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A NAU DOS INOCENTES: O SILÊNCIO DA BARCA

No documento Processos de criação em debate (páginas 89-93)

A produção literária dramática de Josué Guimarães, como já dito, em grande parte inédita, inclui um texto com fortes influências do teatro vicentino. A nau do inocentes é um projeto composto de três prototextos acondicionados no ALJOG/UPF. Há um esquema manuscrito, em um caderno de atas, que esboça o enredo da peça, as partes e as personagens, e as duas versões datiloscritas, que desenvolvem esse esboço inicial. Uma versão, em folhas de pauta da Folha de São Paulo, com várias marcas de revisão, tem 64 páginas; outra, encadernada, em folhas de ofício, caracteriza-se por poucas intervenções manuscritas do autor na forma de rasuras, tem 59 páginas. Sobre esta última versão, foram estabelecidas algumas considerações, em um estudo que se encontra em fase inicial. A escolha dessa versão se dá pelo fato de parecer, pela encadernação e pela ausência de rasuras, talvez, a mais próxima de uma etapa conclusiva de trabalho.

A peça se estrutura em dois atos e seis quadros. Estão previstos, em indicações de regência, em uma lista, seis atores, os quais representarão dezoito personagens. O primeiro ato, em cinco quadros, foca acontecimentos que fazem parte do mundo profano; o segundo ato se dá no plano sobrenatural, quando as personagens se deparam, na pós-morte, com a barca dos mortos. Os quadros do primeiro ato são os seguintes, como indicado pelo autor: Quadro 1. O prostíbulo

Quadro 2. O político Quadro 3. O tribunal Quadro 4. A delegacia

Quadro 5. (não numerado nos datiloscritos). A guerrilha.

O quadro único do segundo ato chama-se “A barca dos Mortos”.

Os dezoito personagens, como já dito, representados por seus atores são distribuídos previamente, permitindo, o autor, contudo, que essa distribuição possa ser alterada, “visando a melhorar o desempenho de cada um, além de suas características pessoais”. Assim, por exemplo, a Prostituta, que aparece no primeiro quadro, pode ser a mulher do político, no quadro II. Da mesma forma, o General, que é representado no último quadro do primeiro ato intitulado “A Guerrilha”, pode ser o Policial do quadro 4, “A delegacia”. Essa associação entre os personagens em torno de um ator não parece ser aleatória, embora se registre a

flexibilidade do autor nos papéis a serem assumidos. A prostituta, como se verá, parece contaminar as ações da mulher do político. O general terá elementos de ligação, na natureza das atribuições e das ações autoritárias, com o policial.

O primeiro quadro apresenta o diálogo entre a Prostituta, o Executivo e o Vendedor (antes arrolado como Representante Comercial) e o Médico. Nesse quadro, o cenário apresenta três paredes inteiriças de cor cinza claro, contendo ao fundo, um grande símbolo erótico. Há apenas uma cama simples e um ou dos bancos em cena. A ação envolve o conflito entre a mulher e seus clientes. Ao executivo, informado pela Prostituta, aflige o medo de ter contraído tuberculose de outra prostituta, na mesma casa, afetando assim, a saúde da família; quanto ao Vendedor, representante de um laboratório multinacional de produtos para a lavoura e a pecuária, a discussão se dá em torno das ideais da venda e das mercadorias, o que acaba por reificar a Prostituta, que reage e expulsa o homem do quarto. Ao fim do quadro, o Médico, em um momento de comicidade no drama, a pedido a dona do prostíbulo, adentra em cena para examinar a mulher, tendo em vista as febres que acontecem na casa. A Prostituta seduz o Médico, apesar da resistência dele, afirmando: “Deixe disso, doutor. E depois ninguém vai ficar sabendo. Espero um pouco, o senhor está nervoso... a ética fica um pouquinho mais para baixo, assim, meu amor”.

O segundo quadro tem o mesmo cenário, substituído, ao fundo, o símbolo erótico por um símbolo do Congresso nacional de Brasília. O conflito envolve políticos discutindo a filiação de um deles a um novo partido, no momento da reabertura política, com o fim do bipartidarismo. Em jogo está a questão da fidelidade aos ideais, contrapostos às vantagens nos jogos de conveniências em torno do poder. No diálogo, a Mulher do Político, um dos que está em cena – representada pela mesma atriz que faz Prostituta do quadro anterior – tem importante papel na ideia de que se “vire a casaca”. O terceiro quadro, o cenário apresenta uma balança desequilibrada, e a ação se dá em um tribunal. Há um juiz que entre a Defesa e a Acusação, suaviza a pena um assassino, justificando a sentença por tratar-se de um crime motivado por legitima defesa da honra. O quarto quadro tem no cenário o símbolo do Esquadrão da morte e apresenta um interrogatório. O delegado inquire um casal de ladrões, acusado de invasão de propriedade e furto. A violência como são acusados pelo Delegado associa-se às agressões desferidas contra o casal por um soldado. A motivação do crime, o desemprego do homem e da mulher, as dificuldades em sustentar quatro filhos, nada disso comove o Delegado. A tortura faz parte investigação. O quinto quadro, em um cenário com símbolos militares, apresenta a conversa entre Oficias do Exército: em discussão está a luta

armada e as táticas do Exército para conter os revolucionários. A cena carnavaliza as ações do poder, desconstruindo as autoridades, apresentando-as como personagens bufas.

O segundo ato encerra a peça. Em um cenário em que há uma roda de leme rústica, um relógio de pêndulo sem ponteiros e uma estante de um livro. Envolto em uma capa negra, sempre aberta, o Caronte espera as almas. São julgados a Prostituta, o Político, o Juiz, o Delegado e o General. Destes, apenas a mulher encontra a Glória e o perdão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa, em fase inicial de análises, relaciona a produção da obra teatral A

Nau dos inocentes, do autor gaúcho Josué Guimarães, como um ato responsivo de suas

leituras, principalmente, das obras que formam a trilogia O auto das barcas (1516-1519), em específico, ao Auto da barca do inferno (1516). Impregnado pelos discursos formadores da obra vicentina, Josué se vê de posse de novas vozes, construindo um elo dialógico entre o que escreveu e os valores ideológicos pertencentes à obra de Gil Vicente. Assim, nas análises ancoradas nos pressupostos dialógicos bakhtinianos e nas teorias da Crítica Genética, pode-se perceber que um sujeito, até mesmo no processo criativo de sua obra, é transpassado por várias vozes. Dessa forma, as vozes e as ideologias empregadas por Guimarães ao escrever A

Nau dos inocentes são oriundas dos discursos anteriores que formaram sua consciência, que o

constituíram como um sujeito capaz de tecer opiniões e expressá-las por meio de seus escritos. A sociedade e a moralidade, apresentadas na obra de Guimarães, colocam em discussão a ética e as tomadas de posição, mostra a política sem ideal, a justiça que não é justa, os aparelhos de repressão contaminados pelo autoritarismo. Contudo, o texto teatral só pode ser dessa forma forjado por dialogar ideologicamente com o teatro de Gil Vicente. O não conhecimento do discurso de Vicente inserido na trilogia O auto das barcas (1516), não possibilitaria a Josué Guimarães a criação de sua obra, até hoje inédita.

REFERÊNCIAS

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UMA ÉPOCA, UMA VIDA, NA BAHIA – 1928/1962: ESTUDO GENÉTICO DE

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