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QUEM CONTA UM CONTO, AUMENTA UM PONTO, DE LISETE NAPOLEÃO MEDEIROS

No documento Processos de criação em debate (páginas 167-175)

O presente artigo tem como objetivo analisar os manuscritos de Lisete Napoleão Medeiros, observando suas anotações, rascunhos e rasuras e refazer o caminho que ela percorreu, além de trazer os elementos que influenciaram as escolhas tomadas durante esse processo. Para melhor compreensão da análise genética do corpus e por não existir ainda um padrão acerca dos códigos utilizados, nessa pesquisa foram adotados os seguintes sinais: {} para acréscimo, <> para rasura de substituição e [] para rasura de supressão. A análise dos documentos de processo da obra estudada pode revelar o percurso evolutivo da mente criadora do artista desde as primeiras ideias, até a arte considerada como final.

O movimento genético observado nos documentos de processo de Quem conta um conto, aumenta um ponto

Através do dossiê, é possível observar nas pistas da criação deixadas pelo movimento genético, os pensamentos da autora nas notas e rasuras. O dossiê genético de Quem conta um

conto, aumenta um ponto, é composto pelo seguinte prototexto: o caderno autógrafo da autora

e dois fólios, estes numerados de fólio 01 e fólio 02.

No caderno autógrafo da escritora, observa-se o movimento da gênese criativa desde o planejamento dos títulos, a disposição que deveriam ter as histórias no livro, até a fase redacional de diversos textos que comporiam a obra, carregados de elementos genéticos, visualizados nas rasuras de adição, supressão e substituição. Com esse estudo é possível começar a entender como se deu a arquitetura criativa da obra estudada. Salles (2011, p. 26) diz: “[...] Há, por parte do artista, uma necessidade de reter alguns elementos que podem ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa concretização”.

Encontra-se na página 14 (quatorze) do caderno autógrafo da autora, logo abaixo da data 1994, uma lista com supostos nomes dos capítulos na ordem que deveriam compor o

sumário da obra. Seguidamente ao provável sumário da obra, encontra-se uma nota acompanhada de um asterisco que diz: “Recontar e/ou reinventar cerca de 40 estorinhas para crianças ou um público infanto juvenil” (sic). Durante o estudo genético observou-se que foram feitos alguns acréscimos e deslocamentos da escritura manuscrita em relação à obra acabada. Comungando do pensamento de Salles (2011, p. 26), podemos dizer que “Os documentos de processo são, portanto, registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma construção que age como índices do percurso criativo.”

Figura 1 – Plano do suposto sumário do livro

Fonte: Acervo da autora

Ao se recorrer à obra finalizada, observa-se que a autora decidiu acrescentar outras histórias, e o que se vê no sumário definitivo é a lista antes planejada com o acréscimo dos capítulos: {O Calote da Loira}, {A Negra que Matou os Leões}, {O Encanto da Ilha}, A Baleia {Adormecida}, {Santo Antonio Aparecido}, {O Morro da Cruz}, {Pé-de- Garrafa},{Pinto-Pelado},{Cabelobo}, {Lobisomem}, {Zumbi-de-Caboclo}, {Miridam}, {Barba-Ruiva}, {Velha do Peito Só}, {Pé-de-Anjo}, {Belzebu}, {Foguinho Misterioso}, {Morou, Tá na Boca}, {O Menino do Boné Vermelho} e o {O Boi de Dona Briolanja}. Chama-se atenção para o capítulo intitulado no manuscrito como A Baleia, ao qual a autora fez o acréscimo do adjetivo {adormecida} ao título.

Durante a análise, observaram-se as marcas deixadas no processo criativo; dentre elas, muitos acréscimos. Essas adições revelam o momento da criação em que Lisete Napoleão,

diante de uma diversidade de casos populares, decide adicionar mais histórias à obra. Essa escolha traz consequências à disposição dos títulos, a ordem em que são apresentados na obra final. Ao compararmos o texto final com o documento autógrafo (figura 1), nota-se que com os acréscimos acima descritos são encontrados entre uma história e outra, 19 (dezenove) capítulos somados aqueles que compuseram a primeira anotação da autora.

No verso da décima quarta folha, contém uma anotação referente ao objetivo do livro e logo abaixo à escolha do título da obra, escrito com caneta preta, onde é possível observar que a autora grifa de caneta vermelha o que o que mais tarde viria a ser título definitivo.

Figura 2 – Anotação encontrada do caderno autógrafo da autora, com possíveis títulos para a obra

Fonte: Acervo da autora

No fólio 01 a autora volta a pensar no título que daria à obra. É possível observar anotações escritas com lápis referentes a essa escolha. Além da opção “Quem conta um conto, aumenta um ponto”, já registrada anteriormente no caderno autógrafo, que constitui o prototexto desta pesquisa, agora se lê: “Contando as lorotas que ouvi”. Na segunda opção, mais uma vez, fica claro o estilo que autora pretende dar à obra, uma linguagem simples, bem próxima da realizada entre aqueles que se apropriam e difundem os casos populares do imaginário piauiense. Logo abaixo, um esquema de como ficaria disposto sequencialmente o livro, seguido de uma anotação planejando o sumário que diz: “Sumário: 50 estórias (as 10 de assombração), outra de santo-surreal-animais-índios-...”. Entre as cinquenta histórias pretendidas, apenas trinta e oito foram publicadas na obra, mas é possível observar que a autora optou por começar com histórias de assombração, seguidas de casos populares, que envolvem a fé, em meio a lendas surreais nas quais atuam animais e índios. A análise desse documento, nos leva ao encontro da teoria de Cecília Salles (2011), que chama a atenção para

um processo de armazenamento de informações que auxiliam o processo criativo e a concretização da obra, contidos nos manuscritos.

Figura 3 – Fólio 01, com planos para o título e esquema de como cada parte que compõe o livro deveria ficar disposta na obra acabada

Fonte: Acervo da autora

Um pouco mais abaixo, encontra-se uma observação sobre a ilustração do livro, que deveria constar em cada história, o que serviria de atrativo para o público infanto juvenil, foco da publicação. Por fim, a autora registra: “1995/1996-julho/janeiro”, que, de acordo com seu relato oral, naquele momento, referia-se a possíveis datas de publicação da obra. O manuscrito contém vestígios que revelam o caminho que a artista percorreu até conseguir uma obra com determinadas características. Dessa forma, com a análise dos documentos de processo é possível resgatar o processo de composição da obra.

Durante a análise do registro autógrafo presente no fólio 02, verifica-se que na frente da página, há a continuação da redação do capítulo Santo Antônio Aparecido, agora por completo. O texto apresenta algumas rasuras, que levam o pesquisador bem próximo da intimidade do processo criativo.

No início do texto Santo Antônio Aparecido no fólio 02, o trecho “Na cidade de Campo Maior” é suprimido e substituído por “Nos arredores de Teresina”, mais tarde na obra acabada, a opção antes abandonada é recuperada. Seguindo a leitura do documento, encontram-se algumas rasuras de adição feitas com lápis, no texto antes escrito com caneta

preta: “Pescadores que encontraram {a} imagem, levaram-na para a cidade e com o apoio da comunidade, {começaram a construção de} construíram uma igreja para o santo, mas toda manhã, quando chegavam ao local para edificar {a} igrejinha, a imagem não se encontrava mais ali, voltava sempre para o local onde foi achada ou seja, perto do córrego”.

Figura 4 – Manuscrito do capítulo Santo Antonio Aparecido, encontrado no fólio 02 (frente)

Fonte: Acervo da autora

Vários movimentos genéticos são observados durante a análise do manuscrito e do texto acabado, entre as muitas rasuras feitas no manuscrito, algumas permaneceram na obra final, outras foram substituídas ou suprimidas, houve ainda, acréscimos de trechos. No último parágrafo, percebe-se a substituição de <o santo chorar de felicidade> por <no pequenino rosto do santo casamenteiro, lágrimas de felicidade>. Verifica-se, na obra acabada, que a maioria das mudanças projetadas na reescritura desse capítulo, presentes no fólio 02, permaneceram. Grésillon (2007, p. 65) destaca que “a escrita é em alguns momentos, gritos de emoção (Bataille) que o geneticista pode nela ler rupturas que intervêm de súbito no desenvolvimento escriptural mais ou menos regular [...]”.

A observação do processo criativo que esses documentos guardam, permite através dos vestígios e marcas deixadas pela mão da autora Lisete Napoleão, adentrar no espaço da criação e acompanhar o funcionamento do pensamento criativo, e muitas coisas que foram intuídas e imaginadas durante esse processo para melhorar a escrita. As rasuras transmitem as inquietudes que se fizeram presentes no processo de criação da obra Quem conta um conto,

aumenta um ponto. Observando esse movimento através da análise do dossiê genético, é

escolhas da autora até a obra final. Os documentos de processo permitem ver, segundo Cecília Salles (1992, p. 35) “os diversos componentes da escritura na combinação de suas relações de onde nasce o movimento da gênese”.

Em suma, durante a análise do movimento genético de Quem conta um conto,

aumenta um ponto, observam-se na escritura de Lisete Napoleão, aspectos típicos da cultura

popular do Piauí. Em cada escolha feita pela autora durante o desenvolvimento da obra, fica clara a decisão frequente por expressões presentes na oralidade piauiense, o que torna a linguagem ainda mais acessível ao público indicado, no caso, o infanto-juvenil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os objetos de estudo dessa pesquisa foram os documentos de processo da obra Quem

conta um conto, aumenta um ponto. Apoiando-se teórica e metodologicamente na Crítica

Genética, reconstituiu-se com base nos documentos que compuseram o dossiê genético, o processo criativo da obra. Observou-se, através dos passos deixados nos documentos autógrafos, que caminho Lisete Napoleão percorreu ao escrever Quem conta um conto,

aumenta um ponto.

A análise dos documentos de processo da obra estudada feita na pesquisa, permite o acompanhamento da inquietude criativa evidenciada nas rasuras, que refletem o funcionamento do pensamento da artista durante o ato criativo, as influências que a teriam levado a determinadas escolhas durante a realização do trabalho desenvolvido ao longo da escritura. Logo é possível reconstituir a gênese da criação de Quem conta um conto, aumenta

um ponto através dos vestígios deixados pela mão de Lisete Napoleão, tendo como base o

estudo dos seus documentos autógrafos, que permitem alguns resultados.

A investigação genética efetuada através da interpretação, descrição e análise dos fólios e do caderno que compuseram o dossiê genético de Quem conta um conto, aumenta um

ponto, evidenciaram o movimento genético na escritura, da seguinte forma: as rasuras feitas

pela escritora nas anotações autógrafas foram de adição, supressão e substituição. As escolhas tomadas durante a gênese criativa são constatadas nas mudanças que se concretizaram no decorrer da composição da obra.

No caderno autógrafo, encontra-se a fase redacional de muitas histórias que compõem o livro, estas contêm mais rasuras de adição e substituição de palavras e/ou trechos, que supressões. Já o fólio 01 possui um processo genético de planejamento e esquemas, com a sua observação é possível acompanhar as ideias referentes à escolha do título do livro, assim

como a disposição sequencial das unidades que comporiam a obra, de acordo com os planos da autora.

Algumas anotações foram reformuladas no fólio 02 que é composto pela reescritura e continuação da redação de alguns capítulos. Comprova-se que muitos ajustes e mudanças observadas nesse documento, permaneceram na obra final. De acordo com a investigação desenvolvida neste estudo, verificou-se que a maior parte dessas modificações encontradas nas rasuras foram devido às pesquisas da autora que, a cada etapa da escritura buscava uma adequação do texto às características gerais da obra.

Em suma, a análise dos manuscritos de Lisete Napoleão revela diálogos entre a autora e o texto, durante a gênese criativa, que modificaram e enriqueceram a obra acabada.

Os documentos analisados demonstram a forma como se desenvolveu a arquitetura da criação, as marcas encontradas nos manuscritos, mostram um método de criação artística que busca termos que conservem as características da oralidade piauiense, de modo a tornar as histórias que compuseram a obra mais autêntica e a linguagem cada vez mais coerente ao público infanto juvenil, ao qual a obra foi direcionada. Esse estudo proporciona ao leitor informações que complementam a leitura do texto ao nos oferecer uma nova dimensão para compreensão da obra e um saber diferente do oferecido pela obra tida como final.

REFERÊNCIAS

BERGEZ, Daniel [et al.]; Tradução Olinda Maria Rodrigues Prata; revisão da tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. Métodos críticos para a análise literária. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BEZERRA, Ângela Maria Grando; CIRILLO, José (Orgs). Arqueologias da criação: estudos sobre o processo de criação. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

BIASI, Pierre-Marc de. A genética dos textos. Tradução Marie-Hélène Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

GRÉSILLON, Almuth. Elementos de crítica genética: ler os manuscritos modernos. Tradução de Cristina de Campos Velho Birck. Porto Alegre: UFRGS, 2007.

MEDEIROS, Lisete Napoleão. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Teresina: GRAFISET, 1996.

PINO, Cláudia Amigo; ZULAR, Roberto. Escrever sobre escrever: uma introdução crítica à crítica genética. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

SALLES, Cecília Almeida. Crítica genética: uma introdução, fundamentos dos estudos genéticos sobre os manuscritos literários. São Paulo: EDUC, 1992.

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No documento Processos de criação em debate (páginas 167-175)