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DIÁLOGOS INFERNAIS: A ORIGEM INTERDISCURSIVA DE UMA OBRA

No documento Processos de criação em debate (páginas 86-89)

Josué Guimarães tardiamente se dedica a literatura. Apesar de eventuais publicações de contos em jornal, o início, propriamente dito, de sua produção literária, acontece a partir de 1969, após ser premiado no II Concurso de Contos do Estado do Paraná. Até então, dedicara- se ao jornalismo, exercendo múltiplas funções, de ilustrador e diagramador a editorialista e redator-chefe. A atividade profissional na imprensa demostrava uma frequente postura opinativa no que se refere à política que lhe era contemporânea, em um cenário no qual o escritor exerceu eventuais cargos na política de seu tempo, como o de vereador em Porto Alegre, eleito em 1951. A diversidade de funções pode ser associada à posterior versatilidade

na escrita, quando a partir dos 50 anos de idade, passa a publicar livros de contos, romances, novelas, literatura infantil e juvenil.

Há, contudo, um gênero que Josué apenas visitou, pouco ousando quanto a uma exploração mais dedicada: o teatro. Para ele, a escrita teatral, apesar da maturidade como romancista e contista, talvez ainda representasse um aprendizado, trabalho de base experimental. Por isso, no um curto espaço de tempo em que escreveu roteiros, evitou publicidade quanto a sua produção. Seu único texto teatral, Um corpo estranho entre nós dois, publicado em 1983, pouco tempo antes de sua morte, não foi reeditado a pedido do próprio autor. Assim, essa produção de textos teatrais inédita, traz marcas da escritura em movimento o que justifica um estudo genético sobre a obra. Estas marcas de escritura, quando mais cuidadosamente observadas, trazem à superfície índices que colocam o autor num espaço de admiração pela literatura de expressão portuguesa.

O projeto inédito A Nau dos inocentes envolve as leituras de Josué Guimarães quanto ao cânone literário português, no que diz respeito, em especial, à obra de Gil Vicente e, em especifico, ao Auto da barca do inferno (1516), que inicia a trilogia Os autos das barcas (1516-1519). Gil Vivente é uma das leituras de Josué Guimarães, no que se associa aos jogos intertextuais explicitamente advertidos, ou em um elemento paratextual, ou na própria constituição do enredo, somada à força do título, como, por exemplo, A Nau dos inocentes, no que pode evocar do teatro vicentino. Na noção de que escrever é sempre reescrever, Samoyault aponta que as associações intertextuais talvez sejam uma caracterização da própria literatura, que não atribui, na ordem da autoria, uma origem absoluta ou, ainda, “deixa de confundir origem e originalidade” (2008, p. 78). Nesse sentido, apesar de tudo já estar dito, a capacidade criativa do autor superaria a melancolia de não ser possível propriamente criar algo, justamente na assunção da memória pela qual seriam possíveis as “re-apropriações múltiplas do já dito” (2008, p. 79). A leitura é parte dessa memória que pode tanto buscar apoio em algum livro concreto, presente dentre os objetos que compõem a vida e a identidade do autor, quanto pode estar potencialmente à disposição na biblioteca interna do autor, nas coisas que leu e que permaneceram na sua (in)consciência:

É a partir dos livros que Josué Guimarães articula seu discurso, sua ferramenta de ação. O realismo assim, estética associada como majoritária em sua produção literária, é algo “contaminado” pelo “filtro” da biblioteca e dos livros que conheceu. A produção literária do autor de Camilo Mortágua, principalmente no que se associa ao teatro que jamais publicou, parece apontar para o acervo de sua memória, fazendo dela a lente pela qual vê o mundo, que procura denunciar. Nesse sentido, a obra de Gil Vicente parece ser o elemento que autentica a

produção da obra teatral de Josué, posto que seja, provavelmente, o discurso do qual o escritor se apossou para reescrever outra história. O autor, para construir A Nau dos inocentes se vale principalmente da obra vicentina Auto da barca do inferno (1516).

A trama se constitui, associada aos demais autos do teatro vicentino, de uma crítica às instituições até então jamais levada pelo autor a tamanho grau de elaboração e de ousadia. Misto de moralidade medieval e de sátira, o Auto da barca do inferno apresenta treze personagens no transe da morte, à espera da sentença que as levará, conduzidas pelo Arrais do Paraíso, o Anjo, à salvação, ou pelo Arrais do Inverno, o Diabo, à condenação eterna. São eles o Fidalgo, o Onzeneiro, Joane (o Parvo), o Sapateiro, o Frade, Florença (a moça), Brízida Dias (a Alcoviteira), o Judeu, o Corregedor, o Procurador, o Enforcado, Quatro cavaleiros e o Pajem. Desses todos, embarcam para a Glória apenas Parvo e os Quatro cavaleiros. Os demais, pelas mais distintas razões, associadas a um julgamento moral, delimitado por uma coerência não livre de certa ambiguidade, embarcam para o inferno. Entre a ortodoxia do código catolicista e um pensamento reformista, Gil Vicente parece querer mostrar os males da sociedade, o que de certa forma inviabiliza uma vida melhor aqui na terra. Nesse aspecto, Gil Vicente desapega-se das formas medievais de arte, orientadas para a glorificação e consagração do celeste. A arte anterior ao teatro vicentino, visível na escultura e na arquitetura, tanto quanto perceptível no teatro, sustentava-se em um “sistema de evocações” (SARAIVA, 1965, p. 73), não pretendendo ser imitação da natureza ou das coisas do mundo, mas construindo-se em uma codificação simbólica, a qual necessariamente aludia à comunicação a um jogo litúrgico de comunicação entre o plano terreno, sensível, e o mundo divino, o verdadeiro:

Com efeito, a liturgia é antiescultórica (e antidramática) [...] o princípio da liturgia é que, mediante certas cerimônias e certos símbolos, é possível estabelecer uma comunicação entre o mundo terreno e o mundo divino. O mundo divino – infinito, intemporal, etc. – não representável em termos do mundo terreno, mas evocável, comunicável, mediante ele. [...] Desta maneira, uma arte litúrgica (supúnhamos provisoriamente a compatibilidade dos dois termos) não pretenderá ser a representação, que dizer, uma imitação, de uma coisa que por sua natureza é irrepresentável, mas um sistema de símbolos evocadores, considerados tais por qualquer motivo, inclusive a convecção. Quanto mais insignificativos em si próprios, quanto menos imitativos, tanto mais esses símbolos realizarão a tendência litúrgica (SARAIVA, 1965, p. 73).

O teatro vicentino supera a liturgia. Mesmo os “tipos”, os que apresentam, não são prefigurações ao sagrado, não são um “mostrador mediante o qual se contate com o outro

plano de vida” (SARAIVA, 1965, p. 73), mas objetividades pelas quais, no novo caminho do teatro, é possível a observação do ser humano.

No documento Processos de criação em debate (páginas 86-89)