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TRANSGRESSÕES CURRICULARES

A presença pedagógica nos diferentes territórios sociais é uma chave impor- tante na construção das alternativas de educação para o desenvolvimento humano na medida em que se identifica com práticas orientadas por um princípio ético-político de promoção de direitos, valorização da diversidade, inclusão social, formação de consciências críticas, comprometimento eman- cipatório e engajamento comunitário. Assim mesmo, quando se dinamiza por metodologias construcionistas, problematizadoras e dialógicas que pro- porcionem aprendizagens como vetores para transformações individuais e coletivas. Agindo através de e para processos de interação e aprendizagem, os motes de ação da presença pedagógica em espaços de educação não es- colar revelam traços autênticos de concepção de identidade profissional que Formosinho (2010) designa de profissional do desenvolvimento humano. Segundo o autor, essa concepção:

[...] abrange as profissões que trabalham com pessoas em contacto interpessoal directo, sendo essa interacção o próprio processo e parte significativa do conteúdo da intervenção pro- fissional. Os efeitos desses processos de desenvolvimento hu- mano assumem a forma de aprendizagem e desenvolvimento, modificação de comportamento, atitudes ou hábitos, adesão a normas ou modos de vida, conforme as áreas de intervenção. (FORMOSINHO, 2010, p. 7)

Considero importante situar essa concepção como elemento estru- turante da compreensão da identidade profissional do(a) pedagogo(a) em espaços não escolares a fim de exprimir um sentido mais amplo à ideia de profissional da educação, já que, historicamente e, em especial, no caso brasileiro, tal referência se vincula diretamente às instituições escolares. Com efeito, na análise do autor, os(as) professores(as) também são reco- nhecidos(as) no marco das profissões de desenvolvimento humano, o que é uma obviedade, dado o caráter impresso pela função social da escola a essa profissão. Não se trata, portanto, de criar antagonismos entre pedago- gos(as) escolares e pedagogos(as) não escolares, mas de visualizar células

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comuns que constituem uma matriz de identidade profissional cujos cur- rículos formativos podem perseguir através de princípios e estratégias de transversalidade. Tanto a escola quanto os espaços educativos não escola- res demandam pedagogias que são (re)construídas pela práxis de pedago- gos(as) inseridas em movimentos de diálogo entre saberes multirreferen- ciais, experiências e utopias sociais.

Partindo do pressuposto de que, como profissional de desenvolvi- mento humano, o(a) pedagogo(a) cria um espaço de trabalho cuja existên- cia, identidade e resultado dependem das relações com os(as) outros(as) sujeitos(as) com quem produzem as situações de formação humana, um currículo de formação inicial em Pedagogia não pode prescindir de viabili- zar elementos acerca dos cenários, sujeitos, saberes e estratégias que cons- tituem essas outras relações educativas além da escola. Ou seja, o currículo precisa contemplar trajetórias formativas que mobilizem os(as) estudantes para a apreensão/construção das ferramentas conceituais e metodológicas que concretizem as relações educativas em contextos sociais distintos da escola, mas a ela articulados, operando em redes colaborativas de esforços pedagógicos para a educação integral e permanente.

Essa perspectiva de currículo transgride a identidade centrada no magistério como forma típica ou mais importante de trabalho educativo, uma vez que tal matriz identitária mostra-se limitada como elemento de organização e desenvolvimento de saberes e experiências que comecem a desenvolver, no(a) estudante, modos plurais de ser e estar na profissão pe- dagógica resultantes de um movimento autoformativo contínuo de consti- tuição da sua profissionalidade. O construto profissionalidade indica que, no transcurso dos espaços e tempos de vivência e socialização profissional, o(a) pedagogo(a) será capaz de aprender com sua prática as qualificações exigidas para o alcance de objetivos de trabalho em contextos de transfor- mação e dinamicidade, como é o da educação não escolar, na medida em que essa prática é atravessada por situações de reflexão pessoal e coletiva respaldadas científica, ética e politicamente. (CONTRERAS, 2002) Para tanto, a formação inicial deverá contribuir com o desenvolvimento das competências que estruturem as indagações e as respostas dos(as) profis-

sionais diante dos desafios e das necessidades emergentes em seus con- textos de trabalho. Sem incorporar as pedagogias do não escolar em seus currículos, o curso de Pedagogia parece desautorizar a atuação do(a) pe- dagogo(a) fora da escola e não se apropriar da responsabilidade com o de- senvolvimento dessas competências que qualificam práticas profissionais fundamentais para a democratização do conhecimento e a inclusão social. Considero que a incorporação de novos conteúdos e experiências no currículo do curso de Pedagogia é um desafio cada vez maior quando se observam as demandas formativas que se impõem à formação de professo- res(as) para a educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, de- mandas que efetivamente merecem ocupar as tramas curriculares, tendo em vista as urgências de qualificação da prática docente junto às crianças, jovens e adultos desses níveis de ensino. É comum que nos deparemos com questionamentos sobre se um único curso de Pedagogia atenderia a tão variadas demandas, já que tampouco a prática pedagógica não escolar pode ser essencializada em uma perspectiva única de atuação. Diante disso, cabe questionar: o que é possível singularizar para aglutinar e o que é necessá- rio dispersar para pluralizar? De certo, não é neste texto que tais questões serão respondidas; afinal, se trata de questionamentos que demandam rupturas e renovações de paradigmas curriculares, processo que decorre de movimentações de forças e sensibilidades coletivas. Quero apontar al- gumas contribuições ao debate criado a partir dessas questões, registrando evidências baseadas nas pesquisas que tenho desenvolvido.

O conhecimento pedagógico se move em uma diversidade de espa- ços, conceitos e práticas. A diversidade é um traço natural do saber peda- gógico, o que desconstrói a possibilidade de vincular esse saber a um tipo específico de prática ou a um tema em particular, como erroneamente se faz ao associar pedagogia à instrução ou a processos sala de aula. O saber pedagógico se opera onde as práticas pedagógicas se efetivam, como meio e como resultado das mesmas, como produto da práxis elaborada pelos sujei- tos (PIMENTA, 2010) e fundamento que subsidia o aperfeiçoamento per- manente da práxis na compreensão/proposição dos processos educativos diante da complexidade que os encerra. (SEVERO, 2015b) A perspectiva de

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prática pedagógica informada pela concepção de conhecimento pedagógi- co como saber da instrução:

[...] tem marcado um caminho de impossibilidades à prática pe- dagógica. Como teoria da instrução, a Pedagogia contenta-se com a organização da transmissão de informações, e, dessa forma, a prática pedagógica – pressuposta a essa perspectiva teórica – será voltada à transmissão de conteúdos instrucionais. (FRANCO, 2016, p. 537)

Assim, o conhecimento e a prática em Pedagogia devem ser assumi- dos em seu sentido amplo e complexo no currículo de formação inicial de pedagogos(as), derivando competências transversais e específicas relativas aos campos de exercício da profissão pedagógica. As competências transver- sais baseiam-se no reconhecimento de saberes e habilidades híbridos que orbitam qualificações exigidas tanto para as práticas pedagógicas escolares quanto para as não escolares, em virtude das matrizes éticas, epistemoló- gicas e metodológicas que identificam uma prática pedagógica, tais como: bases conceituais de educação e aprendizagem, princípios filosóficos, socio- lógicos e psicológicos de processos educativos, organização do trabalho pe- dagógico através de estratégias de planejamento e avaliação educativas etc. A transversalidade permite a compreensão dos elementos básicos estrutu- rantes da prática pedagógica como processo social, de aprendizagem e de sistematização metodológica. Por outro lado, as competências específicas enfocam as qualificações exigidas para a prática pedagógica com sujeitos, cenários e saberes diferenciados de acordo com cada contexto de trabalho.

Nesse sentido, parece ser viável a organização de propostas curricu- lares centradas nas práticas pedagógicas, e não em uma delas em particu- lar. (LIBÂNEO, 2006b) Uma proposta curricular que opera com uma base restritiva à concepção plural de prática pedagógica tende a interditar a emer- gência e consolidação de possibilidades de engajamento de pedagogos(as) que respondem aos desafios socioeducacionais em um tempo histórico mar- cado por retrocessos de direitos e aprofundamento da desigualdade social.

A pluralidade da pedagogia demanda formatos curriculares menos herméticos e mais fluidos que possibilitem, aos(às) estudantes, o percurso

por uma base instituída por saberes e habilidades que configuram a dimen- são transversal das práticas pedagógicas e percursos que contemplem as di- mensões específicas, de acordo com inclinações e expectativas de atuação profissional. É importante que esses percursos formativos assegurem uma sólida formação básica, inclusive para que os(as) estudantes possam funda- mentar suas escolhas no que tange aos percursos específicos que o currículo poderá articular, e que ajudem o(a) futuro(a) pedagogo(a), como professor(a) ou não, no desenvolvimento de suas práticas profissionais. Se a docência, compreendida objetivamente como magistério escolar, é um tipo de prática pedagógica, o “ser professor(a)” não constitui uma imagem identitária fixa para o(a) pedagogo(a), sendo uma das suas múltiplas facetas.

Diferenciando o trabalho escolar do trabalho pedagógico – não numa perspectiva de dicomotizá-los como polos excludentes entre si, mas na ten- tativa de explicitar que possuem naturezas distintas, ainda que articuladas e, até certo ponto, permeáveis – é que se pode compreender a pluralidade como princípio de desenvolvimento curricular no curso de Pedagogia.

O sentido plural do pedagógico determina a abrangência da profissão de pedagogo(a). Quando um currículo privilegia um determinado nicho de trabalho, reduz-se um campo a uma prática profissional, além de restrin- gir as lógicas de atuação profissional, uma vez que se transpõe uma lógica que define o funcionamento de uma prática específica a outros processos pedagógicos que se diferenciam dela, como se fossem regidos por uma mesma ordem. Assim, torna-se possível e legítimo falar que a profissão pe- dagógica inclui a docência como atividade, mas que não se define a partir dela, ou, em outras palavras, compreender a “[...] pedagogia como elemen- to de identidade à prática docente e não a prática docente como elemento identificador da identidade da pedagogia”. (FRANCO, 2008, p. 114)

Em síntese, as considerações feitas neste texto se encaminham para o entendimento do(a) pedagogo(a) como um(a) profissional que, sob o uso dos recursos teóricos, metodológicos e técnicos da pedagogia, exerce, de maneira distinta e legítima, ações de concepção, pesquisa, planejamento, execução e avaliação de processos educativos escolares e não escolares, se inserindo na realidade histórica que dinamiza a educação como prática

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social atravessada por demandas formativas contextuais e se constituindo como agente crítico(a) e consciente de sua condição profissional imple- mentada como práxis transformadora no contexto da sociedade contem- porânea. A profissão se realiza formalmente em práticas escolares e não escolares institucionalizadas, operando a transição de processos educati- vos para processos pedagógicos gestados no âmbito da racionalidade da pedagogia, em diálogo com a multiplicidade de saberes e práticas científi- cas e culturais para potencializar a formação humana. (FRANCO, 2008)

As características que formam o perfil profissional do(a) pedagogo(a) aliam, portanto, as dimensões teóricas e práticas da pedagogia como ciên- cia e como modo de intervir na realidade educativa, plasmando conheci- mentos e técnicas de ação que lhe permitam fazer uma leitura crítica dos contextos em que se insere e reconhecer e aplicar princípios para operar o seu trabalho com qualidade, sem desvincular seus instrumentos de inter- venção profissional das finalidades sociopolíticas que permeiam a sociedade e se traduzem em projetos educativos.

Tendo como eixo de estruturação do modo de se engajar profissio- nalmente nos diversos espaços educativos a articulação entre pesquisa e trabalho pedagógico, concebe-se que “o pedagogo é aquele que procura conjugar a teoria e a prática a partir da sua própria ação. É nessa produção específica de relação teoria-prática em educação que se origina, se cria, se inventa e se renova a pedagogia”. (HOUSSAYE, 2006, p. 10)

Assim, os saberes da profissão pedagógica traduzem a concepção plural de que a pedagogia permite uma inserção qualificada do(a) pedago- go(a) em diferentes territórios educativos. A afirmação de saberes plurais baseados nesse marco, por sua vez, gera a demanda de delimitação mais precisa dos espaços ocupacionais que representam as novas possibilidades de engajamento profissional do pedagogo em educação não escolar, ainda que ela seja, atualmente, um conceito genérico cuja categorização, como alternativa para precisá-lo, ainda é uma tarefa a ser feita, de acordo com as instituições, cenários e tipos de práticas exercidas (SEVERO, 2015a), de modo que se tenha mais clareza do que incluir nos percursos formativos

específicos nos currículos orientados para outros campos de atuação para além da escola.