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Súmula vinculante: da norma ao texto

Ataque semelhante às súmulas vinculantes, destacando sua natureza legislativa, parte, mais uma vez, da distinção entre texto de norma e norma jurídica, esta enquanto resultado interpretativo daquela. Supõe-se que a produção de textos ou de enunciados cabe ao Poder Legislativo, que oferece o material a servir de base para a interpretação levada a cabo pelos juízes. Esses, ao interpretar os textos, criam as normas jurídicas. No entanto, quando as decisões judiciais (interpretações) convertem-se em textos com força vinculante, ter-se-ia produção legislativa. Essa crítica é sustentada por Lenio Streck204, que se apóia no seguinte raciocínio de Eros Grau:

Note-se bem que essas “decisões” do Supremo Tribunal Federal são resultado de sua produção normativa, atividade que envolve

interpretação/aplicação e, pois, é desempenhada não apenas a partir dos elementos que se depreendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser).

Essas decisões são normas. Mas essas normas são transformadas em textos no momento em que assumem eficácia contra todos e efeito

vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios.

(...)

Em outros termos: a atribuição de eficácia contra todos e efeitos vinculantes às decisões de que se trata importa em atribuir-se ao Supremo Tribunal Federal função legislativa.205

Consoante já afirmado, o reconhecimento da produção normativa do Supremo Tribunal Federal como decorrência da interpretação jurídica não pode conduzir à identificação dessa atividade com o exercício de função legislativa. O fato de a súmula vinculante, fruto de atividade interpretativa, tomar corpo através de um enunciado lingüístico não transforma a jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal em atividade legiferante. É fato que toda decisão judicial deve se expressar em linguagem escrita, logo, em textos, e a súmula vinculante não foge à regra206. O mesmo se dá nas decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado, ou seja, na ação direta de inconstitucionalidade, na ação declaratória de constitucionalidade e na argüição de descumprimento de preceito fundamental, todas elas dotadas de efeito vinculante. Também não se deve supor que, pelo fato de as súmulas vinculantes se

205 GRAU, Eros Roberto. Sobre a chamada produção legislativa e sobre a produção normativa do direito

oficial: o chamado ‘efeito vinculante. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, Malheiros, n. 16, p. 37, 1996 – destaques no original). É importante observar que o autor não está se referindo, ao menos não diretamente, às súmulas vinculantes, nem a toda espécie de vinculação das decisões do Supremo Tribunal Federal, pois adverte que suas observações não se aplicam totalmente ao efeito vinculante das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade. Ele tem em mira a Proposta de Emenda à Constituição n. 54, de 1995, que permite ao Supremo Tribunal Federal atribuir efeito vinculante às suas decisões definitivas de mérito mediante anuência de dois terços de seus membros. Daí a afirmar: “Insisto, portanto, em que as conclusões que passo a enunciar não se amoldam inteiramente às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo. Elas respeitam especificamente às decisões definitivas de mérito do Supremo Tribunal Federal, se este declarar, pelo voto de dois terços de seus membros, a atribuição, à decisão, daquela eficácia e efeito.” (Ibidem, p. 36).

206 Nesse sentido, observa André Ramos Tavares: “A criação de ‘diretivas’ gerais, ‘súmulas’ do pensamento

(interpretação) do Tribunal, para serem generalizadamente assumidas pelos demais centros de ‘poder’, constituem, inegavelmente, uma atuação de ordem normativa. A circunstância, porém, de implicar a redação de um enunciado não deve turvar a verdadeira atuação interpretativa que representa tal situação. Aliás, toda interpretação é necessariamente consignada em enunciados redigidos pelo Tribunal Constitucional. Não há nenhuma novidade nesse ponto, nem se deve falar em atuação legislativa.” (Curso

materializarem em enunciados sintéticos, tal como as leis em geral, teriam elas natureza legislativa207. O enunciado da súmula apenas sintetiza a essência do entendimento consolidado jurisprudencialmente pelo Supremo Tribunal Federal sobre determinada matéria. Ele não deve se desprender do substrato jurisprudencial de onde emana.

Nessa esteira, percebe-se que o uso da dicotomia texto-norma para asseverar a natureza legislativa das súmulas vinculantes se mostra inadequado. É que ela não leva em conta precisamente o processo de formação da jurisprudência que sustenta a súmula vinculante, nem as “virtudes passivas” da criação judicial do direito citadas acima. Melhor explicando, tal dicotomia apenas considera o produto final das atividades legislativa e judicial, isto é, o texto. Dessa maneira, abstrai todos os aspectos que fazem parte da natureza específica de cada um desses processos, ou seja, não considera o modo ou a forma de criação de direito pela via judicial e legislativa, o que contribui para uma confusão entre produção normativa do Supremo Tribunal Federal através das súmulas vinculantes, porém de natureza jurisdicional, com produção legislativa do órgão legislativo. Reitere-se, a propósito, que é necessária a ocorrência de vários litígios individualizados, ou seja, o efetivo exercício de jurisdição constitucional difuso-concreta, para, posteriormente, o Supremo Tribunal Federal poder desenvolver um entendimento sobre a matéria jurídica em comum nesses casos, o que corrobora seu viés jurisdicional.

Somando às características básicas da função jurisdicional acima referidas, tem-se que a decisão judicial normalmente parte da consideração de textos normativos produzidos anteriormente pelo legislador. Em outros termos, a própria formação da jurisprudência constitucional firmada pelo Supremo Tribunal Federal é resultado da interpretação de enunciados legislativos, tomados como ponto de partida pelo órgão jurisdicional na sedimentação de seu entendimento. Logo, acredita-se não se poder falar, com precisão, em atividade legislativa do Supremo Tribunal Federal quando da criação de súmulas vinculantes, porque elas são a conclusão de várias interpretações desenvolvidas a partir de

207 “Embora a súmula vinculante, ao apresentar-se como enunciado geral, abstrato e impessoal, de

impositividade erga omnes, tenha configuração bastante próxima à da norma legal, nem por isso se pode tomar a nuvem por Juno, afirmando-se perfeita equiparação entre ou equivalência entre essas duas fontes do direito.” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Súmula vinculante e a EC n. 45/2004. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 708 – destaque no original).

textos legislativos previamente estabelecidos208. Desse modo, é natural que a súmula agregue ao produto legislado a interpretação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, pois, como de resto, toda interpretação é agregadora de sentido ao objeto interpretado, a menos que se sustente o contrário, isto é, que os textos normativos já trazem “embutido” o seu próprio sentido (tese de que se discorda). Portanto, o enunciado da súmula apenas condensa o núcleo do entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal extraído do conjunto de decisões (jurisprudência) desenvolvidas a partir dos textos normativos emanados da autoridade legiferante.

É certo, contudo, que o seu lado normativo afasta a idéia de que as súmulas vinculantes constituem atos que se amoldam perfeitamente naquele modelo liberal de função judicial, através do qual cada decisão vale apenas para o caso concreto sob exame, algo que encontra justificativa numa concepção liberal de Judiciário209. No entanto, já se mostrou o impacto do modelo de Estado Social sobre a jurisdição, cujas decisões, em um contexto de sociedade de massas, tendem a transcender os limites de um único caso concreto, atingindo pessoas e grupos que não estiverem fisicamente naquele pleito. Isso se torna mais necessário quando se credita a um órgão judicial a defesa da Constituição, em caráter definitivo. Desse modo, o efeito vinculante das súmulas se justifica pelas funções exercidas pelo Supremo Tribunal Federal enquanto tribunal constitucional, ao qual compete estabilizar a interpretação jurídico-constitucional, superando uma divergência judicial geradora de grave insegurança jurídica e que acarreta demandas repetitivas e desnecessárias. Destarte, crê-se inadequada a tentativa de explicação de uma jurisdição constitucional tomando por base concepções de função jurisdicional que remontam ao Estado de Direito Legalitário, que a tinham como simples “executivo de segundo grau”. A jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal, assim como a exercida

208 Por essa razão, igualmente afasta-se a tese de que as súmulas vinculantes são uma espécie de restrição à

participação popular na criação do direito via legislação, visto que de ato legislativo não se cuida. Assumindo a postura de que a súmula vinculante é resultado da atividade normativa (e não legislativa) emergente da interpretação jurídica desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional, não se vislumbram maiores razões para concebê-las como uma forma de limitação à participação popular. Do contrário, todas as decisões dotadas de efeito vinculante também seriam ilegítimas. Percebe-se, então, que tal crítica só ganha força se as súmulas vinculantes forem tidas como resultado de produção legislativa pelo Supremo Tribunal Federal, tese de que se discorda, conforme já exposto. Em sentido contrário, ver: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, Sobre a súmula vinculante, cit., p. 57.

209 Denominando “sentença clássica” aquela decisão cujos efeitos não desbordam dos casos concretos sob

exame, afirma Nelson de Souza Sampaio: “A doutrina do liberalismo ortodoxo procurou circunscrever a esse tipo todas as decisões do Poder Judiciário.” (O Supremo Tribunal Federal e a nova fisionomia do Judiciário, cit., p. 9).

por vários tribunais constitucionais, é certamente uma jurisdição especial, mas, fundamentalmente, jurisdição.210

Portanto, força concluir que a materialização das súmulas vinculantes em enunciados lingüísticos não as torna produto de atividade legislativa.

4.3 Súmula vinculante, legalidade e livre concenvimento do juiz