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Possibilidade de modulação dos efeitos da súmula

Uma vez aprovada a edição de súmula vinculante, ela passará a produzir seus efeitos, em regra, “a partir de sua publicação na imprensa oficial” (art. 103-A, caput da CF). Isso significa que a súmula vinculante não tem eficácia retroativa (ex tunc), mas tão- somente prospectiva (ex nunc), mesmo nas hipóteses em que ela veicular declaração de inconstitucionalidade de determinada norma. Reflexo prático relevante dessa eficácia prospectiva da súmula vinculante é que os atos praticados antes de sua publicação na imprensa oficial não são alcançados por ela. De fato, se a súmula não possui eficácia retroativa, então todos os atos e negócios efetuados em momento anterior à sua publicação serão preservados, mesmo que tenham sido realizados com base em interpretação jurídica não acolhida na súmula. Portanto, tem-se que, como regra, a súmula apenas vincula a partir de sua publicação.

Todavia, a Lei n. 11.417/2006 permitiu que o Supremo Tribunal Federal alterasse o alcance do efeito vinculante das súmulas. De acordo o artigo 4º desse diploma legal:

Artigo 4º - A súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público.

Esse dispositivo guarda semelhança com enunciados constantes da Lei n. 9.868/99 (que regula o processo e julgamento da ADI e da ADC) e da Lei n. 9.882/99 (que regula o processo e julgamento da ADPF). No que se refere ao primeiro diploma legal, trata-se do artigo 27, que assim dispõe:

Artigo 27 - Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Em relação ao segundo diploma legal, cuida-se do artigo 11, que estabelece: Artigo 11 - Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Esses últimos preceitos encontram justificativa plausível no âmbito do controle concentrado de leis e atos normativos pelo Supremo Tribunal Federal. É que, como se sabe, nesse tipo de controle, a declaração de inconstitucionalidade acarreta, como regra geral, a nulificação da norma inválida, com eficácia retroativa (ex tunc), afetando todos os atos concretos pautados na norma inconstitucional. No entanto, a práxis decisória do Supremo Tribunal Federal, nesse passo, seguindo tendência jurisprudencial de tribunais constitucionais estrangeiros, tem percebido que, por vezes, em nome de princípios como segurança jurídica e boa-fé, faz-se necessário preservar certos atos e negócios realizados com base na lei inconstitucional. Isso leva a corte a ter que reavaliar a rígida ortodoxia da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc, com fulcro na tese de nulidade do ato inconstitucional, de matriz norte-americana. Pois bem, é para situações fora do comum como essas que os artigos 27 e 11 supra podem ser invocados pelo Supremo Tribunal

Federal, isto é, quando houver excepcional interesse social e para prestigiar a segurança

jurídica, evitando-se o efeito puramente ex tunc da declaração de inconstitucionalidade.

A leitura desses enunciados permite concluir que o órgão poderá, atendidos os requisitos neles fixados, restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou

decidir que essa declaração só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento a ser fixado pelo próprio órgão. Assim, com base em tais preceitos, o Supremo Tribunal Federal poderia adotar qualquer das seguintes decisões sobre a inconstitucionalidade de uma lei. Ele pode: (a) preservar determinados efeitos emanados da lei, mesmo que a decisão tenha sido proferida com eficácia ex tunc; b) declarar a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade; (c) determinar que a decisão só tenha eficácia a partir do seu trânsito em julgado, o que equivaleria a atribuir-lhe efeito ex nunc; ou (d) fixar um outro momento a partir do qual ela terá eficácia312. Portanto, uma vez demonstrada a prevalência da segurança jurídica ou de excepcional interesse social, o Supremo Tribunal Federal poderá atenuar o rigor da doutrina da eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade, protegendo, consoante as situações verificadas acima, certos atos fundados na lei inconstitucional.

Pois bem, uma vez verificado o modelo que supostamente inspirou o legislador ordinário da súmula vinculante, cabe perquirir a sistemática adotada para ela. Em primeiro lugar, observe-se que o quorum exigido para se poder modular os efeitos da súmula vinculante é o mesmo que se exige para a sua edição, ou seja, dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal. Nesse ponto, já se verifica uma particularidade. É que, quanto às decisões em controle concentrado, o quorum de dois terços é considerado especial ou

qualificado porque a mera pronúncia de inconstitucionalidade, sem modulação de efeitos, ou seja, com a declaração retroativa da inconstitucionalidade, depende apenas da maioria absoluta do Supremo Tribunal Federal (art. 97 da CF). Tem-se, então, que o comum é a retroatividade da declaração de inconstitucionalidade, efeito natural da própria decisão, e, em casos excepcionais, confere-se à corte a possibilidade de modular esses efeitos, excepcionalidade essa que justifica um quorum qualificado para tanto (dois terços). Assim, o quorum da maioria absoluta do Supremo Tribunal Federal bastaria para a declaração de inconstitucionalidade de uma norma, com efeitos retroativos, e, caso entenda ser necessário

312 MENDES, Gilmar Ferreira, Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na

modular tais efeitos, seria exigida nova deliberação, buscando-se atingir o quorum de dois terços da corte. No caso das súmulas vinculantes, esse quorum não agrega nada de especial, já que é exatamente o mesmo exigido para a sua edição.

Todavia, apesar de o quorum para a modulação ser o mesmo reclamado para a edição da súmula vinculante, uma questão ainda deve ser ressaltada. É que a possibilidade de modulação dos efeitos da súmula não advém automaticamente da aprovação de sua edição, ou seja, mesmo já tendo alcançado o quorum necessário para a sua edição (dois terços) não se segue daí pronta autorização para o Supremo Tribunal Federal modular-lhe os efeitos. A rigor, existem duas deliberações: uma para editar uma súmula vinculante e outra para decidir quanto à modulação de seus efeitos, embora, em ambas, exija-se o mesmo quorum.

A segunda observação de relevo diz respeito às possibilidades de modulação

temporal dos efeitos da súmula vinculante, já que o artigo 4º da Lei n. 11.417/2006 permite ao Supremo Tribunal Federal “decidir que [a súmula vinculante] só tenha eficácia a partir de outro momento”. Como visto, ela apenas passa a produzir efeitos a partir de sua publicação na imprensa oficial, de modo que, via de regra, terá eficácia ex nunc. Não se permitindo que a súmula tenha eficácia retroativa (ex tunc), então, quanto ao aspecto temporal, restaria apenas fixar uma data, posterior à sua publicação na imprensa oficial, que servisse como termo inicial da produção de seus efeitos. Em outras palavras, o padrão é que a súmula desencadeie seus efeitos a partir de sua publicação, porém, já que se permitiu modular os efeitos dessa e, considerando que ela não pode apanhar situações pretéritas, essa modulação temporal serviria apenas para determinar uma data futura, que não a da publicação, para iniciar a produção de efeitos. A súmula vinculante, então, sempre produzirá efeitos pro futuro, apenas que ou eles se iniciarão a partir da sua publicação ou, caso seja obtido o quorum de dois terços em nova deliberação, a partir de outra data que vier a ser fixada pela corte.

A terceira observação é que o enunciado legal em análise fala não apenas em se decidir que a súmula tenha eficácia a partir de outro momento (aspecto temporal), como também que o Supremo Tribunal Federal possa “restringir os efeitos vinculantes”. Supondo tratarem-se de hipóteses diversas, cabe discutir o alcance da “restrição dos efeitos vinculantes”.

Poder-se-ia sustentar que essa hipótese permite ao Supremo Tribunal Federal restringir espacialmente os efeitos vinculantes da súmula. Em princípio, seria questionável destinar uma súmula vinculante apenas a certas localidades do país, notadamente quando ela veicular exegese de leis nacionais ou enunciados da própria Constituição313. Além disso, mesmo se se tratasse, por exemplo, da declaração de inconstitucionalidade de lei municipal, não seria, em princípio, adequada a restrição espacial para a respectiva unidade federativa. É que a súmula resulta de jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e busca expressar a ratio decidendi dessa jurisprudência. Se é assim, essa ratio

decidendi poderia ser invocada para questionar leis e atos de idêntico teor, produzidos em outras localidades do país, ao da lei que fomentou a elaboração da súmula vinculante. Com isso, permite-se a irradiação do entendimento do Supremo Tribunal Federal para outras localidades onde existam atos jurídicos cujo teor já foi apreciado pela corte. Portanto, competirá ao Supremo Tribunal Federal arcar com o ônus argumentativo que essa restrição espacial implica, pois, em princípio, a súmula vinculante deve se dirigir a todo o território nacional.

Outrossim, referida restrição poderia recair sobre o aspecto subjetivo, isto é, sobre os destinatários da súmula. Assim, poderiam ser excluídos de seu âmbito ou os órgãos do Poder Judiciário ou os da Administração pública. Seria incongruente editar súmula vinculante e excluir a Administração pública do dever de segui-la, uma vez que é precisamente ela quem, não raro, provoca demandas judiciais repetidas sobre as quais o Supremo Tribunal Federal já possui entendimento pacífico, prejudicando, com isso, os jurisdicionados. De outra parte, editar súmula vinculante obrigando apenas a Administração pública, e não o Judiciário, poderia provocar um efeito indesejável, qual seja, os eventuais descumprimentos da súmula por parte dos agentes administrativos poderiam ser confirmados pelos órgãos jurisdicionais, uma vez provocados, que não concordassem com o entendimento sumulado314. Desse modo, a súmula correria o grave risco de não possuir efetividade alguma.

Por fim, poderia haver restrição dos efeitos vinculantes a determinadas parcelas do enunciado sumular. Nesse caso, o inconveniente é claro. Por que razão o Supremo

313 TAVARES, André Ramos, Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417, de

19.12.2006, cit., p. 69.

Tribunal Federal, após proferir reiteradas decisões em um mesmo sentido e ter o consentimento de dois terços de seus membros quanto à edição de súmula vinculante, iria posteriormente dizer que partes do enunciado dessa súmula seriam não-vinculantes? Em razão desse paradoxo, acredita-se que seria inadequado considerar vinculantes apenas algumas partes do enunciado da súmula e outras desprovidas de imperatividade.

Ressalte-se, por fim que, em todas as hipóteses de modulação dos efeitos da súmula antes apontadas, o Supremo Tribunal Federal deverá justificar racionalmente a necessidade de tais restrições, a fim de esclarecer quais são as razões de segurança

jurídica e/ou de excepcional interesse público a embasar sua posição.

7.5 Conseqüências jurídicas pelo descumprimento das súmulas