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2 RIZOMA E ÉTICA, PLATÔS INICIAIS E CONCEITUAIS

2.1 RIZOMA, METÁFORA PARA PENSAR O CONHECIMENTO

Meu encontro com o texto de Gallo (1995) intitulado Conhecimento, Transversalidade e Currículo apresentou-me, numa convergência com Morin (2010), uma crítica à disciplinarização e à afirmativa de que, na tentativa de superar a fragmentação do conhecimento, as propostas de interdisciplinaridade

[...] têm apresentado limites muito estreitos, pois esbarram em problemas básicos como, por exemplo, a formação estanque dos próprios professores, que precisam vencer barreiras conceituais para compreender a relação de sua própria especialidade com as demais áreas do saber (GALLO, 1995, p. 1).

Esse argumento conduz a questionar a construção do conhecimento pelos professores na EPT, os quais ainda desenvolvem a formação do trabalhador de forma fragmentada, tendo em vista a influência tecnicista em sua concepção.

Assim, tomei por base as considerações de Gallo (1995) sobre a excessiva compartimentalização do saber que deu vida a uma organização curricular pautada em disciplinas apoiadas em realidades estanques, sem interconexão, dificultando a compreensão do conhecimento como um todo integrado.

Isso gerou a construção de uma cosmovisão abrangente, uma percepção totalizante da realidade, para iniciar a minha incursão sobre a formação de professores da EPT; inclusive considerando que os professores participantes da pesquisa desenvolvem uma proposta curricular que procura contemplar a interdisciplinaridade, ao menos na concepção do curso.

Morin (2010), ao apontar os traços negativos do desenvolvimento científico, aborda os inconvenientes do desenvolvimento disciplinar das ciências: o enclausuramento ou fragmentação do saber. O autor afirma que:

As ciências antropossociais adquirem todos os vícios da especialização sem nenhuma de suas vantagens. Os conceitos molares de homem, de indivíduo, de sociedade, que perpassam várias disciplinas, são de fato triturados ou dilacerados entre elas, sem poder ser reconstituídos pelas tentativas interdisciplinares [...] (MORIN, 2010, p. 16).

Nesse sentido, o saber, de tão fragmentado,

[...] tem como consequência a tendência para o anonimato. Parece que nos aproximamos de uma temível revolução na história do saber, em que ele, deixando de ser pensado, meditado, refletido e discutido por seres humanos, integrado na investigação individual de conhecimento e de sabedoria, se destina cada vez mais a ser acumulado em bancos de dados, para ser, depois, computado por instâncias manipuladoras, o Estado em primeiro lugar (MORIN, 2010, p. 16).

Segundo Morin (2010), surge então o especialista ignorante que, como especialista, torna-se ignorante de tudo aquilo a que sua disciplina não diz respeito. E o não especialista? Este “[...] renuncia prematuramente a toda possibilidade de refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse cuidado aos cientistas, que não têm nem tempo, nem meios conceituais para tanto” (MORIN, 2010, p. 17). Para o autor,

Na sociologia, às vezes eliminamos a noção de homem porque não sabemos o que fazer dela. O que se passa é o seguinte: chegamos a uma reclusão disciplinar, hiperdisciplinar, na qual cada um de nós é proprietário de um magro território que compensa a incapacidade de refletir nos territórios dos outros com uma interdição rigorosa, feita ao outro, de penetrar no seu. Vocês sabem que os etólogos reconheceram esse instinto de propriedade territorial nos animais [...].

O que acontece é que a reflexão só pode se fazer na comunicação dos pedaços separados do quebra-cabeça, mas o especialista não pode nem mesmo refletir sobre sua especialidade e, é claro, proíbe aos outros de nela refletirem. Isso faz com que ele condene a si próprio ao obscurantismo e à ignorância do que é feito fora da sua disciplina e condena o outro, o público, o cidadão a viver na ignorância [...] (MORIN, 2010, p. 79).

Compreendendo que o conhecimento não se reduz a informações, sendo necessárias estruturas teóricas para lhe dar sentido, e que o excesso de informação produz uma “nuvem de desconhecimento”, percebe-se que o cidadão recai sobre a

sua pequena possibilidade de reflexão, porque já não tem tempo nem vontade de refletir (MORIN, 2010).

A possibilidade da interdisciplinaridade de diminuir a fragmentação do conhecimento, reduzindo assim as “gavetas”, como argumenta Gallo (1995), surgiu para proporcionar esse trânsito por entre os vários compartimentos do saber contemporâneo, possibilitando um conhecimento mais abrangente porque mais interativo. O próprio autor acrescenta:

Muito já foi pensado e escrito sobre as possibilidades do trabalho interdisciplinar, falando-se inclusive em muitas perspectivas, como multidisciplinaridade, transdisciplinaridade, interdisciplinaridade linear, cruzada, unificadora, estrutural etc. etc. Devemos, entretanto, colocar a seguinte questão: a proposta interdisciplinar dá realmente conta de superar a histórica compartimentalização do saber? (GALLO, 1995, p. 44).

A partir desse questionamento, Gallo (1995) tece um comparativo sobre a árvore do conhecimento e a perspectiva rizomática (DELEUZE; GUATTARI, 2009a), explicitando que a metáfora tradicional da estrutura do conhecimento é a arbórea. Essa perspectiva na presente tese é platô inicial na discussão sobre as interações, saberes e relações que (in)formam os percursos dos professores.

Em outro texto, quando apresenta, interpreta e analisa a obra de Deleuze, Gallo (2003) afirma que o saber baseado na tecnologia da escrita é marcado pelo viés teórico da interpretação da realidade, fundando uma noção de verdade que diz respeito à adequação da ideia à coisa mesma que a interpreta. “A própria noção que temos de conhecimento hoje, e de sua forma de construção, está marcada, assim, pela tecnologia da escrita e pelas consequências daí advindas” (GALLO, 2003, p. 88).

A teorização de Gallo (2003) sobre o conhecimento a partir da metáfora arbórea afirma que o conhecimento é tomado como uma grande árvore, com raízes fincadas em solo firme (as premissas verdadeiras), com um tronco sólido que se ramifica em galhos e mais galhos, que se estendem pelos mais diversos aspectos da realidade.

O paradigma arborescente representa uma concepção mecânica do conhecimento e da realidade, reproduzindo a fragmentação cartesiana do saber, resultado das concepções científicas modernas. Ele exerce influência marcante nas

propostas educacionais. A hierarquização do saber consiste em uma característica que se concretiza no poder que o domínio do conhecimento efetua no momento da elaboração de currículos, planejamento de disciplinas, propostas de projetos de cursos, entre outros (GALLO, 2003).

A Figura 02 procura ilustrar essa perspectiva que domina, ainda hoje, a ciência e a produção do conhecimento, considerando que a “árvore do saber” seria a própria Filosofia, a qual originariamente reunia em seu seio a totalidade do conhecimento, seu crescimento e florescimento. Com a adubação efetuada pela própria sede de saber do ser humano, desenvolve os galhos das mais diversas “especializações” que, embora mantenham suas estreitas ligações com o tronco, nutrem-se de sua seiva e a ele devolvem a energia conseguida pela fotossíntese das folhas em suas extremidades. Em um processo de mútua alimentação/fecundação, apontam para as mais diversas direções, não guardando entre si outras ligações que não sejam o tronco comum, que não seja a ligação histórica de sua genealogia (GALLO, 1995).

Figura 02 – Árvore do conhecimento

Fonte: Gallo (2001, p. 23)

Para Morin (2010) a fragmentação do saber é reflexo do próprio desenvolvimento científico e do distanciamento do sujeito e da ética na construção do conhecimento. Para o autor o desenvolvimento disciplinar das ciências causa o enclausuramento do saber.

para o respeito às diferenças, construindo possíveis trânsitos pela multiplicidade dos saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo policompreensões infinitas”.

Essa perspectiva não indica nenhum modelo ou padrão a seguir, muito pelo contrário, ela possibilita a multiplicidade na produção do conhecimento. Pode-se então pensar a árvore do conhecimento como aquela que se ramifica e, quem sabe, forma novos rizomas, bem como teima em aceitar um único tronco, como exemplifica a Figura 03, a seguir:

Figura 03 – Árvore, com tronco-rizoma múltiplo, próximo à catedral de Lisboa e do Castelo de São Jorge, Lisboa, Portugal

Fonte: Oliveira Santos (2010)

O artigo do professor Daniel Lins, intitulado Mangue’s school ou por uma pedagogia rizomática, também reforça o antagonismo entre os paradigmas arbóreo e rizomático.

Rizoma e não árvore. A árvore define o território, o crescimento vertical e a identidade do ser. O rizoma é horizontalidade que multiplica as relações e os intercâmbios que dele se originam. A vida é assim compreendida, é um contínuo fluxo e refluxo, potência de interação e produção de sentidos (LINS, 2005, p. 1232, itálicos do autor).

Gallo (2001) propõe um mapa rizomático dos saberes. A Figura 04 ilustra a trama e multiplicidades de itinerários e percursos, sem início ou fim identificáveis. Gavetas são pequenas para as linhas de diferentes e múltiplas formas e, assim, o que se vê é a inter-intra-religação constante e contínua das linhas no rizoma.

Figura 04 – Mapa rizomático dos saberes

Fonte: Gallo (2001, p. 23)

A partir dos textos de Gallo (1995, 2001, 2003) e de Lins (2005, 2007) e com o olhar curioso sobre o paradigma rizomático, procurei a construção teórico-conceitual de rizoma de Deleuze e Guattari nas leituras de seus textos traduzidos, dos volumes de Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia (2009a). Livros que despertaram a minha forma de pensar, apresentando-me um caos de sentidos e significações que impulsionaram as minhas inquietações sobre a construção do conhecimento.

A possibilidade de pesquisar através de referências que permitissem sentir e pensar a partir de tensões, convergências, divergências, consensos, discordâncias, que geram rotas de fuga, centrais e periféricas sobre a formação, encorajou-me a conhecer o pensamento de Deleuze e Guattari. E, posteriormente, Spinoza, Maturana e Varela, Morin, Nietzsche, Foucault e outros.

Como afirmam Deleuze e Guattari (2009a, p. 9), “[...] os princípios em filosofia são gritos, em torno dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos”. E assim, iniciei meu percurso para criar/pensar a rizoética, seu canto, seu conceito. É preciso conhecer o rizoma como descrito por Deleuze e Guattari (2009a, p. 15):

O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos [...].

modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas.

Para os teóricos franceses Deleuze e Guattari (2009a), no rizoma não existem pontos ou posições como se encontram numa estrutura, como na árvore, numa unidade. O que existe são linhas que possibilitam multiplicidade ou variedades de medida. Nesse sentido, “[...] A noção de unidade aparece unicamente quando se produz numa multiplicidade uma tomada de poder pelo significante ou um processo correspondente de subjetivação” (DELEUZE; GUATTARI, 2009a, p. 17).

Segundo Machado (2009), o rizoma assinala que não existe dualismo ontológico nem axiológico entre a raiz e o rizoma, considerados como modelos do pensamento, apesar do que ocorre propriamente entre a oposição de um modelo transcendente e um processo imanente, o que consiste na continuação do dualismo.

Enraizando-me no conceito, lembrei-me da minha terra, região “alag(o)ada”, região dos manguezais vermelhos, rhizophora mangle (Figura 05). Vegetação que exprime vida, mesmo na visão caótica de seus ramos, vários, diversos, grandes, pequenos, que mergulham e emergem, que produzem vida, que se interdependem para manutenção do ecossistema, que viabilizam o entrelaçamento do doce e do salgado da água das lagunas.

Figura 05 – Mangue vermelho, Lagoa Mundaú, Marechal Deodoro, AL

Rizomas, raízes. Um rizoma conectando-se ao outro. Nossas experiências são conectadas em rizomas diferentes que se aproximam uns dos outros e se ligam formando raízes implícitas, tácitas, que não vemos, mas vivemos: os percursos da vida, os percursos da profissão, os percursos de formação do conhecimento, do saber, nas errâncias e nas possibilidades de um devir imanente. São, na minha inspiração, rizomas, conforme mostra a Figura 06:

Figura 06 – Raízes do “Minhocão” nos Jardins Palácio de Mateus, Vila Real, Portugal

Fonte: Oliveira Santos (2010)

Para Deleuze e Guattari (2009a, p. 22), uma das características mais importantes do rizoma “[...] talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas; a toca, neste sentido, é um rizoma animal, e comporta às vezes uma nítida distinção entre linha de fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de habitação”.

Assim, o rizoma é uma antigenealogia, regida por seis princípios básicos: princípio de conexão, princípio de heterogeneidade, princípio de multiplicidade, princípio de ruptura a-significante, princípio de cartografia e princípio de decalcomania.

O primeiro indica que qualquer ponto de um rizoma pode ser/estar conectado a qualquer outro. O segundo princípio considera que o rizoma rege-se pela heterogeneidade, dada sua conectividade. Por isso, enquanto na árvore a hierarquia das relações leva a uma homogeneização delas, no rizoma isso não acontece. O terceiro princípio indica que o rizoma não possui uma unidade que sirva de pivô para uma objetivação/subjetivação. Assim, o rizoma não é sujeito nem objeto, mas

No quarto princípio, tem-se que o rizoma não pressupõe qualquer processo de significação, de hierarquização; o rizoma é sempre um rascunho, um “devir”, uma cartografia a ser traçada sempre e novamente, a cada instante. O quinto princípio possibilita entender que o rizoma pode ser mapeado, cartografado; e tal cartografia mostra que ele possui “entradas múltiplas”, isto é, o rizoma pode ser acessado de infinitos pontos, podendo daí remeter a quaisquer outros em seu território.

Por fim, o sexto princípio compreende o fenômeno do inacabado, prevendo que o mapeamento do rizoma pode ser copiado, reproduzido; porém, colocar uma cópia sobre o mapa nem sempre garante uma sobreposição perfeita. O inverso é a novidade: colocar o mapa sobre as cópias, os rizomas sobre as árvores, possibilitando o surgimento de novos territórios, novas multiplicidades.

Se é verdade que o mapa ou o rizoma têm essencialmente entradas múltiplas, consideraremos que se pode entrar nelas pelo caminho dos decalques ou pela via das árvores-raízes, observando as precauções necessárias (renunciando-se também aí a um dualismo maniqueísta). [...] Existem estruturas de árvore ou de raízes nos rizomas, mas, inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz podem recomeçar a brotar em rizoma. A demarcação não depende aqui de análises teóricas que impliquem universais, mas de uma pragmática que compõe as multiplicidades ou conjuntos de intensidades. No coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo rizoma pode se formar. Ou então é um elemento microscópico de árvore raiz, uma radícula, que incita a produção de um rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 2009a, p. 24).

A metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea. Diferente da árvore, o rizoma não se presta nem a uma hierarquização nem a ser tomado como paradigma, pois nunca há “um” rizoma, apenas, mas vários rizomas; na mesma medida em que o paradigma, fechado, paralisa o pensamento; o rizoma, sempre aberto, faz proliferar e ramificar pensamentos (GALLO, 2003).

Os paradigmas arborizados do cérebro dão lugar a figuras rizomáticas, sistemas, acentrados, redes de autômatos finitos, estados caóides. Sem dúvida, este caos está escondido pelo esforço das facilitações geradoras de opinião, sob a ação dos hábitos ou dos modelos de recognição; mas ele se tornará tanto mais sensível, se considerarmos, ao contrário, processos criadores e as bifurcações que implicam [...] (DELEUZE; GUATTARI, 1991, apud GALLO, 2003, p. 91).

Esse referencial teórico fundamentado nos escritos de Deleuze e Guattari (2009a) está na base desta pesquisa, pois a partir da ideia de rizoma, que remete a multiplicidade e transversalidade, proponho imbricar-se outro platô – a ética. Ao

analisar sua implicação no campo educativo, Imbert (2002) afirma que, ao distinguir ética e moral, lei e regra, vislumbra-se uma práxis da autonomia do sujeito que, na perspectiva dessa tese, permite propor uma interpretação da realidade docente, a partir de sujeitos profissionais que formam e (se)formam no/para o trabalho.