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CAPÍTULO 2: A PESQUISA E SEUS COMPONENTES

2.1. PROBLEMA

A enorme teia em que se transformou o mundo, fragmentado e dissolvido na modernidade líquida (BAUMAN, 2001, 2007), pode ser explicada somente a partir de diversas perspectivas. Com a fragmentação social, na pós-modernidade, as clássicas noções de papel, valor, instituição, socialização, estrato social e função não mais centralizam as representações da sociedade. Esta não é mais explicada em consonância com a ideia de identificação entre ator e sistema, que poderiam estar vinculados indiretamente por meio da ação.

Explicam-se as conexões entre as lógicas de ação envolvidas nas relações sociais menos em termos de necessidade primordial, mais em termos de aleatoriedade. Os indivíduos se orientam e vivenciam estas relações menos segundo lógicas hierarquizadas e mais conforme uma autonomia construída na pluralidade de valores e na ruptura. Desse modo, em vez da clássica ideia de ação, o mundo atual pode ser explicado pela noção de experiência social – condutas individuais e coletivas construídas na pluralidade de princípios e na ação dos indivíduos, responsáveis pelo sentido de sua ação (DUBET, 1994) –, um evento que, apesar de resultar do arranjo subjetivo dos vários tipos de ação, inscreve-se na objetividade dos sistemas.

Neste cenário, encontram-se questões relacionadas ao diálogo intergeracional. Jovens e não jovens vivenciam múltiplas maneiras de existir – enquanto os primeiros mergulham nessas múltiplas maneiras, os segundos, muitos deles, não se reconhecem nessa multiplicidade. A adolescência se antecipa e se prolonga por períodos mais longos, ensejando a maior influência da socialização horizontal que resulta da ampliação de oportunidades de convivência: numa ponta, a adolescência começa mais cedo, com a aparente antecipação cada vez maior da puberdade; na outra ponta, as dificuldades de inserção na vida adulta, em especial no mundo do trabalho, conduzem ao aparecimento de uma nova etapa, a pós- adolescência (GALLAND, 1997). Um prolongamento que poderia ser uma parte da juventude. Com a multidirecionalidade de sentidos e a pluralidade do universo

cultural, os jovens atribuem motivo aos seus comportamentos e às interações sociais em meio à busca de conexão entre estes sentidos (ALVES-PINTO, 2008).

No convívio com e na adequação a múltiplas lógicas de ação que a todos envolvem, os jovens adotam condutas favoráveis ao pertencimento a diversos grupos e ao entendimento dos por quês de suas vivências. Adotam comportamentos individuais ou coletivos marcados pela heterogeneidade de princípios e ações, o que, ao modo como ocorre com os adultos, leva à obrigação, entre os jovens, de construir sentido para suas ações nesse espaço heterogêneo (DUBET, 1994, 1998, 2013).

Se, por um lado, esta configuração polissêmica pode favorecer a ocorrência de diálogos com os jovens, o que estimularia a criatividade, a construção de saberes e a atuação local e global; por outro lado, parece ser esta configuração o seio de problemas sociais envolvendo jovens, a exemplo das dificuldades de ingressar no mundo do trabalho e de acessar a habitação (inúmeros coabitam mais tempo com os pais, embora casados ou unidos informalmente), resultando mesmo em revolta, marginalidade e delinquência, às vezes até associadas ao consumo de drogas (PAIS, 2003).

No âmbito educacional, problemas como violência, aborrecimento/desinteresse dos adolescentes e jovens com relação à escola, analfabetismos e evasão constituem apenas alguns dos graves problemas. Emergem, como grande desafio, a busca de soluções, por parte da sociedade como um todo e por parte da escola em particular.

Paralelamente, como os currículos pouco falam aos jovens (GOMES, 2011), a duras penas estes conseguem (aqueles que conseguem) exercer o protagonismo da sua aprendizagem. Nesta situação, a escola é convocada a se lembrar da emergência do protagonismo jovem como nova característica do cenário escolar na moldura da pós-modernidade. Por sua vez, a universidade – que ao longo dos séculos provou sua viabilidade e capacidade para se transformar e promover mudanças e progressos nas sociedades (UNESCO, 1999) – obriga-se a renovar-se, permanentemente, devendo se constituir num lugar capaz de conceber as

juventudes segundo quadros mais amplos. Deve ser capaz de entendê-las como

uma constituição de sujeitos sociais e, assim, considerar a diversidade de características individuais.

Nesta perspectiva, as juventudes são entendidas como um processo. São compreendidas como uma sequência de trajetórias biográficas orientadas por pré- estruturações resultantes de ações sociais (PASSERON, 1989), sujeitas à injunção institucional, com reflexos nas identidades pessoais (PAIS, 2003), desde o seu ingresso na vida universitária até os momentos finais de sua formação acadêmica. Dessa maneira, valorizam-se os aspectos subjetivos da conexão Eu-Tu (BUBER, 2009) construída por estudantes e professores, dentre outros membros da comunidade escolar. Ameniza-se a crescente fragmentação dos indivíduos num mundo em que o Eu não tem mais unidade (TOURAINE, 1997). Num mundo em que as pessoas se obrigam a opor esta pretensa unidade à diversidade constitutiva das lógicas de sua ação (DUBET, 1994).

Se, a tarefa inicial do estudante ao acessar a universidade consiste na aprendizagem do ofício de estudante, isto é, aprender a cuidar-se para não ser

eliminado ou para não se eliminar só porque permaneceu como estrangeiro num

espaço para ele novo, o seu ingresso pode ser considerado uma passagem, no sentido etnológico do termo (VAN GENNEP, 1978), quando então o jovem vivencia o tempo do estranhamento, da aprendizagem e da afiliação (COULON, 2008).

Na passagem para a educação superior, diante da simultaneidade de rupturas, o jovem busca autonomia (estuda agora com outros adultos); prepara-se para a vida ativa (trabalho, por exemplo); aprende a decidir a própria vida (inclusive estudar na universidade).

Nestas condições, está presente para os estudantes o rompimento psicopedagógico respeitante às vivências do ensino médio (menos interações entre estudante e professor, sem tutela, no anonimato). A inquietação dos recém- chegados ao mundo acadêmico leva-o a adotarem condutas estratégicas para sua

sobrevivência, frequentemente despercebidas no âmbito institucional, com

evidências de que tais condutas os acompanham até a conclusão do curso.

No Brasil, por exemplo, estudantes do período noturno têm dificuldades para conciliar estudos com trabalho profissional e para associar teorias à prática profissional. Eles se ressentem de informações mais amplas para decidir melhor a

respeito do curso e da profissão. Evadem-se, muitos, em decorrência da frágil formação recebida na educação básica (CARRANO, 2002)60.

Já o professor universitário vivencia situações pessoais e profissionais no fluxo e refluxo das relações construídas no seu cotidiano, seja no plano individual ou coletivo. Tendo dificuldades de estabelecer efetivo diálogo com os estudantes, pode não articular a contento os aspectos informativos e os formativos da educação (VASCONCELOS; CÂMARA, 2011; VASCONCELOS, 2011a), não sendo raro internalizar que é mais viável formar-se na prática do que nos cursos oficiais (LÜDKE; BOING, 2012; LABAREE, 2004) ou que a indisciplina faz parte do dia a dia das salas de aula (GOMES et al., 2013). Desse modo, constroem identidades no exercício da docência, na interação com estudantes e colegas, gerando novas visões de mundo e de ser humano, com muitos desses professores a atuar em turmas numerosas – relacionado, mas, não necessariamente, com a intensa expansão da educação superior nas últimas décadas.

Neste aspecto, longe da previsão do século passado de que haveria 100 milhões de estudantes na educação superior em 2025 (JOSPIN, 1999), já em 2004 havia 132 milhões e, se consideradas as taxas de crescimento previstas pela Unesco e pela OCDE, pode-se estimar já havendo para mais de 170 milhões de estudantes (UNESCO, 1999; OECD, 2010).

No Brasil, eles são mais de seis milhões (BRASIL, 2012c), valendo ressaltar que, com o advento da chamada Lei das Cotas (BRASIL, 2012d), a ser implementada até 2016, as instituições federais de educação superior brasileiras deverão destinar 50,0% das vagas oferecidas em cursos de graduação a estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, devendo a metade destas vagas ser reservada aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 SM per capita e, independentemente da renda familiar, aquele percentual de 50,0% deverá reservar um mínimo de vagas para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas61.

60 Em 2009, a taxa de escolarização bruta dos jovens brasileiros na faixa etária de 18 a 24 anos,

educação superior, ficou em 26,7% (BRASIL, 2012c). O atual Plano Nacional de Educação define a meta de 50,0% para essa taxa (BRASIL, 2014).

61Segundo a Lei das Cotas, esta reserva mínima será definida conforme a proporção de pretos (sic),

Intensificam-se as preocupações relacionadas à heterogeneidade dos públicos; à estranheza dos estudantes com relação às normas escolares; ao desconforto dos professores diante do nível dos estudantes; às novas diversidades introduzidas à medida que se abre o leque de acesso; à angústia dos estudantes. Com a expansão da educação superior em escala mundial, a universidade passou a acolher populações jovens de diversificadas formações socioculturais. Ser aluno significa dominar o currículo da sala de aula e ser adolescente e jovem significa transitar por corredores dos currículos da rua, podendo ser os pátios e as cercanias da escola e da universidade, onde eles se socializam e exercem protagonismo (GOMES; VASCONCELOS; LIMA, 2012). Assim, de alguma maneira, estudantes e professores seguem construindo, a seu modo, experiências sociais que podem ou não interagir.

Este quadro impõe à universidade se definir menos em termos de valores a transferir ou de funções a desempenhar e mais em termos de capacidade para produzir ações combinadas, realçando um modelo organizacional não mais concebido como instrumento para institucionalizar valores. Com as profundas transformações sociais intensificadas a partir das duas últimas décadas no século passado, entraram em curso importantes processos de desinstitucionalização de escolas e universidades, explicados ora como mutação (DUBET, 1994, 1998, 2013), ora como crise (SANTOS, 2005).

Se explicados como mutação, esses processos envolveriam a massificação da escola, a inflação dos diplomas, a fragmentação das fronteiras entre educação e instrução, a dispersão dos modelos educativos, dentre outros, contribuindo para aprofundar a separação entre as funções escolares de selecionar, educar e socializar. Se explicados como crise, e referindo-se particularmente à universidade, os processos de desinstitucionalização envolveriam a perda da exclusividade dos conhecimentos produzidos e transmitidos por ela, a diversificação dos perfis sociais dos destinatários destes conhecimentos e a perda da peculiaridade organizacional da universidade, caracterizando as chamadas crises de hegemonia, legitimidade e institucional.

Este contexto parece convocar a universidade a realçar sua característica fundamental de ser lugar de diálogos (MENDES, 1968). Parece exigir da universidade o estabelecimento de diálogos estratégicos que contribuam, dentre

outros, para: fomentar um sistema educacional contínuo no qual se situam os estabelecimentos de educação básica e superior (UNESCO, 1999); tornar indissociáveis o ensino, a pesquisa e a extensão (BRASIL, 1988; 1996); promover a interação intergeracional, envolvendo estudantes e professores; articular aspectos informativos e formativos da educação; conectar os diversos tipos de conteúdos na sala de aula; estabelecer, na prática, vínculos entre concepções de ser humano e de projeto educativo.

Caso contrário, poderá gerar distanciamento gradativo, com prejuízos não só no âmbito interno da universidade, mas no âmbito da relação mantida com a sociedade. Nos países caribenhos e latino-americanos, por exemplo, o distanciamento entre instituições de educação superior e demais instâncias sociais tem produzido consequências como desigualdade e exclusão histórica dos indivíduos, grupos sociais e países (BRASIL, 2012f).

Assim, diante de uma crise institucional da universidade como reflexo das crises de hegemonia e de legitimidade (SANTOS, 2005), seria o caso de considerar o quanto se torna necessário à universidade estabelecer diálogos para que enfrente melhor os processos de desinstitucionalização. É certo que a crise institucional envolve o declínio do Estado nacional, compreendido como o quadro político e cultural atrelado às sociedades modernas (DUBET, 2004; SANTOS, 2005; TOURAINE, 1997); envolve o fracasso do Estado-Providência, que, com suas reestruturações orçamentárias, frequentemente contribui para deteriorar políticas de habitação, saúde, educação, dentre outros tipos; envolve a pressão sofrida das empresas para que a universidade se faça mais presente no aumento da produtividade, o que leva ao desenvolvimento de múltiplos curricula e, junto com isto, à perda da autonomia (SANTOS, 2005). Tal é a rede de cenários em que se situa a universidade, parecendo fundamental a necessidade de estabelecer diálogos profícuos.

Uma mirada estratégica evidencia que, ao atuar como instituição racionalizadora da modernidade, a universidade vivencia contradições, como, por exemplo, quando recebe o jovem que, embora tenha dominado a multiplicidade de currículos e superado dificuldades de acesso à educação superior (SPOSITO, 2009), tem sido tratado à revelia da lição freireana a respeito da autonomia do ser do educando (FREIRE, 2009). Com tal contradição, desenvolve-se no estudante o tipo

de cultura voltada para a formação com foco no trabalho, para vincular, em seguida, à priorização do credenciamento de “competências gerais transferíveis”, visando a atender necessidades de empregadores (FIELDEN, 1999, p. 434). Dialeticamente, essa contradição se alimenta de decisões cotidianas, fortalecendo o problema da hegemonia e da legitimidade que, noutra rodada dialética, repercute na crise institucional (SANTOS, 2005).

Contradições de tal natureza em parte decorrem da educação bancária, da pedagogia conteudista e monológica (FREIRE, 1987), compatível com o ideal da escola moderna, onde ressoa a racionalidade da modernidade sólida (BAUMAN, 2001). Nela existe algo não coetâneo da modernidade líquida, ou pós-modernidade, pois, simultaneamente à convivência dos conhecimentos estruturados como verdades incontestáveis transmitidos aos jovens com as normas e hábitos advindos da modernidade, as pessoas buscam compreender e compatibilizar lógicas de ação diferenciadas (DUBET, 1994; GATTI, 2005).

Com Freire (1987), antes de ser apenas transmissão de conteúdos, a educação é problematizadora, portanto, dialógica e, por ter o diálogo em sua essência, considera a relação Eu-Tu e o mundo nesta relação. Tais entendimentos, se internalizados por diversos âmbitos da universidade, ressignificam a dinâmica curricular da sala de aula, pondo em relevo o papel desempenhado pelo professor, ator principal na concretização desta dinâmica – o processo educacional inicia e finaliza efetivamente na prática didático-pedagógica (CÂMARA, 1995).

Embora até concebendo o currículo como projeto voltado para o desenvolvimento humano no âmbito de conteúdos, valores, atitudes e experiências, ou como uma construção que iniciaria na multiplicidade de práticas inter- relacionadas por meio de decisões tomadas nos contextos social, cultural, político, ideológico e econômico (PACHECO, 2009), por vezes, o professor universitário parece reduzir sua atuação à conversão de informações em conhecimento. Há evidências de que, para ele e para a universidade, tornou-se difícil articular informação e formação (VASCONCELOS; CÂMARA, 2011; VASCONCELOS, 2011a).

Desse modo, os aspectos informativos, e não a sua articulação com os formativos estariam sendo priorizados, com impactos na interação entre as experiências sociais de estudantes e de professores, distanciando o processo

educacional dos quatro pilares da educação para o século XXI (DELORS et al., 1998). Lembre-se que, além de tornar informação em conhecimento e consciência crítica, os professores podem contribuir para formar pessoas (GADOTTI, 2000).

Ora, se o cerne da vida acadêmica está na interação entre vivências de estudantes e de professores organizadas para a operacionalização do currículo, seja explícito ou implícito, evidencia-se a relevância do diálogo, passível de identificação, análise e entendimento no âmbito da interação entre as experiências sociais de estudantes e de professores.

Um importante lugar onde esta interação ocorre é a sala de aula. É um espaço onde se constrói o encontro de vivências, saberes, interesses e problemas conectados com a realidade (MASETTO, 2012), ou seja, lugar do complexo intercâmbio de experiências valorativas. Um lugar propício a ser o ponto de partida e de chegada para a construção de diálogos estratégicos na universidade, uma vez que oportuniza fundar a pedagogia dialógica, a educação dialógica (FREIRE, 1987, 2009), o currículo dialógico – intenção nem sempre concretizada.

Diante dessas explicações, emergem as seguintes indagações:

a) Existe interação entre experiências sociais de jovens estudantes e de professores universitários na sala de aula? Quais as manifestações mais correntes dessa interação? Caso exista essa interação, quais seriam as vinculações causais entre as experiências sociais e os sistemas que compõem o processo educacional? Quais seriam as semelhanças e as dessemelhanças entre essas vinculações causais? Em que medida essa possível interação atenderia aos quatro pilares da educação para o século XXI?

b) Quais as lógicas de ação utilizadas por jovens estudantes e professores na sala de aula? Como ocorre a conexão entre elas?

c) Existe articulação entre os aspectos informativos e os formativos da educação na sala de aula e, em existindo, como se manifesta e em que medida contribui para a interação entre as experiências sociais de jovens estudantes e de professores?

d) Quais as percepções de jovens estudantes e de professores universitários a respeito da interação entre as experiências sociais, de uns e de outros,

construídas por eles na sala de aula? E como percebem os diálogos desenvolvidos na sala de aula?

Em síntese, a presente pesquisa buscará identificar: quais os aspectos relevantes da possível dinâmica de interação entre experiências sociais de jovens estudantes e de professores no âmbito do processo educacional desenvolvido na sala de aula da universidade?