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UNIVERSOS PLURAIS, DIVERSAS MÍDIAS E AS POÉTICAS INTERMÍDIAS NA EXPERIMENTAÇÃO CONTEMPORÂNEA

No documento Processos de criação em debate (páginas 63-71)

Eliane Cristina Testa14 A criação pode ser vista como um processo semiótico, caracterizado pelo movimento criador e pelo estabelecimento de relações entre as diferentes linguagens. Ao discutirmos imagens, palavras, sons, gestos etc., podemos fazer uso de uma perspectiva teórico- metodológica que se destaca por ativar a tessitura dos processos de criação (de um modo geral e amplo). Para Cecilia Almeida Salles, essa perspectiva traz em seu bojo conceitual outras possibilidades de leituras crítico-interpretativas para as áreas mais diversas, como o teatro, o cinema, a dança, a arquitetura, as artes visuais, a música ou a literatura.

Ao lidarmos com uma materialidade heterogênea, que são os documentos de processo, podemos tentar ler/investigar o pensamento em construção (que é sempre móvel e inacabado). Essa ação de ler/investigar é pautada numa metodologia que lança mão da crítica genética. Lembramos ainda que essa metodologia proposta por Salles não visa a descrever as etapas do processo de forma linear; antes, ela oferece um modo de acompanhar as metamorfoses de uma obra/trabalho de arte (ou não), sendo estas complexas (por causa dos desvios e bifurcações) e não-lineares, e traduz, assim, a complexa lógica que envolve o ato criador. Por isso, o pesquisador vive os meandros da criação; se assim é, não se pode afirmar que a sua interpretação-leitura levará à compreensão total do processo/obra, mas sim, em contato com a materialidade do processo, ele conseguirá conhecê-lo melhor, conseguirá acompanhar seu planejamento, execução e crescimento.

Além disso, passamos a verificar os sistemas e/ou mecanismos responsáveis pela geração da obra, lidando diretamente com um processo complexo de apropriações, transformações e ajustes. Tudo isso, para poder compreender a tessitura do movimento/ato criador. Na investigação, diante da materialidade estudada, o pesquisador pode olhar/ler diversos aspectos do processo, desmontando o percurso (os rastros deixados pelo artista) e colocando-o em ação novamente, reativando a sua memória e o reintegrando ao seu movimento natural, dotado de um ir e vir. Tentamos ver, neste movimento criador, os gestos,

                                                                                                                         

14Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e Professora de Literatura Portuguesa do Curso de Letras, da

as formas de pensamento, as escolhas, as tendências do percurso e o projeto poético, que é, segundo Salles, “[...] um projeto pessoal, singular e único. ” (SALLES, 2004, p. 37).

Desse modo, lidamos com a singularidade de cada artista, tentando reunir elementos que podem ser passíveis da concretização de uma obra de arte. Então, diante do armazenamento (os registros que guardam índices/informações) e da experimentação (sempre de caráter hipotético e indutivo), saímos em busca de conectar alguns dos princípios que direcionam as opções de alguns artistas estudados na nossa tese. Uma vez identificadas, as opções, as seleções puderam fornecer informações diversas a nosso estudo de doutoramento, defendido em 2015. Com base nas propostas metodológicas da crítica do percurso estabelecida por Salles, tentamos tornar legível a construção das obras de arte de um grupo de artistas brasileiros contemporâneos, a saber: Bispo do Rosário, Edith Derdy, Elida Tessler, Fabio Morais, Lenora de Barros, Leonilson, Mira Shendel e Nuno Ramos, reativando suas redes de relações e estabelecendo alguns campos de procedimentos.

Lembramos ainda, conforme Salles (2004), que a criação pode ser teoricamente compreendida como semiose e rede, pois o processo criativo se dá em rede e em permanente movimento (semiose). Sob o ponto de vista crítico, essa rede de conexões faz parte de um paradigma relacional. O conceito de rede reforça a ideia de um sistema de interconexões com elementos de interação instáveis, numa regra de funcionamento e de variabilidade. A força de tal imagem da rede nos leva à compreensão de que os procedimentos dos artistas mantêm essas ações de relações múltiplas que abarcam obra/processo.

Por meio dessas novas possibilidades de leituras crítico-interpretativas e diante dos registros do processo, pudemos investigar, descrever e interpretar a ocorrência de diluição ou borramentos de fronteiras entre palavra e imagem nas produções desses artistas (ou em parte delas). Em virtude da natureza e extensão do presente artigo, destacaremos alguns pontos relevantes das produções investigadas na nossa tese, mas sem nos aprofundarmos em demasia nos processos de criação dos artistas que nos levaram a tais conclusões.

Assim, ressaltamos que a palavra parece ser um modo de um pensamento em construção, uma possível forma de inovação, de criação de inúmeras formas que se transformam (semiose); por isso, em sua relação com a imagem, a palavra passa de complemento para ser um (ou a) componente.

Dentre os pontos relevantes acerca da semiose e dos modos do pensamento em construção (que se dão em rede), seguem algumas características que se encontram nas produções analisadas (ou em parte delas): por exemplo, a palavra-escritura quando materializada é o que possibilita a criação de novas obras e faz a cadeia criativa propiciar

transformações intersemióticas e intermídias; há uma matrix (ou matriz do signo), tanto do signo verbal como do visual, que processa uma transformação intersemiótica; a expressão das produções plástico-visuais e literárias nos possibilitou falar de poéticas intermídias (intermeios) e de processos intersemióticos estabelecidos a partir da fusão das linguagens, da ruptura de gênero e da concepção da palavra como um elemento expandido em sua materialidade; o tipo de escritura plástica mais recorrente nessas produções analisadas em nosso trabalho indicia uma obra mais concreta, física e sonora, que é altamente explorada, porque é ela a geradora de diversas formas de linguagens, de movimentação e transformação sígnica.

Ao longo das nossas pesquisas, verificamos que o uso do verbal integrado ao visual, cada vez mais, passa a ser uma prática comum, e textos, palavras e signos escritos têm se proliferado nas artes visuais contemporâneas, talvez visando a intensificar a ausência de hierarquias, a ruptura com as convenções de gênero e a mistura de mídias e linguagens.

Ao estudarmos e refletirmos sobre essas poéticas intermídias (aliás, o termo poético/a é tomado aqui no sentido de criação enquanto processo) ou sobre os diferentes modos de experimentações contemporâneas com a palavra, nós nos aproximamos das possíveis relações que pode haver entre a imagem visual, a palavra e o som. Essas possíveis relações estão intrinsecamente ligadas ao uso da linguagem escrita integrada ao visual. Pensar nesse uso nos levou a ler a palavra também a partir dos procedimentos dos artistas, ou seja, dos seus modos de ações. Ao adentrarmos as camadas dos procedimentos dos artistas, conseguimos formalizar possíveis campos de procedimentos, a saber: Campo 1 – das ações sonoras, vocais e performáticas; Campo 2 – das apropriações e Campo 3 – das visualidades escriturais. Esses três campos estabelecidos pareceram-nos suficientes para compreendermos a pluralidade dos documentos e dos procedimentos dos quais nos aproximamos. Importante destacar, ainda, que nosso estudo parte do singular para o geral.

Tais campos de procedimentos nos ajudaram a expandir nosso olhar, principalmente, ao analisarmos as camadas da criação dos artistas selecionados no corpus do trabalho, verificando nas suas redes da criação o quanto essa pesquisa pode representar uma abertura para outras áreas do conhecimento. Por isso, acreditamos que a investigação pode ser levada para diferentes mídias, tais como: TV, revistas, cinema, design, web, quadrinhos, videogame, publicidade, entre outras. Reflexo de que as práticas e/ou as produções contemporâneas são plurais, mistas, heterogêneas, intermidiáticas, intersemióticas, podendo ser estabelecidas por processos de fusões, de entrelaçamentos de linguagens, de borramentos de fronteiras e gêneros.

Para exemplificar algumas das características descritas nos parágrafos anteriores, no que diz respeito ao uso da palavra (nos documentos de processos e nas obras), descreveremos de forma breve nosso processo de leitura interpretativa pelo viés da crítica de processo (Salles). Além disso, os documentos apresentados a seguir exemplificam uma parte da investigação do ato criativo da artista contemporânea brasileira Lenora de Barros. Vejamos:

Figura 1 - Documento de processo, Lenora de Barros. (Estudos para a série “Não quer nem ver” (2005)

Figura 2 – Documento de processo, Lenora de Barros. (Estudos para a série “Não quer nem ver” (2005)

Fonte: Barros (2011, p. 44)

A partir de alguns documentos a que tivemos acesso, fizemos a sua transcrição para nos aproximarmos de uma representação que julgamos mais adequada (ao menos ao nosso olhar). Porém, nossa leitura foi focada no objeto e em sua realidade (ou realidades). Por isso, acompanhamos uma cadeia de sequências e gestos, e esses traços nos revelaram e/ou desvelaram informações do modo como as formas se transformam. Diante dos documentos, estamos em frente aos modos de pensamento da artista, e esses modos vêm materializados em palavras, diagramas, setas, barras de eliminação, desenhos, diferentes sinais tipográficos, a saber: parênteses, números, sinais de pontuação (aspas, reticências, pontos de interrogação, pontos de exclamação, sinais de mais (+), de igual (=). Esses registros todos são marcas, pegadas, fontes de informação que nos ajudam a compreender melhor as diferentes e complexas formas de um pensamento em ação.

Tentamos reativar esse pensamento por meio da semiose do processo. Assim, vimos que o percurso criativo de Barros engendra um movimento que se configura de forma precária e hipotética, pois seus percursos são sempre experimentais. Recordemos o que fala Salles: “Em termos gerais esses documentos desempenham dois grandes papéis ao longo do processo criador: armazenamento e experimentação. ” (SALLES, 2000, p. 36). Esses documentos armazenam ideias, imagens, palavras e projetos, e tais informações são índices que apontam

para os discursos internos da artista. Diante dos diálogos internos da artista, vemos que sua mente criadora vai tomando decisões e fazendo escolhas. Esses momentos presentes nos registros evidenciam e guardam a complexidade do processo de criação, além, é claro, das suas experiências sensíveis.

Observamos nesses manuscritos (escritos à mão que são também registros da memória em criação), nesses documentos de processos, os gestos advindos das mãos da artista. Essa diversidade de informações contida nos registros guarda forças psíquicas agindo, e a reunião desses traços, vestígios, indicia um movimento intenso ao vivido; por isso, podemos ver a mente criativa em estado de poesia, e esse estado de poesia rege o vir-a-ser-obra. Tais esquemas mentais que envolvem o processo de criação vão se tornando nas operações com os elementos: fotos e textos, nos quais as possiblidades experimentadas são rascunhos inacabados e metamórficos que tiram a criação (ou a obra dita acabada) do âmbito do inexplicável.

Notamos uma questão importante que perpassa toda a produção de Barros: encontramos em suas camadas criativas e em seus projetos poéticos uma constante presença coautorial. Essa tendência em realizar trabalhos em parceria ou em processos colaborativos interfere, completamente, no resultado da obra, pois funde ou incorpora outras realidades, sensibilidades e olhares. Há uma recorrência desse modo de ação ou procedimento criativo, na produção de Barros. Diferentes registros testemunham seu desejo ou intenção de trabalhar em parceria ou em processos colaborativos, configurando mais uma das suas singularidades.

De modo mais geral, ao nos aproximarmos dos procedimentos criadores de Lenora de Barros, a partir dos registros de percurso ou dos documentos de processo a que tivemos acesso, podemos dizer que palavra e imagem sempre caminharam juntas na trajetória artística de Barros. Palavra e imagem estão presentes em suas diferentes experimentações e nas suas redes comunicacionais. Lembramos que, em Qorpo Estranho (o número 2 da revista Poesia

em Greve), a artista publica o trabalho Ri-Chora (SP/1976): este surge como uma obra de

palavras; porém, pela estrutura espacial e sonora em que se apresenta na página do livro, e pelo texto que é trabalhado a partir da linguagem e dentro da linguagem, parece ser uma partitura de elocução na qual a materialidade dos signos acabaria abrindo espaço para futuras experimentações sonoras e performáticas (realizadas em Bienais e em alguns importantes espaços de arte). Assim, constatamos que a artista explora o trânsito entre as linguagens e mídias. Verificamos isso tanto em seus registros de processo quanto nos índices encontrados em seus trabalhos ditos acabados. Seguem abaixo exemplos de documentos de processo da artista e uma possível leitura realizada por nós.

Figura 3 – “Onde se vê” (1983), livro de Lenora de Barros

Fonte: Registro fotográfico da pesquisadora Eliane Testa

Figura 4 – “Para ver em voz alta” (2002), Lenora de Barros

Fonte: Registro fotográfico da pesquisadora Eliane Testa.

É importante lembrar que Barros publicou seu primeiro livro de poemas em 1983, intitulado Onde se vê, pela editora Klaxon. Porém, segundo a própria artista declarou em uma das nossas entrevistas, a maioria dos poemas impressos nesse livro, que estão na forma

palavra, ou seja, aqueles construídos pelo signo verbal impresso, foram, a priori, feitos para videotexto (também chamado de VTX da Telesp, um sistema usado, principalmente, entre os anos de 1980 e 1988).

Os doze poemas, que constituem o livro Onde se vê, foram desdobrados em diferentes obras (interpretamos isso como formas que se transformam e se expandem em outros signos no movimento criador por avanços e retrocessos, ou seja, com total ausência de linearidade). São elas: videotextos, livro de poemas, instalações sonoras, performances e livro-objeto. Essa maneira de Barros lidar com a sua criação/produção já indicia um modo de pensar palavra- imagem, como um local/espaço de movimento/trânsito, desenvolvido por meio de um campo aberto à interação das mídias, em que confluem o dizível e o visível. Além disso, a artista pode fazer do seu próprio corpo uma plataforma de registro da palavra ou para a palavra.

Podemos dizer que são processos que deslocam as criações em recriações, realizadas, quase sempre, pelo cruzamento das matrizes da linguagem. Ao lermos e interpretarmos sua produção artística pelo viés da criação (metodologia da crítica do processo), tentamos reativar os documentos para seguir a sua memória, isto é, rastrearmos suas pegadas, seus índices, mapeando todos os documentos de processo a que tivemos acesso (de forma direta [em seu ateliê], ou mais indiretamente em publicações impressas e/ou em outras mídias) ao longo da investigação. Desse modo, percebemos que grande parte das transações interlinguagens e intermídias tende ainda à interatividade, o que vai acentuando uma forma de pensar a palavra a partir de seu caráter dialógico. E esse caráter dialógico também faz parte das tendências de seu projeto poético; aliás, como caráter sempre hipotético, o outro está sempre presente no processo de criação de Barros.

Verificando os nós da rede e perseguindo o projeto poético de Lenora de Barros, nosso foco estava voltado, podemos dizer, para um estado de transformação da palavra. Por isso, a palavra em sua produção foi lida, por nós, como um sistema de signo total, pois parece ser ela que aponta para os movimentos temporais que estão nas camadas do seu processo criativo. Nas obras de Barros, parece que a palavra ou a linguagem verbal se desenha, abre-se continuamente e metamorficamente como um vir-a-ser-sempre-um-outro-signo. E, nesse jogo, a artista vai percorrer a palavra com diferentes instalações sonoras e vocais, são poéticas experimentais da voz.

Ao acompanharmos e ativarmos a memória da produção de Barros, a partir dos gestos e dos percursos criativos (via procedimentos), compreendemos melhor os modos pelos quais o texto escrito/a palavra se transforma em vídeo; em fotografia-performances (carregadas de “textos/narrativas”); em vocalizações; em performances sonoras de palavras/poemas/textos

escritos; em instalações verbivocovisuais, em jogos com o design da letra, da palavra, do texto etc.

Depreendemos que, nas redes da criação de Lenora de Barros, a exploração da própria linguagem em suas relações intersemióticas (lembremos que a palavra verbal é um dos nós da sua rede) acontece, muitas vezes, por discursos de analogias (por dissemelhanças ou aproximações) ou, ainda, por uma das suas tendências, que é explorar o nonsensical da linguagem, ou, então, apenas pelo puro prazer de: “querer dizer”. Vimos que todo esse “jogo” intersemiótico e intermídiático, em Barros, se estabelece, em grande parte, por meio de dimensões físicas, psíquicas e sensoriais, tudo isso carregado de inúmeras e diferentes vivências culturais.

Por fim, no que diz respeito à produção de Lenora de Barros, poderíamos apontar que as suas redes de comunicações se constituem pelas experimentações intermídias e intersemióticas, construídas por complexos percursos de sensações em que a palavra pode ser um input ou um dispositivo de ação transformadora. Tudo isso realizado por diferentes modos de ação ou procedimentos, que participam dos três campos de procedimentos, já referidos: Campo 1 – das ações sonoras, vocais e performáticas; Campo 2 – das apropriações e Campo 3 – das visualidades escriturais. Esses três campos podem ser considerados, na produção de Barros, um locus que nos permite ver o conjunto de execução e experimentações das obras. A palavra enquanto objeto de construção materializa desejos, sentimento de vazio ou de esgotamento, pausas, continuidades, rupturas, inacabamentos, (in)certezas, (in)completudes etc. Contudo, não é só a palavra que participa dos diferentes momentos de elaboração de suas obras: dos seus mecanismos de criação acessamos diferentes sistemas semióticos anexados em palavras, imagens e som, o que acaba por potencializar o caráter comunicativo dos seus projetos poéticos.

No documento Processos de criação em debate (páginas 63-71)