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1 DO DIREITO À MORADIA

1.9 DIFERENÇA ENTRE DIREITO À MORADIA E DIREITO DE

O direito à moradia é direito fundamental autônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios. No que tange ao conteúdo, o direito à moradia não se confude com o direito de

42 Atualmente, o referido preceito constitucional tem o seguinte teor, in verbis: “Art. 6º São direitos sociais a

educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância a assistência aos desamparados na forma desta onstitui ão”.

propriedade. Deveras, ainda que a propriedade possa servir também de moradia ao detentor do domínio do imóvel residencial, por previsão constitucional expressa, no caso do usucapião especial constitucional, a moradia acaba assumindo a condição de pressuposto para fim de aquisição do domínio e elemento indicativo da aplicação da função social da propriedade.

Embora o direito à moradia e o direito de propriedade, eventualmente, possam coexistirem em relação ao mesmo objeto, o que ocorre quando o proprietário é também o morador do imóvel residencial, o direito à moradia não se limita ao direito de propriedade sobre imóvel residencial, embora seja evidente que a obtenção da propriedade do citado imóvel constitua a condição mais apropriada, para fim de concretização do direito à moradia, que ainda pode ser viabilizado mediante a locação de imóvel residencial, o que também exige uma legislação protetiva do locatário, aspecto que foi ressaltado por Ingo Wolfgang Sarlet, no excerto que transcrito:

Assim, por exemplo, registra-se (inclusive no âmbito do direito internacional) a necessidade de uma legislação versando sobre o regime das locações residenciais que, sem desguarnecer os direitos do proprietário, impeça, de outra parte, abusos praticados em relação ao locatário, especialmente em situação de necessidade e manifesta hipossuficiência, seja pela previsão da impossibilidade de uma retomada imotivada, seja pelo controle dos preços dos alugueres e de seus reajustes, ou mesmo pela imposição de prazos razoáveis para a desocupação, dentre outros aspectos que poderiam ser mencionados e sem que se vá aqui adentrar o mérito da correção das opções legislativas atualmente vigentes entre nós nesta seara44.

Dessa forma, tomando-se como referencial o critério da fundamentalidade substancial e a vinculação com o direito a uma existência digna, em havendo colisão entre o direito de propriedade e o direito à moradia, mediante adequado sopesamento, este assumirá posição preferencial em relação ao direito de propriedade, haja vista que o direito de propriedade é um direito fundamental condicionado pelo princípio da função social, inscrito no art. 5º, XXIII, da CF/1988. E em cotejo com o direito à moradia, existem preceitos constitucionais que, de modo expresso, manifesta a primazia do direito à moradia em relação ao direito de propriedade, a exemplo do art. 183 da CF/1988, que assegura o domínio àquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural (usucapião urbano).

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No mesmo sentido, dispõe o art. 191 da CF/1988, que adquirirá a propriedade aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia (usucapião rural).

No plano infraconstitucional, em consonância com o disposto no art. 183 da CF/1988, nos termos dos arts. 9º e 10 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), adquirirá o domínio aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. E são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente as áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural (usucapião especial de imóvel urbano).

Com base nos referidos preceitos normativos, fica evidenciado que o exercício do direito de propriedade é condicionado pela função social da propriedade. Ademais, no que concerne às referidas modalidades de usucapião, verifica-se que o direito à moradia consiste no fundamento de ordem material apto à concretização do direito de propriedade. Nesses casos, a função social da moradia constitui o instrumento indutor do direito de propriedade e, por força dessa circunstância, o direito à moradia se sobrepõe ao direito de propriedade, sendo aquele determinante e este determinado. Nessa linha, leciona Ingo Wolfgang Sarlet, que:

No caso brasileiro, a facilitação da aquisição da propriedade pelo usucapião, especialmente a partir da Constituição de 1988, mediante a prova da posse exercida de forma mansa e pacífica, por um período de cinco anos, desde que demonstrada a utilização (dentre outros requisitos) do imóvel para moradia própria e da família, revela – como já lembrado alhures – que a moradia atua como fundamento da aquisição da propriedade em face de outros particulares (no caso, aquele em nome de quem está registrado o imóvel), revelando que, de certo modo, poder-se-á até mesmo (e nos parece razoável este ponto de vista) sustentar uma eficácia nas relações entre particulares da dimensão prestacional do direito à moradia45.

Portanto, além da proteção da função social da propriedade, ao condicionar que o possuidor não tenha outro imóvel urbano ou rural para a sua moradia, os referidos

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dispositivos constitucionais buscam, por meio do instituto da usucapião, proteger e facilitar a concretização do direito à moradia para as classes menos favorecidas economicamente. Também no âmbito do Estatuto da Cidade existem outras formas de proteção do direito à moradia, pois o objetivo deste direito, segundo Sérgio Iglésias Nunes de ouza “não foi garantir a propriedade, mas encontrar, por intermédio de um instituto jurídico (a usucapião), modos de prote ão e facilita ão do direito à moradia ”46

Enfim, o direito à moradia digna e adequada é uma conquista da modernidade, que caracteriza o Estado de Bem-Estar Social. Na CF/1988, este direito integra o catálogo dos direitos sociais fundamentais (Título II), cujo fundamento principal encontra-se alicerçado no princípio da dignidade da pessoa humana, que assegura indistintamente a todos às condições materiais mínimas para uma existência digna.