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DIDÁTICA GERAL E DIDÁTICA ESPECÍFICA

No direcionamento das reflexões do texto, considera-se importante a qua- lificação do trabalho docente, para que ele seja realizado com autonomia e autoria, incluindo sua responsabilidade com o papel social e institucional que exerce. Essa autonomia e autoria docentes se manifestam, de modo não excludente: 1. na luta por melhores condições de trabalho e maior par- ticipação nas decisões institucionais, inclusive nas orientações curricula- res e reformas no interior da sala de aula; 2. no trabalho com os alunos, por meio dos conteúdos geográficos.

Essas “qualidades” do professor – autonomia e autoria – não são da- dos que se desenvolvem naturalmente no indivíduo. É preciso que elas sejam objeto e objetivo da formação profissional. Nesse sentido, cabe perguntar: como formar professores para enfrentar desafios da realidade profissional? Como muni-los de conhecimentos, convicções e condições cognitivas/operativas para lidar com diferentes escolas e com diferentes realidades? Os caminhos formativos nas últimas décadas têm sido ade- quados? Qual o papel da didática e das didáticas específicas nessa forma- ção? A relação entre essas dimensões da formação tem contribuído para a formação que se deseja? Como formar o professor de Geografia? Como o professor aprende a ensinar do jeito que ele ensina?

Nessa formação, as disciplinas voltadas diretamente à atuação pro- fissional do licenciando – como são as didáticas específicas, as metodolo- gias e os estágios – têm a possibilidade de contribuir para a reflexão sobre a

tarefa docente em Geografia de ajudar a construir no aluno um olhar parti- cular/específico sobre a realidade (a espacial), sobre as diferentes realidades espaciais, sobre a cidade, sobre o campo; um olhar capaz de aceitar e com- preender a diversidade, as mudanças constantes, a complexidade nessa realidade. Essa formação pressupõe alguns elementos. Em primeiro lugar, proporcionar o conhecimento de Geografia. É preciso que o professor tenha domínio pleno desse campo científico, o que não quer dizer assimilar ou memorizar todos os conhecimentos disponíveis na Geografia, mas conhecer as referências básicas dessa ciência para analisar o mundo e seus problemas; o conhecimento da história da produção, dos modos dessa produção e de seus resultados mais relevantes. Além dessa formação em Geografia, que deve ser sólida e consistente, o professor deve ter uma formação pedagógi- ca, com referências sociais, filosóficas, pedagógicas, psicológicas relevantes sobre a atividade a que ele se dedica: o processo educativo, em suas diferen- tes dimensões e manifestações, com a centralidade do processo educativo escolar. E uma terceira dimensão é a construção do conhecimento pedagó- gico do conteúdo, que pode ser uma síntese dessas duas outras dimensões. Minha formulação dessa dimensão está expressa no indicativo de “proble- matização da Geografia escolar” como eixo da formação que permite ao futuro professor a construção de sínteses.

Além dessas dimensões, são importantes também atividades em que os futuros professores possam fazer articulação com outros tipos de conhecimentos (a interdisciplinaridade como princípio), saberes (não so- mente os acadêmicos) e linguagens (música, poesia, pintura, dança e ou- tras, articulando com artefatos tecnológicos disponíveis) e, ainda, possam proporcionar oportunidades de discussão e atuação, no interior e ao longo do processo formativo, com problemas que têm relevância social. Trata-se de favorecer atividades de atuação política, participação e intervenção em eventos e movimentos sociais, realização de atividades de extensão, desen- volvimento de investigação, atividades de campo.

Proponho, portanto, como eixo da formação, a problematização da Geo- grafia escolar. Ao problematizar a disciplina escolar específica, ao longo da formação, o professor tem a possibilidade de ir construindo um amálgama

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de referências disciplinares da formação, condições de trabalho, gestão da escola, formas de inserção das demandas externas, alunos e suas demandas. Nota-se que, na prática, esse amálgama, com autonomia ou não, conscien- temente ou não, é feito pelo professor a partir de suas próprias condições intelectuais, em parte dependente de bons processos de formação. Trata-se, então, de explorar, na formação inicial, aspectos epistemológicos e histórico- -culturais que põem em evidência o significado e a relevância da Geografia enquanto produção cultural e instrumento de compreensão e intervenção no mundo. Esclarecendo sobre a constituição da Geografia escolar, tenho afirmado que ela é a ensinada no dia a dia das aulas:

é a ensinada e a planejada/desejada pelos professores e também aquela que é compreendida/aprendida pelos alunos. Para sua realização, o professor, em seu trabalho cotidiano, dispõe, entre outros elementos:

• da experiência pessoal;

• de suas experiências anteriores com o ensino desse conteúdo; • de livros didáticos e outros materiais;

• de experiências e materiais didáticos produzidos por colegas; • da estrutura de funcionamento e de encaminhamentos de for- mas de trabalho da escola;

• dos conhecimentos científicos. (CAVALCANTI, 2017)

O que pode ser destacado em orientações didáticas gerais que podem contribuir para a formulação de propostas específicas de ensino de Geografia (didática da Geografia)? Algumas orientações mais recentes, na linha da didá- tica crítica, multidimensional (técnica, política e psicológica), apontam para:

1. considerar o aluno como sujeito ativo de sua aprendizagem; 2. considerar o aluno em sua vida cotidiana, com conhecimentos co- tidianos que participam dos processos de sua aprendizagem escolar; 3. encaminhar as atividades de ensino de modo a tornar significativa a experiência escolar dos estudantes;

4. compreender o currículo e os conteúdos escolares como arbitrário cultural, com temas centrais e periféricos;

5. avaliar o conteúdo escolar na sua relação com os objetivos de ensi- no definidos e os métodos para sua viabilização;

6. considerar o professor em seu papel de mediador dos processos cognitivos do aluno;

7. saber distinguir entre conceitos e conteúdos e informações; e 8. encaminhar as atividades de estudo com a meta de formação conceitual.

Para a Geografia, esses encaminhamentos didáticos gerais podem resul- tar em propostas específicas. Pode-se, assim, propor que o trabalho docente com essa disciplina seja o de mediar o desenvolvimento do pensamento geo- gráfico do aluno, por meio dos conteúdos escolares. Portanto, trata-se não de apresentar os conteúdos e explicá-los simplesmente, mas de ajudar os alunos a desenvolverem um olhar geográfico, entendendo que os conceitos geográ- ficos são instrumentos simbólicos fundamentais para esse desenvolvimento. O que significa essa meta de formação de conceitos geográficos para o desen- volvimento dos alunos? Qual a relação entre conteúdos e conceitos geográ- ficos? Com a referência da linha da psicologia histórico-cultural, entende-se que os conceitos ajudam a ver o mundo não somente como um conjunto de coisas, mas ajuda a converter essas coisas em espacialidade, os objetos em objetos espaciais, porque “enxergam” a espacialidade desses objetos, por um processo de generalização, de sistematização de conhecimentos. Por meio de operações mentais – que vão desde a descrição, classificação, comparação, imaginação e a generalização –, a conceituação ajuda o aluno a ver os objetos específicos na sua dinâmica mais geral, mais abrangente e estrutural.

Na Geografia, os conceitos, como base estruturante do ensino da disciplina e do desenvolvimento do pensamento geográfico por parte do aluno, são os fundamentos dos conteúdos ensinados na escola. Essa con- cepção coloca em relevo o ensino de conhecimentos geográficos como conhecimento poderoso. (YOUNG, 2011) Ensinar e aprender Geografia é um ato político e é a atuação política genuína e intrínseca do professor. E como atuar politicamente com a Geografia na escola? Propiciando meios de garantir o desenvolvimento pleno do aluno – o desenvolvimento do

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pensamento geográfico –, com a contribuição dos conhecimentos geográ- ficos sistematizados e validados pelo campo científico e pela sociedade.

O espaço geográfico é o conceito central na Geografia e a maior con- tribuição do seu ensino. Ensinar o conceito de espaço é a perspectiva do ensino nessa proposta. Trata-se de uma dimensão da realidade, a espacia- lidade. E ela está intrinsecamente imbricada com a realidade social; por isso, para compreender a dinâmica da realidade, é importante entender as relações entre espaço, tempo e a sociedade. Edward Soja (2014) menciona o giro espacial para se compreender a dinâmica da realidade, o que implica dar destaque ao espacial como dimensão da vida. Para isso, é importante o conceito de justiça espacial: uma ideia de que a justiça tem consequências espaciais, geográficas, e está ligada à ideia de direito, de justo, de equitativo. Então, há uma real espacialidade na vida de cada indivíduo e na vida social, o que significa uma espacialidade em cada prática social, que é, na verdade, prática socioespacial. É a ideia de que o espaço conta, de que a geografia im- porta e de que é preciso abordar criticamente a sociedade contemporânea em sua espacialidade, tendo como parâmetro a ideia de justiça espacial.

A geografia como sendo um componente integral e formativo da jus- tiça não é uma ideia que se constrói espontânea e facilmente no cotidiano; é necessário construí-la coletivamente, para o que o ensino de Geografia pode contribuir. Há uma relação formativa entre as dimensões social e espacial da vida humana: a espacialidade da (in)justiça afeta a sociedade e a vida social tanto como os processos sociais dão forma à espacialidade ou à geografia específica da (in)justiça. Edward Soja destaca que tudo que é social é simultaneamente espacial e “[...] tudo que é espacial, ao menos no que respeita ao mundo humano, está simultânea e inerentemente sociali- zado”. Em outro trecho: “como seres intrinsecamente espaciais que somos desde o nascimento, estamos comprometidos e obrigados a dar forma a nossos espaços socializados e, ao mesmo tempo, ser formado por eles”.1 (SOJA, 2014, p. 51, tradução nossa) O espaço não é um vazio. Todos os

1 “Como seres intrinsecamente espaciales que somos desde el nacimiento, estamos comprome- tidos y obligados a dar forma a nuestros espacios socializados y, al mismo tempo, ser formados por ellos”.

que estão oprimidos, subjugados ou explorados economicamente estão so- frendo certos efeitos de geografias injustas, e essa luta pela geografia justa pode construir maior unidade e solidariedade entre as pessoas.

Sobre abordagem de conteúdos como esse, a pesquisa na área da di- dática da Geografia no Brasil tem resultado em indicações recorrentes, que já se tornaram desafios da prática. Entre eles, destacam-se: consideração dos conhecimentos geográficos cotidianos dos alunos; análise integrada de as- pectos naturais e sociais da espacialidade; consideração da cartografia como linguagem a ser desenvolvida ao longo da escolaridade; conveniência de se explorar nas aulas linguagens não textuais – música, literatura, arte visual, cinema, redes virtuais –; e a preocupação com a formação de conceitos.

Trabalhar a Geografia com esse enfoque pressupõe que o aluno seja sujeito ativo de sua aprendizagem, que o professor medeie sua relação cognitiva com os conteúdos geográficos, ressignificando a Geografia como possibilidade de entender que pelo estudo da espacialidade pode-se enten- der não só como se geram as injustiças, mas também como as análises espaciais da injustiça permitem avançar na luta pela justiça social, o que está ligado à sua vida cotidiana. E mais, a relação entre os objetivos de en- sino, gerais e específicos, e a referência teórica dos conteúdos geográficos a atribuir significado à vida dos alunos leva a estruturar caminhos para o trabalho efetivo em situações diferentes de sala de aula, que se configuram como metodologias de ensino. Na próxima seção, algumas formas desse encaminhamento serão apresentadas.