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NOVOS TERRITÓRIOS EDUCATIVOS, OUTRAS PEDAGOGIAS POSSÍVEIS

Considero que estamos vivenciando, como comunidade acadêmica de pesquisadores(as) educacionais no Brasil, um momento importante de emergência de lugares teóricos de estudo e produção de conhecimento sobre práticas educativas situadas fora do marco escolar entre categorias do pensamento pedagógico que aportam elementos teórico-metodológicos para identificação e construção desse objeto de conhecimento diante de tradições mais fortes centradas na forma escolar, seus espaços, políticas, currículos, métodos e sujeitos. Classifico, genericamente, esses lugares teó- ricos como “pedagogias do não escolar”, reconhecendo, a princípio, que representam perspectivas estabelecidas conceitualmente a partir de contex- tos nos quais grupos acadêmicos e sociais protagonizam trajetórias de ação social e cultural, de assistência a coletivos em situações de vulnerabilidade, de promoção de práticas de inclusão social e desenvolvimento humano. Trata-se, portanto, de pedagogias enraizadas na experiência colaborativa das pessoas e no diálogo com temas que desafiam a sociedade contemporânea, especialmente derivados do aprofundamento do capitalismo, da globaliza- ção cultural e das novas formas de sociabilidade humana; pedagogias que validam outros saberes e formas de abordagem socioeducativas possíveis, saberes marginalizados pela tendência escolacêntrica tradicional; potentes pedagogias do presente que carregam, em si mesmas, as contradições, am- bivalências e possibilidades do tempo histórico atual.

É importante refletir como essas pedagogias e seus respectivos territórios se encontram presentes nas teorizações e definição dos objetos formativos do curso de Pedagogia, considerando que há uma relação aparente entre essa presença/ausência e como a teoria pedagógica tem estabelecido um âmbito e um objeto gnosiológico. Opero com a assertiva de que essa reflexão demanda a contextualização do atual cenário de profusão dessas perspectivas, cujas denominações se inscrevem em um campo plural de terminologias: pedagogia social, como propõe Úcar (2016); pe-

dagogias culturais, abordada por Camozzato (2012); pedagogias não insti- tucionais, proposta por Carbonell (2016) etc. Trata-se de pedagogias que:

[...] enriquecem seu discurso teórico, sustentado por sólidas prá- ticas educativas, sobre a crescente competição enfrentada pela escola nos lares, nas cidades e na sociedade em rede, com uma crescente e variada oferta de educação não formal e um maior impacto da educação informal, à medida que vai cristalizando um currículo alternativo, muito mais poderoso e atrativo que o do currículo escolar. (CARBONELL, 2016, p. 9)

Naturalmente, a compreensão de “educações” paralelas à escola não é nova no pensamento pedagógico ocidental. A pedagogia social, por exemplo, se formaliza como categoria educacional no final do século XIX, na Alemanha, em um contexto de assistência a menores em situação de abandono ou do que, à época, se classificaria como “inadaptação social”. (PÉREZ SERRANO, 2009) Contudo, essas pedagogias ocuparam, histori- camente, “periferias educativas”, dado o pouco reconhecimento dos obje- tivos de socialização que as perpassavam, o desinteresse das políticas em incorporar as práticas socioeducativas às quais correspondiam e, quanto àquelas que se assentam em uma crítica mais radical à função da escola, a suspeita do projeto anárquico que representavam, como a perspectiva da sociedade desescolarizada. (CARBONELL, 2016) Sob a terminologia de “educação não formal”, cunhada por Coombs (1986), essas pedago- gias parecem encontrar um objeto específico de práticas de socialização e formação humana, assimilando propósitos ignorados pela escola ou mal situados em seus projetos curriculares. Esse léxico foi importante para de- marcar um campo de produção e atuação de outras pedagogias possíveis, mas tampouco se configurou em um âmbito especializado e orgânico de políticas e práticas educativas. Em outras palavras, “face a uma educação formal estruturada e coerente justapunha-se uma educação não-formal algo dispersa por um sem-número de actividades, com objectivos e cliente- las mal definidos, por isso mesmo não subjugada a uma lógica agregadora de um qualquer sistema”. (PALHARES, 2009, p. 58)

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É importante esclarecer o sentido da flexão de número da palavra “pe- dagogia”. Quando me refiro ao campo de conhecimento que circunscreve a educação como objeto gnosiológico específico, mobilizo a palavra “peda- gogia”, dado o seu caráter de âmbito científico e disciplinar com identidade epistemológica estabelecida como ciência pedagógica. As “pedagogias”, por sua vez, consistem em orientações teórico-metodológicas que focalizam di- ferentes propriedades desse objeto complexo e multirreferencial, consubs- tanciando o âmbito científico e disciplinar da pedagogia no singular.

Úcar (2016) argumenta que os novos territórios sociais e culturais constituem cenários de emergência de pedagogias que se encaminham a responder aos desafios intrínsecos aos modos de educar e educar-se sus- tentados por novas sociabilidades contemporâneas. Essas sociabilidades – concebidas como modos pelos quais os sujeitos apreendem-se a par- tir de marcadores identitários coletivos e se dispõem à interação com os outros – se vinculam a experiências socioculturais abertas, dinâmicas e multirreferenciais que escapam aos espaços e tempos formativos tradicio- nais, como a escola e a família. Trata-se de experiências processadas em uma sociedade pedagógica que desperta desejos de ensinar e aprender em meio à criação e ao funcionamento de novas redes de saberes e práticas culturais que expõem os indivíduos a uma permanente dinâmica de acesso a elementos de construção de si como sujeitos de aprendizagens sociais. (BEILLEROT, 1985) Nessas redes, operam-se diferentes lógicas e discursos de subjetivação, abrindo espaço para uma pedagogia intérprete dos mol- des educativos consubstanciados, problematizando que intencionalidades, conteúdos e dispositivos acionam para educar o sujeito social, forjando distintas sociabilidades e status da cultura.

À pedagogia, como campo de saberes e práticas, cabe a decantação das possibilidades educativas decorrentes da interpretação das lógicas e dos dispositivos culturais em diferentes contextos de socialização. Nesse processo, as pedagogias forjadas nos territórios socioculturais se exprimem como um puzzle, incorporando saberes e linguagens múltiplas que se ar- ticulam em torno das ferramentas necessárias para a leitura e a proposi- ção de estratégias educativas nesses territórios, circunstância que impacta

diretamente um trabalho investigativo-operativo inventivo e que, por isso mesmo, se revela de modo complexo, fluido e transdisciplinar.

Uma dimensão fundante da decantação pedagógica do social é o de- senvolvimento de currículos culturais distribuídos em espaços-tempos ins- titucionais e não institucionais distintos da escola, valorizando saberes e experiências que se inscrevem na trajetória de comunidades cuja condição cultural muitas vezes foi negada pelas instituições escolares. Nesse sentido, essas pedagogias interpretam, traduzem e ensinam repertórios de textos cul- turais “[...] associados a coletivos em busca de significar suas experiências e instaurar processos socializadores”. (GIROUX; MCLAREN, 1995, p. 75)

A potência da pedagogia na construção de possibilidades de formação humana orientadas ao desenvolvimento cultural e social das comunidades, se inclinando, como o saber-instrumento sensível às suas histórias, proje- tos e linguagens, é compreendida no contexto da promoção de experiências que ampliem a consciência dos sujeitos sobre si mesmos, dos contextos em que estão inseridos nas suas múltiplas determinações e interações constitutivas, fomentando ações transformadoras nos níveis individual e coletivo. Úcar (2016) aponta que as pedagogias do social devem ser peda- gogias da escolha, explicando que:

A pedagogia da eleição é uma pedagogia que aparece nas socie- dades complexas. Quanto mais limitado é o espectro de pos- sibilidades de ação para um sujeito, mais necessárias são as pedagogias da opressão, da autonomia, da subserviência ou da esperança. Quanto mais amplas são as opções disponíveis, mais necessário resulta aprender a escolher, a optar por aquilo que melhora, engrandece e empodera os sujeitos individuais e coletivos.2 (ÚCAR, 2016, p. 90)

Na análise do autor, as pedagogias do social figuram em práticas orientadas por uma diversidade de finalidades e estruturas axiológicas,

2 “La pedagogía e la elección es una pedagogía que aparece en las sociedades complejas. Cuanto más limitado es el espectro de posibilidades de acción para un sujeto, más necesarias son las pedagogías de la opresión, de la autonomía, de la supervivencia o de la esperanza. Cuanto más amplias son las opciones disponibles, más necesario resulta aprender a elegir; a optar por aquello que mejora, engrandece y empodera a los sujetos individuales y colectivos”.

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desde aquelas que se prestam à regulação cultural àquelas que apontam caminhos para a promoção das diversidades, de sociabilidades não opres- soras e da justiça social. Assim, é preciso indagar as pedagogias e suas práticas acerca de que tipo de sujeito buscam construir, de que interesses sociopolíticos orbitam em torno de suas finalidades e modos de ação, bem como sobre o devir social que intencionam concretizar.

Do ponto de vista curricular, os dados construídos na esteira das pes- quisas que desenvolvi apontam para uma maior presença de três princi- pais orientações dessas pedagogias nas propostas de formação inicial de pedagogos(as), sendo possível visualizá-las em contornos mais específicos entre elementos que se enredam em uma trama dos conteúdos formativos que privilegiam, explicitamente, as pedagogias da forma escolar. São as vertentes da pedagogia laboral ou organizacional, da pedagogia social e da pedagogia em saúde. Não há fronteiras fixas entre essas pedagogias, de modo que o escopo ao qual se referem são amplamente fluidos e per- meáveis. Nesse sentido, saliento que essas são três grandes vertentes que reúnem um amplo espectro de práticas que correspondem a uma também ampla variedade de cenários. Igualmente, informo que as pedagogias não resumem a totalidade das áreas e práticas do que convencionalmente foi se delineando como educação não escolar. Entretanto, figuram como no- ções guarda-chuva que têm direcionado o olhar de professores(as) forma- dores(as) e estudantes para outros territórios do agir pedagógico e suas contradições, ambivalências e potencialidades.

O encontro das pedagogias que ocupam a periferia do establishment curricular com um projeto plural de formação de pedagogos(as) poderá im- primir um novo sentido de profissionalidade ao(à) egresso(a) do curso de Pedagogia que, mesmo tendo se engajado mais expressivamente em prá- ticas educativas não escolares nos últimos anos e conquistado uma visibi- lidade profissional maior, não possui um estatuto profissional autorizado por saberes e habilidades legítimas construídas em torno de um objeto formativo que se expande para além da escola.