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Diferenças entre os assentos portugueses e as súmulas vinculantes

5.2 Os assentos do direito português e as súmulas vinculantes

5.2.3 Diferenças entre os assentos portugueses e as súmulas vinculantes

Muito embora a finalidade e a estrutura normativa dos institutos sejam bem semelhantes, os elementos que compõem seus pressupostos de criação e aplicação, assim como seu regime jurídico, demonstram que eles não devem ser equiparados totalmente.

Com efeito, o primeiro aspecto que cabe diferenciar nos institutos diz respeito aos requisitos de criação de cada um. Consoante visto, os assentos são criados a partir de uma única decisão do Superior Tribunal de Justiça. Em outras palavras, desde que verificado o conflito de jurisprudência, um único acórdão desse Tribunal que puser fim ao conflito servirá de base para a construção do assento que, por sua vez, deverá ser seguido por todos. As súmulas vinculantes, por outro lado, requerem reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal em um mesmo sentido. Logo, é impossível, no direito brasileiro, criar súmulas vinculantes, validamente, a partir de uma decisão apenas do Supremo Tribunal Federal.

Ora, esse dado revela que as súmulas vinculantes são precedidas de um entendimento firme e consolidado por parte do Supremo Tribunal Federal, que o aplicou reiteradas vezes a casos com questões jurídicas idênticas. Isso aumenta a credibilidade da jurisprudência sumulada do Supremo Tribunal Federal, pois se sabe que nela está refletida o posicionamento consistente de, no mínimo, oito dos seus onzes membros, e que foi aplicado a diversas situações pretéritas. Como o assento português somente exige uma única decisão para ser elaborado, é possível não se depositar tanta confiança no entendimento ali estabelecido, pois ele não resulta de uma aplicação reiterada e constante a casos idênticos. Sob tal aspecto, o entendimento firmado no assento, em comparação com o estabelecido na súmula, pode ser encarado como frágil e incerto.

Somado a essa diferença, aponte-se para a circunstância de que os assentos não podem ser revistos pelo próprio tribunal que os criou. Isso significa que uma eventual alteração do assento só se faz mediante atuação do Poder Legislativo, que deve elaborar uma lei suplantando a doutrina fixada no assento. Sob essas circunstâncias, na observação de Jorge Miranda, lavrar um assento seria para o Supremo Tribunal de Justiça tecer uma malha de onde não poderá mais tarde sair.238

A impossibilidade de reversão do assento pelo próprio Tribunal, aliada ao fato de que uma única decisão seria suficiente para a sua criação, apontam para o inconveniente que tal instituto representava no interior do ordenamento jurídico. De fato, paralelamente à fixidez do sistema normativo provocada pela imutabilidade judicial dos assentos, encontra- se a circunstância de que essa “doutrina” fora construída a partir de um único caso concreto, não contando, dessa forma, com mecanismos que permitissem um posterior debate sobre o acerto da decisão.

Salta aos olhos que, também nesse aspecto, os assentos não podem ser assemelhados às súmulas vinculantes. Realmente, não só as súmulas podem ser revistas pelo próprio Supremo Tribunal Federal, como, ainda, vários são os entes legitimados a provocá-lo para rever seu posicionamento, “abrindo”, com isso, a sociedade dos intérpretes da Constituição. Por isso, as súmulas não podem ser vistas como instrumentos de engessamento ou de asfixia do direito. Enquanto o regime aplicável às súmulas vinculantes

assegura a permeabilidade da autoridade do Supremo Tribunal Federal, no caso dos assentos, essa autoridade só é quebrada pelo próprio Poder Legislativo.

Por isso, entende-se que as próprias regras procedimentais aplicáveis aos assentos já se mostram suficientes para arranhar sua própria legitimidade, obnubilando seu escopo principal de promover a segurança jurídica.

No entanto, cumpre ressaltar um outro ponto. As súmulas vinculantes, cujo conteúdo deve ser necessariamente matéria constitucional, são criadas pelo Supremo Tribunal Federal atuando como corte constitucional, a quem compete naturalmente defender a Constituição brasileira. Os assentos, ao revés, são elaborados pelo Supremo Tribunal de Justiça, e não pelo Tribunal Constitucional português, esse sim defensor da Constituição lusitana. Portanto, distinguem-se as súmulas dos assentos também pela função desempenhada pelos seus respectivos órgãos criadores.

O interesse nesse detalhe está em que as decisões do Tribunal Constitucional português que declaram a inconstitucionalidade e a ilegalidade das normas são dotadas de “força obrigatória geral”, seja no controle concentrado, seja no controle difuso-concreto, nesse caso quando ele já tiver se pronunciado três vezes sobre questão idêntica239. Como se sabe, no Brasil, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade se revestem do efeito vinculante e, no caso das súmulas, à semelhança do “processo de generalização”240 no ordenamento português, existe um trânsito do modelo difuso-concreto para o concentrado-abstrato. É certo, contudo, que nem todas as decisões do Tribunal Constitucional português possuem “força obrigatória geral”. Porém, como já observado, dada a importância que os tribunais constitucionais assumiram nos Estados Constitucionais contemporâneos, suas decisões se afiguram como modelos de conduta a serem seguidos pelas demais instâncias, ainda que, formalmente, em certas situações, não possuam obrigatoriedade.

239 Artigo 281º, ns. 1 e 3 da Constituição portuguesa.

240 “Permite-se o trânsito do controle difuso para o controle concentrado quando o Tribunal Constitucional

tiver julgado e considerado inconstitucional ou ilegal uma norma em três casos concretos. Neste caso, ele poderá fixar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade dessa norma (cfr. art. 281º/2). Existe aqui um fenômeno de generalização e o processo a isso destinado designa-se vulgarmente

processo de generalização. Os efeitos jurídicos não se limitam aos casos concretos já julgados, antes se generaliza o juízo de inconstitucionalidade.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional e

Pelo exposto, acredita-se que uma eventual comparação entre as súmulas vinculantes e os assentos portugueses não pode olvidar esses fatores que tanto os separam. Por isso, traços relevantes dos assentos que tanto provocam a indignação de autores lusitanos, como Castanheira Neves, não estão presentes nas súmulas vinculantes brasileiras. Além disso, as súmulas vinculantes, como se viu, enquadram-se no âmbito da jurisdição constitucional brasileira, estabelecendo uma ponte entre o modelo difuso- concreto e o concentrado-abstrato, razão pela qual estão em sintonia com a função que o Supremo Tribunal Federal desempenha como intérprete último do texto constitucional. Assim, ela estabelece uma estreita conexão entre esses modelos, pois parte do efetivo exercício da jurisdição difuso-concreta pelos diversos juízos e tribunais para, em razão de divergência surgida no bojo de tal exercício, aproximar-se do modelo concentrado- abstrato, na medida que a jurisprudência constitucional firmada pelo Supremo Tribunal Federal, e sintetizada na súmula, torna-se obrigatória para todos, eliminando a controvérsia e assegurando aos jurisdicionados o direito à igual aplicação do direito.