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Súmula vinculante e seu status constitucional

Outro questionamento dirigido às súmulas vinculantes parte do entendimento de que elas seriam, na verdade, normas constitucionais, dotando o Supremo Tribunal Federal não apenas de funções legiferantes (legislador “positivo”), senão de reformador da própria Constituição. A equiparação entre súmula vinculante e norma constitucional já foi sustentada por Cármen Lúcia Antunes Rocha, atual ministra do Supremo Tribunal Federal, à época da tramitação do projeto de emenda constitucional que pretendia introduzi-las no direito brasileiro:

Mais grave, contudo, é a súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal.

É que a esse órgão máximo do Poder Judiciário da República compete “precipuamente a guarda da Constituição” (art. 102).

O objeto, pois, do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal é exatamente a matéria constitucional. Como a súmula terá, na fórmula

proposta, vinculatividade, obrigatoriedade e definitividade, ela não terá, quando editada pelo Supremo Tribunal Federal, “força de lei”, mas “força de norma constitucional”.228

A nosso ver, não deveria causar estranheza o fato de o Supremo Tribunal Federal, órgão jurisdicional ao qual compete defender a Constituição em última instância, proferir decisões dotadas de “força de norma constitucional”. Isso se dá com as decisões dessa corte que declaram a inconstitucionalidade, com efeito vinculante, de leis e atos normativos (como em sede de ADI). Embora o legislador não esteja abrangido por tal efeito, a simples reedição de lei com teor idêntico normalmente ensejaria nova pronúncia de inconstitucionalidade, ou seja, a corte manteria sua posição anterior, salvo a existência de razões consistentes para alterá-la229. Não há como olvidar, nessas hipóteses, a superioridade hierárquica da decisão do Tribunal. Ora, é precisamente por ter capacidade de se sobrepor às leis em geral que tais decisões do Supremo Tribunal Federal, ou de qualquer outro tribunal constitucional a que se credite a defesa da Constituição, ostentam “força de norma constitucional”.

O mesmo se passa com o controle efetuado sobre uma emenda constitucional. Nesse caso, o legislador também não estaria livre de uma fiscalização pelo Supremo Tribunal Federal, pois ele poderia enxergar na emenda um instrumento que viola cláusulas pétreas. Quando uma corte constitucional anula um ato de reforma constitucional, ela produzirá, ao final, uma decisão não apenas situada no patamar de uma norma constitucional, mas, a rigor, uma decisão que se aproxima, hierarquicamente, dos preceitos constitucionais originários.

Portanto, observe-se que a criação de direito com força de norma constitucional por parte do Supremo Tribunal Federal é conseqüência da própria existência de todo um modelo de jurisdição constitucional, e não da súmula vinculante, que é apenas um de seus componentes. Por isso, esse fato não deve ser visto com repúdio, nem como característica atípica da jurisdição constitucional.

228 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, Sobre a súmula vinculante, cit., p. 58. Seguindo essa mesma linha,

Sérgio Sérvulo da Cunha também afirma que as “decisões em matéria constitucional – portanto interpretativas da Constituição – não terão força de lei ordinária, mas força de norma constitucional” (Nota breve sobre o efeito vinculante, cit., p. 13).

Cabe, neste passo, esclarecer um ponto. Apenas as súmulas vinculantes que se fundarem diretamente no texto da Constituição estarão situadas em patamar de preceitos constitucionais, sendo aplicáveis todas as observações feitas acima. As demais súmulas que se basearem diretamente em textos infraconstitucionais, e apenas indiretamente na Constituição, permanecerão, a rigor, em nível supralegal: o enunciado normativo da súmula se sobrepõe ao conjunto de enunciados normativos das leis de onde ela emergiu. Assim, a comparação, quanto ao grau hierárquico, entre súmulas vinculantes e normas constitucionais parece mais acertada quando referidas ao primeiro grupo daquelas. É sobre esse grupo que se continuará a discorrer.

Pois bem, o que se disse até aqui não deve levar à conclusão de que as decisões do Supremo Tribunal Federal pautadas diretamente na Lei Maior, assim como as súmulas vinculantes de status constitucional, são formalmente normas constitucionais ou, ainda, genuínos preceitos constitucionais originários. Viu-se que, de acordo com os pressupostos assumidos neste trabalho, a interpretação constitucional desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal envolve produção normativa. Nessa medida, a sua jurisprudência, construída a partir do texto da Constituição, afigura-se como normas materialmente constitucionais. Isso não poderia ser diferente, em se tratando de um guardião da Constituição, haja vista que suas atividades estarão, direta ou indiretamente, referidas à implementação dos preceitos constitucionais. Portanto, entende-se que a produção normativa em nível constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, assim como a de outro tribunal constitucional com atribuições semelhantes, estabelece-se material- jurisprudencialmente, em virtude de suas funções de intérprete máximo da Constituição e da necessidade de preencher-lhe o conteúdo. Percebe-se então que ser materialmente constitucional e ter “força de norma constitucional” não são atributos exclusivos das súmulas vinculantes.

No limite, caso não se reconheça como legítima a criação de direito material em nível constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (e não apenas da súmula vinculante), ter-se-ia que sustentar a própria inconveniência em se atribuir a tal órgão a tutela consistente e eficaz da Constituição brasileira.

Pertinente é a lição de García de Enterría, para quem o tribunal constitucional atua como um “comissionado direto” do poder constituinte originário:

Toda a polêmica sobre o caráter excessivamente criador da jurisprudência constitucional, sobre sua atuação efetiva como poder paraconstituinte ou de revisão ou emenda constitucional, que é de onde surge a grave questão de sua legitimidade, não é mais que a transposição da polêmica comum sobre o caráter criador e evolutivo da jurisprudência em geral, sobre sua efetiva separação de uma atividade meramente exegética de texto ou códigos legais supostamente fechados, sobre a não adequação do juiz ao papel que lhe reservava a ingênua teoria da legalização completa do direito como simples bouche qui prononce les paroles de la loi, na conhecida fórmula de Montesquieu. Hoje esta polêmica está liquidada e este ganho deve ser trasladado em bloco ao terreno da justiça constitucional.

Não há, pois, “usurpação” de poder normativo (e neste caso de poder constituinte, que é o gravíssimo cargo que se faz) por parte dos tribunais constitucionais; há (ou ao menos deve haver, se os tribunais operam como tais) um uso ordinário de técnicas jurídicas estabelecidas e imprescindíveis para interpretar e aplicar normas jurídicas.230

Acosta Sanches, embora discordando, em parte, de García de Enterría, também conclui, a respeito da produção normativa pela jurisdição constitucional:

Um órgão de natureza jurisdicional não pode ter à sua vez natureza constituinte, constituir formal e originariamente o Estado. Se, como na realidade ocorre, as jurisdições constitucionais de todas as classes criam Constituição, não pode tratar-se em nenhum caso da Constituição formal, obra do poder constituinte do soberano, senão de outra coisa, normas materialmente constitucionais, direito constitucional jurisprudencial.231 Destarte, o poder constituinte originário e o reformador não serão os únicos habilitados a produzir direito constitucional, pois a existência mesma de um tribunal encarregado de dizer a última palavra em sede de interpretação da Constituição implica a inevitável criação de normas materialmente constitucionais232. E essa criação, como se apontou, é impulsionada pela própria estrutura aberta e fragmentária da Constituição, que

230 GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo, La constitución como norma y el tribunal constitucional, cit., p. 223-

225.

231 ACOSTA SÁNCHES, José, Formación de la Constituición e jurisdición constitucional: fundamentos de

la democracia constitucional, cit., p. 366.

232 Referindo-se à atuação do tribunal constitucional como uma modalidade de poder constituinte originário,

aduz Paulo Bonavides: “(...) esse novo poder constituinte originário, qual estamos a teorizá-lo, não desampara a Constituição depois de feita, antes a acompanha e modifica, posto que não tenha titularidade definida, ou careça da racionalidade do momento constituinte ou haja tomado ocasionalmente configuração difusa. Diante da lentidão com que atua, só é possível perceber-lhe a presença invisível quando se constatam as transformações já operadas na Constituição sem a interferência do poder constituinte derivado. Não é o jurista profissional, de formação positivista, que descobre a variedade do poder constituinte em tela, senão aquele que, dotado de ampla visão sociológica, vislumbra nos acórdãos das cortes constitucionais o exercício de um tal poder constituinte, anônimo, silencioso, mas sumamente eficaz. Explicita-se por múltiplas vias. Fruto às vezes da função criativa dos juízes que interpretam a Constituição formal à luz de uma ‘compreensão prévia’, ele nasce impregnado de realidades existenciais, como os juristas da tópica excelentemente assinalaram em profundas reflexões de filosofia do direito.” (Curso de

viabiliza, inclusive, uma mudança informal de seu conteúdo, sem alteração de seu texto. Por isso, é preciso reiterar que o Supremo Tribunal Federal cria direito constitucional material como resultado da interpretação constitucional, o que é consentâneo com o seu dever fundamental de resguardar a Constituição. Com isso, pretende-se ressaltar que a criação de normas constitucionais através das decisões do Supremo Tribunal Federal, portanto jurisdicionalmente, está ligada às suas competências para salvaguardar a Constituição, as quais sempre exigirão prévia atribuição de sentido aos enunciados constitucionais.

Diante do exposto, tem-se que a criação de direito constitucional material jurisprudencial através das súmulas vinculantes não deve ser equiparada ao exercício de função reformadora da Constituição. Realmente, a função reformadora, a rigor, pode ser tida como uma espécie de exercício de função legiferante, levada a cabo pelo Corpo Legislativo, com todas as características que esta apresenta, sendo aplicáveis as observações a respeito das diferenças entre criação legal do direito e criação judicial.

Além disso, as decisões que respaldam as súmulas vinculantes não buscam, tal como se dá na reforma da Constituição, uma alteração do próprio texto constitucional, seja introduzindo novos enunciados, seja suprimindo ou modificando os antigos. As decisões que estão na base da súmula vinculante, como toda decisão judicial resultante de interpretação, devem levar em conta os enunciados normativos anteriormente estabelecidos pelo órgão legiferante, os quais servem, inclusive, de limite à interpretação jurídica. Nesse diapasão, as súmulas vinculantes têm a finalidade de fixar a diretriz jurídico-constitucional que os demais aplicadores do direito devem observar, superando a divergência judicial e fomentando o tratamento igualitário na aplicação do direito.

4.6 Síntese

Do exposto, depreende-se que as súmulas vinculantes não são manifestações de atividade legislativa do Supremo Tribunal Federal, não se devendo falar em ofensa à separação dos poderes. Elas são resultantes de criação judicial do direito resultante de interpretação jurídica desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal no exercício da

jurisdição constitucional. A vinculação dos demais juízes às súmulas vinculantes decorre da posição singular do Supremo Tribunal Federal como intérprete último da Constituição e instância decisória final da jurisdição constitucional, pelo que, em caso de discrepância judicial, necessita ser fixada a interpretação jurídica a ser seguida pelas outros órgãos. Cuida-se, ademais, de uma exigência de aplicação isonômica do direito para situações semelhantes.

Além disso, não se deve confundir a caráter material e jurisprudencialmente constitucional das súmulas vinculantes com o caráter formal de normas constitucionais emanadas do poder constituinte originário ou do poder de reforma, pois, como visto, há significativas diferenças entre a produção legislativa do direito e a produção judicial do direito, de que as súmulas são espécies.

DE UMA COMPARAÇÃO