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Reflexos do Estado de Direito Legalista

a) Negação do valor jurídico-normativo da Constituição: o primeiro reflexo que merece ser destacado com o soerguimento do Estado de Direito legalitário foi a negação do caráter jurídico-normativo da Constituição. Com efeito, estando o Poder Legislativo livre de qualquer mecanismo de controle, sua primazia política conduz inexoravelmente à superioridade jurídica da lei no sistema normativo48. Ademais, em virtude dessa carência de controle sobre o legislador, tem-se que é possível não apenas criar leis inconstitucionais, como também mantê-las no sistema normativo, uma vez que inexistem meios para expulsá-las do ordenamento. Portanto, a proeminência do Parlamento se revela incompatível com o primado de uma Constituição dotada de força normativa e que fosse capaz de servir de critério na fiscalização da legitimidade das leis. Como resultado, verifica-se a equiparação hierárquica entre lei e Constituição.49

47 Como aponta Jose Acosta Sánches, “o impacto mais importante que produz na Europa o primeiro ciclo

constitucional francês tem lugar na Península Ibérica, em que através de uma tripla influência francesa – contágio revolucionário, irradiação de textos e invasão napoleônica –, se inicia o movimento constitucional. A emblemática Constituição espanhola de 1812 e a primeira lusitana de 1822 nascem à imagem e semelhança da francesa de 1791, e com influência da primeira sobre a segunda. (...) Os Estado ibéricos, os nórdicos, os Países Baixos, a Bélgica, a Itália após a independência e a Alemanha após a unificação seguiram o sistema de constitucionalismo nominal, mediante codificações, leis administrativas e leis políticas, estas sob os nomes de Cartas, leis constitucionais, Estatutos, ‘Constituições’ e Verfassung” (Formación de la Constituición e jurisdición constitucional: fundamentos de la democracia constitucional, cit., p. 152 e ss.).

48 BLANCO VALDÉS, Roberto L., El valor de la Constitución: separación de poderes, supremacía de la ley

y control de constitucionalidad en los orígenes del estado liberal, cit., p. 246.

Outrossim, a concretização da Constituição fica completamente dependente da atuação do legislador. Mesmo as disposições constitucionais substanciais, como os direitos fundamentais, não possuem aplicabilidade imediata, não podendo, por isso, serem invocadas diretamente pelos cidadãos ou pelos juízes. São apenas diretivas não vinculantes ao legislador50. Logo, a Constituição possui apenas valor meramente político ou moral, e não valor propriamente jurídico.

b) Monopólio da produção normativa no órgão legislativo: a identificação da vontade geral com o Poder Legislativo trouxe como conseqüência a centralização do poder político nessa instância. Configura-se, com isso, a onipotência do Legislativo, único órgão autorizado a produzir normas jurídicas que devem ser aplicadas corretamente por juízes e agentes administrativos. A conseqüência inevitável é a redução de todo o fenômeno jurídico às leis produzidas pelo legislador.

Por um lado, a concentração do direito no âmbito do Legislativo atende à necessidade de superar o estado anterior de dispersão e fragmentariedade, em que se encontravam os focos de criação do direito, substituindo-o pela imagem de consenso nacional traduzido nas leis e nos códigos51. Isso representa, ainda, a exclusão de outros focos de criação jurídica, como, por exemplo, o Poder Judicial. Assim, a jurisprudência não poderia ser considerada como direito, mas apenas aplicação do direito legislado52. Logo, no contexto do Estado de Direito Legalista, o Poder Legislativo assumiu o monopólio da produção normativa.

c) Concepção formal de lei: supondo ser a lei expressão da razão humana e que deve veicular apenas normas gerais e abstratas, para atender às exigências de igualdade e segurança através da aplicação da solução abstrata e previamente estabelecida aos litígios concretos, bastava que ela procedesse do órgão legislativo para ser reputada legítima, independentemente do conteúdo nela disciplinado. Disso decorre a concepção formal de

50 Ver: PIÇARRA, Nuno, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo

para o estudo de suas origens e evolução, cit., p. 168; ZAGREBELSKY, Gustavo, El derecho dúctil: ley, derechos, justicia, cit., p. 49.

51 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Doxa: Cuadernos de Filosofia del Derecho, Universidad de Alicante, Departamento de Filosofia del Derecho, n. 14, p. 175, 1993.

52 “Assim, pois, o direito se esgota na lei, sem que haja lugar nem para um direito consuetudinário, nem para

um direito de situação, nem para um direito de criação judicial.” (GARCÍA-PELAYO, Manuel, Derecho

lei. Mais precisamente, a lei poderia dispor sobre qualquer matéria, desde que elaborada pelo Parlamento. O relevante, portanto, era a sua procedência orgânica, deixando em segundo plano seu objeto. A concepção formal de lei, aliada à negação do valor jurídico- normativo da Constituição, implica em que a lei não conhece nenhum limite jurídico. Como diz Ignacio de Otto, “a lei é fundamento e limite, mas não está sujeita, por sua vez, à limitação”.53

d) Ampla previsibilidade das relações sociais pelo direito legislado: diante do racionalismo iluminista da época e considerando o caráter relativamente homogêneo da classe liberal-burguesa, desenvolveu-se a idéia de que o direito criado pelo Parlamento, além de ter que permanecer estável por certo tempo, deveria oferecer soluções para a quase totalidade dos casos concretos. Assim, apareceu a figura do legislador universal, formando o arcabouço da “Era das Codificações”, cujo exemplo paradigmático se encontra no Código Civil de Napoleão de 1804, que exerceu grande influência no pensamento jurídico europeu-continental, na medida que serviu de inspiração para vários códigos de outros países. O Código de Napoleão corporificava precisamente a concepção de um legislador onipotente, cuja obra é sistemática, coerente, precisa, harmônica e completa54. Nessa medida, as leis e os códigos se apresentam como uma espécie de “prontuário” para resolver, senão todas, ao menos as principais controvérsias55. Desse modo, a codificação resultou em uma simplificação radical do material jurídico. Consoante já ressaltado, essa hegemonia hipertrófica da lei nada mais era do que o reflexo do monismo e da supremacia do Poder do Legislativo.56

Emblemático, a propósito, é o artigo 4º do mencionado Código, pelo qual “o juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei,

53 OTTO, Ignacio de, Derecho constitucional: sistema de fuentes, cit., p. 130.

54 Como afirma Gustavo Zagrebelsky: “A lei por excelência era então o código, cujo modelo histórico

durante todo o século XIX estaria representado pelo Código Civil napoleônico. Nos códigos se encontravam reunidas e exaltadas todas as características da lei. Resumindo-as: a vontade positiva do legislador, capaz de se impor indiferentemente em todo o território do Estado e que se endereçava à realização de um projeto jurídico baseado na razão (a razão da burguesia liberal, assumida como ponto de partida); o caráter dedutivo do desenvolvimento das normas, ex principiis derivationes; a generalidade e a abstração, a sistematicidade e a plenitude.”. (El derecho dúctil: ley, derechos, justicia, cit., p. 32.). Mais adiante, o autor sintetiza a força normativa do Código de Napoleão, ao dizer que este era “não em vão denominado com freqüência a ‘Constituição da burguesia’ liberal”. (Ibidem, p. 53).

55 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliese,

Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. p. 78.

poderá ser processado como culpável de justiça denegada”. Esse enunciado fixa, no Estado Moderno, o princípio da proibição do non liquet ou da vedação da denegação da justiça, evitando que o juiz se exima de proferir uma decisão alegando falhas na lei. Isso desemboca no dogma da completude e coerência do ordenamento jurídico, impondo que o juiz apenas determine as conseqüências jurídicas aplicáveis aos fatos, sem que ele concorra no aperfeiçoamento ou correção das previsões legais.57

e) Primazia da lei nas fontes do direito: a redução do direito à lei igualmente repercutiu no quadro das fontes do direito. Assim, não se pode falar em direito legítimo antes da manifestação da vontade do legislador (racional), que se dá com a criação da lei. Todo o sistema jurídico, nessa medida, deveria confluir para um único elemento normativo, a saber as leis formalmente elaboradas pelo legislador. Mesmo sendo uma expressão rodeada de ambigüidades58, um dos seus sentidos correntes revela que por “fontes do direito” entende-se a forma como ele se exprime, ou seja, como se revela e se manifesta. Por razões de segurança e certeza, no estudo das fontes do direito se busca apontar as prescrições da conduta que podem ser reputadas normas jurídicas pertencentes ao sistema. Na medida que o órgão legislativo adquire proeminência, apenas as leis e os códigos são tidos como fontes do direito. Cuida-se de um dos postulados defendidos pelo positivismo jurídico desse período, que identifica a lei com o direito59. Destarte, a decisão final pela qualificação ou desqualificação de outro foco de produção normativa cabe ao legislador, assegurando-se, portanto, o legicentrismo, característico do modelo de Estado legalitário.

f) Debilidade do Poder Judicial: é perceptível a relação que se estabelece entre o legislador e o juiz no Estado de Direito Legalista. Por trás da primazia da lei como fonte do direito, está o caráter superior do Poder Legislativo em relação aos demais poderes60. Dessa forma, dá-se uma relação de subordinação entre legislador e juiz, que se reflete na inteira submissão deste aos preceitos legais criados pelo primeiro. Portanto, os comandos legais são emanados “de cima para baixo”.

57 Ver: BOBBIO, Norberto, O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 74; PERELMAN,

Chäim. Lógica jurídica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 34-35.

58 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed.

São Paulo: Atlas, 1994. p. 224.

59 BOBBIO, Norberto, O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 166.

60 PIÇARRA, Nuno, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para

Dado que o legislador era considerado onipotente, o juiz se restringe a declarar passivamente o direito legislado, atuando como a “boca que pronuncia as palavras da lei”, na famosa passagem de Montesquieu61. Essa concepção do filósofo francês era consectária da própria concepção iluminista que ele tinha da lei e da função judicial, atribuindo a esta uma tarefa meramente mecânica de aplicação de normas62. O juiz se apresenta como um “executivo de segundo grau”, preso às palavras insertas nos diplomas legislativos63. A conseqüência desse fator é a “debilidade da magistratura”, atribuindo ao juiz um papel neutro e pouco expressivo na aplicação do direito.64

Vale lembrar, a propósito, que no ato legislativo da organização judiciária francesa de 16-24 de agosto de 1790, estava previsto o instituto do référé legislatif, mecanismo por meio do qual os juízes deveriam se reportar ao Legislativo quando se deparassem com dúvidas relevantes na aplicação dos textos legais. Com tal expediente, reservava-se inteiramente ao legislador a faculdade última de interpretar os textos normativos obscuros por ele mesmo produzidos.65

Tudo isso repercutia na interpretação jurídica, moldada nesse contexto de “submissão do juiz à lei”. A identificação do direito com a lei escrita provoca o culto ao texto da lei66. Assim, toma a cena o formalismo jurídico de viés positivista-legalista, representado pela escola da exegese. Uma vez que as leis deveriam ser redigidas de forma clara e precisa, seus enunciados deveriam possuir um sentido unívoco, por vezes evidente em si mesmo. Todo tipo de abertura que implicasse alguma margem de discricionariedade na interpretação era sinônimo de arbítrio judicial67. No processo de aplicação das leis, o juiz deveria encontrar tal sentido único e correto dos enunciados legais, valendo-se, para

61 MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Baron de, O espírito das leis, cit., p. 175.

62 Para atender ao ideal de segurança jurídica, adverte Montesquieu: “Os julgamentos devem se basear num

texto preciso de lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viveríamos em sociedade sem saber precisamente os compromissos que ali assumimos.” (MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Baron de, O

espírito das leis, cit., p. 170).

63 Nesse sentido: QUEIROZ, Cristina, Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia

da construção constitucional, cit., p. 28.

64 CAPPELLETTI, Mauro. Necesidad e legitimidad de la justicia constitucional. In: FAVOREU, Louis

(Org.). Tribunales constitucionales europeus y derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984. p. 612.

65 RECASÉNS SICHES, Luis. Nueva filosofia de la interpretación del derecho. 2. ed. aum. México: Porrúa,

1973. p. 191.

66 BOBBIO, Norberto, O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 88.

67 “Na tradição da escola da exegese as noções de ‘clareza’ e ‘interpretação’ são antitéticas”. (PERELMAN,

tanto, basicamente do critério gramatical de interpretação, ao analisar apenas os elementos textuais insertos na lei ou o critério sistemático para descobrir a vontade ou espírito do

legislador68. Como observa Warat, esse espírito do legislador representa a fórmula mágica utilizada pela escola da exegese para “reproduzir o mito da perfeita racionalidade legislativa, para oferecer na instância da interpretação fascínio por uma vontade univocamente simulada”69. Nesse sentido, aduz Perelman que o “poder de julgar será apenas o de aplicar o texto da lei às situações particulares, graças a uma dedução correta e sem recorrer a interpretações que poderiam deformar a vontade do legislador”.70

Em vez de se falar em construção da norma jurídica pelo juiz, fala-se em

declaração da norma já existente e acabada. A norma jurídica é um dado e não um

construído. Oculta-se o aspecto volitivo na atividade interpretativa, evidenciando apenas o aspecto cognitivo ou de conhecimento da lei71. A aplicação judicial do direito se desenvolve, então, através de processos silogístico-formais, reduzindo a função jurisdicional a uma atividade mecanicista.

Por tudo isso, com a concentração da produção normativa do Estado na instância legislativa, a ciência jurídica se reduz a uma “ciência da legislação positiva”72. É nesse contexto que se insere a crítica de Kirchmann, segundo a qual bastariam três palavras retificadoras do legislador e bibliotecas inteiras se converteriam em papéis inúteis.73

68 Como observa Cristina Queiroz, para os filósofos da Ilustração, a melhor lei seria aquela que não

precisasse de interpretação, já que, como afirmava Beccaria, a “interpretação não era tarefa dos juízes” e que “interpretar a lei seria o mesmo que corrompê-la”, esta última atribuída a Voltaire. Foi essa concepção de que todo o direito estaria contido na lei que levou, na França, vários professores a proclamarem que não ensinavam o direito civil, mas sim o Código de Napoleão (Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional, cit., p. 128-129).

69 WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994. v. 1. p.

69.

70 PERELMAN, Chäim, Lógica jurídica, cit., p. 23.

71 É importante ressaltar que as versões do positivismo jurídico sustentadas por Kelsen e Hart, no que se

refere ao papel do juiz na interpretação jurídica, diferem bastante daquele positivismo-legalista da escola da exegese. A “moldura” da norma e a “textura aberta do direito”, respectivamente, asseguram uma discricionariedade judicial que permite a criação do direito pelos tribunais, em certa medida. Ver: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado, São Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 366; HART, Herbert Lionel Adolphus. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005. p. 137 e ss.

72 ZAGREBELSKY, Gustavo, El derecho dúctil: ley, derechos, justicia, cit., p. 33.

73 KIRCHMANN, Julio Germán von. El caráter a-científico de la llamada ciencia del derecho. In:

1.4 A derrocada do Estado de Direito Legalista e a expansão da