, 2007): a de que o mundo ainda se encontra sob as asas do pensamento moderno em meio aos processos de fragmentação que caracterizam as sociedades.