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OS DIÁRIOS DE CAMPO: SABER OUVIR, CALAR, OBSERVAR, REGISTRAR, DESCREVER

3 RIZOMA METODOLÓGICO E EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA: VIVER O MÉTODO E PLATÔ AUTOBIOGRÁFICO DA PESQUISADORA

3.3 OS DIÁRIOS DE CAMPO: SABER OUVIR, CALAR, OBSERVAR, REGISTRAR, DESCREVER

Uma das primeiras dificuldades que encontrei ao me deparar com a rotina do campo foi em relação ao diário. Primeiramente, não consegui precisá-lo como um diário de campo específico e exclusivo para os registros relativos aos sujeitos pesquisados, pois, ao reler os registros, a cada dia, encontrava os registros pessoais do processo da minha primeira experiência em pesquisa etnográfica, em meio às observações do cotidiano dos docentes.

Pensei no Diário de itinerância de Barbier (2007, p. 134, itálico do autor) no sentido da singularidade: “O diário de itinerância toma emprestado ao diário íntimo seu caráter relativamente singular e privado [...]”. Contudo, como Barbier (2007, p. 137) o toma também como “[...] um diário de pesquisa na medida em que ele representa bem um instrumento metodológico de investigação e a aplicação de uma

problemática central: a abordagem transversal com seu método de pesquisa-ação existencial”, não o vislumbrei no contexto do cotidiano observado, pois não se trata de uma pesquisa-ação.

A ideia do Jornal de Pesquisa (JP) de Barbosa (2010), também é bastante sedutora, pois:

A prática do JP se insere numa outra perspectiva de entender e de fazer ciência, que se caracteriza por apresentar posições opostas em relação à linguagem matemática e ao isolamento do sujeito. Nessa outra perspectiva, entram em cena a perspectiva qualitativa, a postura hermenêutica e interpretativa e a incorporação da presença do observador com todas suas implicações, apresentando como resultado um conhecimento não objetivo no sentido matemático, mas híbrido, mestiço, resultante da mistura da razão e subjetividade do observador (BARBOSA, 2010, p. 32).

Contudo, a amplitude que o autor dá ao jornal de pesquisa, incluindo a possibilidade de todos os registros pelo pesquisador e de assim “podermos anotar sobre nossa docência, sobre nossa vida pessoal ou, ainda, sobre nossa condição de pais ou de filhos, nossa vida escolar de aluno [...]” (BARBOSA, 2010, p. 37), pareceu-me, no momento, uma proposta que, considerando a minha inexperiência em etnografia, podia por meus registros em uma difusão infindável e incompreensível.

Ao mesmo tempo, ao reler meus diários, identifiquei que tanto a inspiração do diário de itinerância como a inspiração do JP estavam presentes, pois, meus registros permitiram-me

[...] aprender a lidar, a expor, a desdobrar, a jogar com nossas implicações, para que aquilo que produzimos seja uma extensão nossa e vice-versa. Para que tenha sentido. Assim, aprenderíamos a nos ver naquilo que fazemos e poderíamos também exercitar sobre a aprendizagem prazerosa da novidade que é nos vermos no que fazemos, e o que fazemos ser extensão do que somos. [...] a exteriorização de nossa subjetividade através do que produzimos e a subjetivação de nossa exterioridade, daquilo que nos é externo [...]. (BARBOSA, 2010, p. 36-37).

O olhar para as minhas implicações foi reflexo de um olhar crítico sobre a minha postura e exercício de relativização do etnocentrismo, esforço contínuo da proposta de olhar também para mim, e viver o desafio de “[...] olhar para dentro de nós, para nossos medos de dar conta ou não daquilo que nos propomos, olhar

nossas angústias sobre aquilo que não sabemos e nos propomos conhecer, olhar nossas implicações” (BARBOSA, 2010, p. 40).

Assim, os diários continuaram sendo denominados diários de campo, por absoluta falta de coragem de assumir o diário rizoético, como componente dessas itinerâncias que, naquele momento, estavam sob o meu olhar e descrição. Talvez a partilha dos registros, e se todos tivessem exercido a escrita, tivesse me encorajado a também incluir o diário rizoético. Mas, outra ramificação pode utilizá-lo, no futuro.

As minhas notas de campo15 não eram freqüentes, pois como eu tinha condições no ambiente de realizar os registros do diário, eu iniciava com estes. Mas, a inexperiência me impediu de, desde o início, registrar fatos e acontecimentos que não sei precisar se seriam importantes para a pesquisa; porém, ao reler o registro eu acabava por “sentir falta” de algo: fosse a indicação da sala, um horário, quem estava presente, quem chegou depois do horário, a descrição do espaço ou do ambiente em si.

Eu me preocupava muito com os diálogos, com os “discursos”, meu ouvir estava atrapalhando o olhar. Assim, com o passar das semanas e com essa percepção a partir dos olhares para os meus próprios registros – pois eu fazia a digitação do diário manual para o diário digital –, eu acabei por “reviver” o vivido e a memória me auxiliava em algumas situações; e, assim, os registros foram se completando, fui desenvolvendo um olhar mais focado e menos difuso.

Ao final do primeiro semestre letivo, aproximadamente após 5 (cinco) meses em campo, meus registros começaram a apresentar uma escrita mais descritiva do que era observado e vivenciado.

A dobra, a reduplicação, é uma memória. Não uma memória curta, como a dos estratos e dos arquivos, mas uma memória absoluta, a memória do lado de fora, que duplica o presente e que, sobretudo, não distingue do esquecimento. Assim como o lado de dentro é coextensivo ao lado de fora, a memória é também coextensiva ao esquecimento. A memória aqui, esta ‘absoluta memória’, nada mais é do que o tempo como subjetivação, como dobra. O tempo se torna, assim, sujeito (LEVY, 2011, p. 121).

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As notas de campo são anotações rápidas do observado em campo, pequenas frases que nos permitam lembrar os acontecimentos. Os registros nos diários já eram escritas descritivas do que se passava em campo.

Também percebi que os registros eram bastante caóticos, fruto da própria difusão de diálogos, acontecimentos e rotinas paralelas que os professores tinham. Assim, em um mesmo dia eu tinha várias situações com sujeitos diferentes; motivações, interesses e objetivos distintos. Isso dificultou no momento da escrita, pois tive que retornar aos diários várias vezes. Eu tive sempre a in(certeza) de que esses retornos eram necessários. Esse movimento do ir e vir e do por vir me acompanharam. Como afirma Levy (2011, p. 122), “A dobra do fora é, portanto, o tempo como sujeito. Mas o tempo não linear, em seu estado complicado, enrolado”.

O conhecimento que hoje as neurociências nos proporcionam sobre o funcionamento cerebral não autoriza às separações cartesianas – a máquina pensante é una, faz convergir sensações e razão, intelecto e afecto. O diário de terreno é um lugar de cruzamento destas modalidades de apreensão do real. E o dado empírico que ele fixa pela escrita é intenso e pleno, porque extraído directamente à dramática existencial dos indivíduos nos contextos em que vivem. No final, o etnógrafo não estará indiferente no seu modo de olhar – e de se olhar a si, às pessoas com quem convive, à cidade em que habita.

Aquilo que separa o antes e o depois no modo de pensar os objectos que foram alvo da pesquisa etnográfica é concerteza o grau de conhecimento que temos sobre eles. Mas é sobretudo a distância a que passámos a vê- los e o juízo que sobre eles fazemos – falaríamos então do conhecimento enquanto ética [...] (FERNANDES, 2003, p. 40).

Em relação aos diários de campo, é importante afirmar que a presença contínua do outro faz-nos perceber a ligação ética entre pesquisador e sujeito pesquisado, no sentido da realidade que acessamos e onde intencionalmente plantamos nosso olhar bruto sem rupturas definitivas, mas com a possibilidade de entrecruzar saberes outros.

Outro destaque que faço em relação aos diários de campo é que os professores não demonstravam “incômodos” em relação às minhas anotações, nem os que participavam formalmente da pesquisa nem os que informalmente permitiram minha presença nas reuniões e outros momentos em que eles estavam presentes, com exceção da professora X16, que, por uma ocasião, disse: “Não anote nada do que eu disse”. Olhei para ela e lhe disse: “Não se preocupe, não vou anotar” (Diário de Campo nº 1 – Digital, 06/04/2011, p. 52). Depois, quando pude novamente anotar, registrei a minha escolha: “A partir daqui tive dificuldades para fazer os registros, [...] considerei melhor parar um pouco para que todos pudessem falar sem

preocupações, apesar de que nenhum outro professor pediu nada para mim” (Diário de Campo nº 1 – Digital, 06/04/2011, p. 52).

O momento do registro é muito importante, mas há um registro implícito, difícil de ser explicitado, que faz parte do próprio saber do sujeito que é observado e do sujeito que observa, o qual, aos poucos, vai se relacionando e se integrando à cumplicidade cotidiana, de afinidades e empatias.

Esse registro pode ser de resultado muito positivo no decorrer da etnografia e pode também ser um abismo no qual o etnógrafo cai e não consegue retornar, pois se perde no jogo de interesses do sujeito observado e no jogo do poder de quem seduz para não ser seduzido, e, assim, não precisa “sair do seu dentro e ir para o fora” (LEVY, 2011).

O trabalho de construção do diário é solitário – ter acesso ao diário de outros é abrir a possibilidade de diálogo em zonas da pesquisa empírica que se têm comportado, dum modo geral, como as famosas caixas negras dos aviões, que tudo registram mas de que nada se sabe [...] (FERNANDES, 2003, p. 25).

A etnografia consiste em descobrir sozinho aquilo que os de lá (de lá, da unidade de estudo) sabem há muito, dizendo-o depois o texto monográfico dum modo que os de lá nunca diriam. Assim, o investigador ‘descobre’ um contexto há muito descoberto pelos nativos. E estes, se lerem o etnógrafo, descobrem um novo sítio no sítio sobre o qual pensavam saber tudo (FERNANDES, 2003, p. 30).

Nesse sentido, é preciso desenvolver uma postura vivencial no campo, a partir das percepções das rotinas, dos conflitos e dos consensos do grupo, para, com o passar do tempo, ter o olhar mais seletivo, o ouvir mais articulado com o pensar e com o agir. Assim, passei a chegar, a cumprimentá-los e a me integrar no fazer do grupo, como qualquer um deles, sem, contudo, deixar de realizar as minhas escolhas ético-formativas de aprendiz de etnógrafa e pesquisadora.

Há um descentramento da atenção e não uma atenção difusa. Há um foco no viver, pois já não é preciso preocupações em saber estar em campo. Já se está como qualquer outro do grupo. A esta altura, senti-me etnógrafa.

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A professora X concordou em participar da pesquisa informalmente, aceitando a minha presença nas reuniões em que os professores pesquisados também estavam presentes.