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Reconhecimento legal do direito jurisprudencial e a chegada à súmula vinculante do

Mesmo desprovidas de força vinculante, as súmulas passaram a ser consideradas importantes guias na resolução de litígios na prática jurídica, reforçando o valor da

131 Como afirma o Ministro Victor Nunes Leal: “Nem a Súmula ficou com efeitos que se pudessem comparar

com os da lei, nem a adoção de novos enunciados se faz de modo automático, pela só razão da maioria qualificada ou da reafirmação dos julgados. De um lado, os efeitos da Súmula, restritos ao processo judicial, são bem modestos; de outro, exigiu-se especial deliberação do Supremo, pelo seu Plenário, para a inclusão de novos verbetes na Súmula.” (Passado e futuro da súmula do STF, cit., p. 6-16 −destaque no original).

jurisprudência que as sustentam, havendo quem tenha sustentado serem elas uma espécie de stare decisis de fato.132

No Brasil, é possível verificar um paulatino reconhecimento, pelo próprio legislador, da força da jurisprudência predominante, sumulada ou não, dos Tribunais como pauta de orientações para resolver pleitos futuros.

Pode-se apontar, de início, o artigo 38 da Lei n. 8.038, de maio de 1990, que atribuiu poderes ao relator de recursos ajuizados perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça para negar seguimento aos que contrariassem jurisprudência desses Tribunais nas questões predominantemente de direito. Cuida-se da conhecida súmula impeditiva de recursos:

Artigo 38 - O Relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou, improcedente ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal.

No âmbito da Administração pública federal, pode-se apontar o artigo 4º da Lei n. 9.494, de 10 de julho de 1997, que permitiu ao Advogado-Geral da União dispensar a propositura de ações e recursos, quando a questão já estiver sendo iterativamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos Tribunais Superiores.133

Em linha semelhante, permitiu o artigo 131 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, através da redação dada pela Lei n. 9.528/97, que:

Artigo 131 - O Ministro da Previdência e Assistência Social poderá autorizar o INSS a formalizar a desistência ou abster-se de propor ações e recursos em processos judiciais sempre que a ação versar matéria sobre a qual haja declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, súmula ou jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal ou dos tribunais superiores.

132 SAMPAIO, Nelson de Souza. O Supremo Tribunal Federal e a nova fisionomia do Judiciário. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 75, p. 14, jul./set. 1985.

133 No entanto, essa autorização legal só poderia ser exercida desde que não houvesse súmula específica da

própria Advocacia-Geral da União: “Artigo 4º - Não havendo Súmula da Advocacia-Geral da União (arts. 4º, inc. XII e 43 da Lei Complementar n. 73 de 1993), o Advogado-Geral da União poderá dispensar a propositura de ações ou a interposição de recursos judiciais quando a controvérsia jurídica estiver sendo iterativamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos Tribunais Superiores.”

Posteriormente, a Lei n. 9.756, de dezembro de 1998, alterando o Código de Processo Civil brasileiro, estendeu poderes aos relatores de recursos dos demais tribunais, além do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, permitindo-lhes tomar como referência para suas decisões não apenas a jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores, mas também a do respectivo tribunal perante o qual se interpôs o recurso. Além disso, essa lei possibilitou ao relator que não só negasse seguimento a recursos contrários à súmula ou à jurisprudência dominante de tais tribunais, ainda que, nesse último caso, não sumulada, como também que lhes desse provimento quando a decisão recorrida destoasse do entendimento jurisprudencial. Ressalte-se que no regime criado pela lei antes mencionada, basta a jurisprudência dominante de um tribunal superior ou do respectivo tribunal para abreviar o trâmite do recurso, sem haver necessidade de sua cristalização em um enunciado sumular:

Artigo 557 - O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.

§ 1º-A - Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. Apesar de o legislador ter usado o verbo em modo imperativo (“negará”), o que poderia levar à idéia de que se trata de uma obrigação, sedimentou-se o entendimento de que esse comando encerra mera faculdade. Além disso, a mesma regra é aplicada em casos de reexame necessário pelos tribunais.134

Continuando nessa linha, a mesma Lei n. 9.756/98 ampliou os poderes do relator nos casos de conflitos de competência, possibilitando-lhe julgar desde logo a questão, quando houver jurisprudência dominante do tribunal sobre a matéria presente nos autos:

Artigo 120 - (...)

Parágrafo único - Havendo jurisprudência dominante do tribunal sobre a questão suscitada, o relator poderá decidir de plano o conflito de competência, cabendo agravo, no prazo de cinco dias, contado da intimação da decisão às partes, para o órgão recursal competente.

134 Súmula n. 253 do STJ: “O artigo 557 do Código de Processo Civil, que autoriza o relator a decidir o

Por fim, vale mencionar o artigo 896, “a” da Consolidação das Leis do Trabalho, que prevê o cabimento de recurso de revista ao Tribunal Superior do Trabalho, quando a decisão recorrida der ao mesmo dispositivo de lei federal interpretação diversa da que lhe houver dado a súmula de jurisprudência uniforme dessa corte.

A referência a essas situações é suficiente para perceber que o direito brasileiro oferece mostras de que as súmulas e a jurisprudência consolidada nos tribunais são efetivamente manejadas como parâmetro objetivo de decisões judiciais futuras. Dessa forma, apesar de que em todos os exemplos antes mencionados inexiste obrigatoriedade para obedecer a tais construções jurisprudenciais, não se pode desconsiderar seu impacto nas instâncias inferiores, haja vista que elas supõem um amadurecimento do Tribunal sobre a forma de decidir certa matéria, tendo como ponto de partida a interpretação das leis pertinentes ao caso. Assim, haveria poucas chances de algum recurso prosperar diante da interpretação sólida do tribunal, firmada após ampla discussão sobre a matéria, salvo a verificação de razões fortes para superar o entendimento jurisprudencial.

Tais exemplos evidenciam, como nota Mancuso, uma potencialização da eficácia das súmulas no direito brasileiro operada pelo legislador infraconstitucional135. Então, a jurisprudência dominante e as suas súmulas, embora destituídas de força vinculante nesses casos, já não podiam ser vistas como simples elementos de integração do direito legislado, como se não exercessem influência alguma na práxis jurídica.

Em seguida, viria o elemento até então ausente: o efeito vinculante. No direito pátrio, o efeito vinculante está mais associado às decisões proferidas em sede de controle concentrado de leis e atos normativos perante o Supremo Tribunal Federal Ele foi instituído expressamente pela Emenda Constitucional n. 3, de março de 1993, que, ao criar a ação declaratória de constitucionalidade, reconheceu que as decisões definitivas de mérito nelas proferidas produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo (art. 102, § 2º da CF). Posteriormente, o efeito vinculante foi estendido à ação direta de inconstitucionalidade, através da Lei n. 9.868, de novembro de 1999, ao estabelecer que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a

Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração pública federal, estadual ou municipal (parágrafo único do art. 28). Por sua vez, a Lei n. 9.882, de dezembro de 1999, que regulamentou a argüição de descumprimento de preceito fundamental, reconheceu o efeito vinculante em suas decisões relativamente aos demais órgãos do Poder Público (§ 3º do art. 10). Finalmente, a Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, sedimentou no plano constitucional o efeito vinculante das decisões proferidas em ação direta de inconstitucionalidade e coroou as súmulas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional com igual efeito.

Digno de nota é o entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal acerca da regra da reserva do Plenário (art. 97 da CF). Passou-se a seguir a orientação segundo a qual a decisão plenária do Supremo Tribunal Federal que pronuncia a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, por uma única vez e em controle concreto, afasta a presunção de constitucionalidade de tais diplomas legais136. Com isso, os órgãos fracionários dos demais tribunais não precisam submeter a questão de constitucionalidade aos seus órgãos plenário ou especial, conforme o caso, podendo eles próprios (os órgãos fracionários) fundar suas decisões, em situações ulteriores, no acórdão já proferido pelo Supremo Tribunal Federal. Essa construção jurisprudencial foi agasalhada pelo próprio legislador com a Lei n. 9.756/98, que introduziu um parágrafo único ao artigo 481 do Código de Processo Civil:

Parágrafo único - Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.

Diante do que foi exposto até o presente, cumpre ressaltar três características das súmulas vinculantes que, cotejando com a experiência brasileira antes mencionada, revela que sua criação pode ser vista como um natural resultado de uma trajetória iniciada há muito tempo. Em primeiro lugar, as súmulas vinculantes supõem a construção de um entendimento jurisprudencial de índole constitucional, logo, várias decisões, e nunca

136 Ver: MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. São

Paulo: Saraiva, 2006. p. 253-255; CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da

somente uma, de um tribunal em um mesmo sentido e sobre o mesmo assunto. Em segundo lugar, tal jurisprudência é obra exclusiva do Supremo Tribunal Federal, órgão ao qual compete a concretização última da Constituição. Por fim, o efeito vinculante nas súmulas representa o caráter obrigatório, formalmente estabelecido, atribuído à jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal acerca de determinada questão. Em síntese, a súmula vinculante, essencialmente, encerra uma jurisprudência

constitucional obrigatória desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal.

Assim, é de se perceber que a instituição das súmulas vinculantes não representa muita novidade no sistema jurídico brasileiro, pois a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, como a de outros tribunais, há muito tempo serve de referência ou diretriz para o julgamento de casos análogos pelas instâncias inferiores. Além disso, e principalmente, nada mais consentâneo com sua posição de guardião de Constituição que a jurisprudência constitucional firmada pelo Supremo Tribunal Federal deva ser seguida pelas demais instâncias. Pertinente ao caso, a propósito, é a ponderação de André Ramos Tavares:

(...) no campo dos efeitos da decisão do Tribunal Constitucional, não se descura que, embora não vinculem, na maior parte dos casos, os demais órgãos do Poder Público, a verdade é que exercem verdadeiro modelo, que acaba sendo seguido e acatado espontaneamente, principalmente pelos demais órgãos do Judiciário. Se as decisões nem sempre são dotadas de força jurídica vinculativa, a verdade é que têm funcionado como parâmetro para a atividade dos demais órgãos.137

Em Portugal, percebe-se algo idêntico, a partir das observações de Antero Alves Monteiro Diniz:

(...) pode seguramente afirmar-se, que as decisões do Tribunal Constitucional mesmo quando não dotadas de força vinculativa, têm vindo progressivamente a funcionar como instrumento privilegiado nas decisões dos outros tribunais quando chamados a julgar casos paralelos ou afins.138

137 TAVARES, André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 1998. p. 121. 138 DINIZ, Antero Alves Monteiro. A fiscalização concreta de constitucionalidade como forma privilegiada

de dinamização do direito constitucional (o sistema vigente e o ir e vir dialéctico entre tribunal constitucional e os outros tribunais. In: LEGITIMIDADE e legitimação da justiça constitucional: colóquio no 10. aniversário do Tribunal Constitucional, Lisboa, 28 e 29 de maio de 1993. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 205-206.

Demais disso, o efeito vinculante, também há largo período, faz parte das decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de normas, valendo lembrar que, em tais situações, não é necessária a criação de uma jurisprudência, pois qualquer decisão em ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade ou argüição de descumprimento de preceito fundamental será dotada de força vinculante. Desse modo, a extensão do efeito vinculante às súmulas do Supremo Tribunal Federal não significa nenhuma ruptura com o sistema jurídico, nem, muito menos, uma inovação radical em sua estruturação ou um salto histórico no direito brasileiro139. Ao contrário, crê- se que o efeito vinculante das súmulas do Supremo Tribunal Federal, por demandarem uma prévia construção de jurisprudência constitucional, o que significa a pacificação de entendimento sobre uma causa específica e ampla reflexão em torno dela, repousa sobre uma maior legitimidade, no que diz respeito à segurança jurídica e à estabilidade, do que a vinculação através de decisões isoladas dessa corte. Frise-se, por fim, que a vinculação à jurisprudência constitucional firmada pelo Supremo Tribunal Federal se ajusta com sua condição de guardião maior da Lei Fundamental.

2.3 Síntese

Considerando que a própria experiência brasileira já reconhecia força e utilidade à jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal na resolução de casos futuros e que o efeito vinculante está presente nas decisões proferidas por esse Tribunal nas ações de controle abstrato de normas, a súmula vinculante ostenta a junção desses dois elementos, quais sejam, a jurisprudência dominante mais o efeito vinculante. Por isso, ela não deve ser vista como um elemento de ruptura ou de inovação radical no direito brasileiro.

139 Nesse sentido, ver: DINAMARCO, Cândido Rangel. Decisões vinculantes. Revista de Processo, São

3.1 O conceito de jurisdição constitucional e a importância do