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1. Identificação e descrição das modalidades de relação existentes na rede 2. Qualificação das relações

a) Perspectiva dos profissionais envolvidos b) Variedade das relações

3. Avaliação da capacidade de criar novas conexões e fluxos 4. Análise dos efeitos da Conectividade

Coerência, continuidade e complementaridade na rede: dimensão Integração

A partir do reconhecimento da existência dessas relações, percebemos que na composição de uma rede apresentam-se aspectos que não dizem respeito a características individuais de cada relação, mas a atributos de conjuntos de relações. Isso é ressaltado quando autores qualificam dois ou mais serviços como articulados ou integrados (HARTZ; CONTANDRIOPOULOS, 2004; MENDES, 2011; ZAMBENEDETTI; PERRONE, 2007).

“Articular”, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2001), é definido tanto como a ação de tornar-se ligado, como de organizar-se. Já

“integrar” diz respeito a incluir-se como elemento em um conjunto, formando um todo

coerente, completo ou harmonioso. É o que defende Castells (1999, p.85), quando afirma que

“uma pluralidade de componentes realmente divergentes só pode manter-se coerente em uma rede”.

As relações construídas entre os serviços não devem ocorrer em caráter fortuito ou aleatório. Pretende-se uma articulação ou integração entre eles, de forma organizada e coerente:

[...] a integração em saúde é um processo que consiste em criar e manter uma governança comum de atores e organizações autônomas, com o propósito de coordenar sua interdependência, permitindo-lhes cooperar para a realização de um projeto (clínico) coletivo. (HARTZ; CONTANDRIOPOULOS, 2004, p.232)

Em concordância com os autores, partimos do pressuposto que um único serviço de saúde não é capaz de resolver todas as demandas de saúde a ele dirigidas: algumas solicitações são inadequadas, mas poderiam ser atendidas adequadamente em serviços de outra natureza; demandas que inicialmente fazem parte de seu escopo de responsabilidade podem exigir intervenções complementares, ou podem evoluir para quadros mais simples ou mais graves, tornando-se responsabilidade de outros serviços.

Ainda que o SUS oriente-se pelo princípio da integralidade, as organizações entre serviços geralmente obedecem a agrupamentos temáticos, onde se aproximam os diferentes serviços, de todos os níveis de complexidade, que lidam com demandas semelhantes (diferentes serviços de saúde mental, cardiologia, pneumologia, infância). Cada serviço possui um escopo de responsabilidade, o que inclui alguns quadros clínicos em seu encargo, enquanto exclui os demais. Ao mesmo tempo, deverão existir outros serviços que tenham como responsabilidade os quadros excluídos, com vistas à integralidade da atenção. Em um contexto de rede, um primeiro serviço considera inadequada para si uma determinada demanda, tem ainda a responsabilidade de manejá-la adequadamente em direção a outro serviço apropriado. Cria-se, com isso, um objeto de trabalho que vai além da responsabilidade individual de um serviço, tornando-se um “objeto da rede”.

Para que esse trânsito na rede seja eficiente, é necessário o acordo acerca da natureza desse objeto. Hartz e Contandriopoulos defendem que, além da integração clínica, é necessária a integração normativa, que “visa a garantir a coerência entre o sistema de representações e valores dos atores em simultaneidade com as interfaces da integração

clínica/funcional” (2004, p.332). Mendes (2011) faz uma rigorosa defesa da mudança na

atenção das condições crônicas, para que estas não sejam acompanhadas como mera recorrência de situações agudas. Esse movimento implica em uma mudança na forma de compreensão dos serviços que tradicionalmente lidam com demandas agudas, de modo a perceber cada demanda imediata como parte de uma situação de saúde mais ampla. Assim, constitui-se uma nova representação dos agravos de saúde, enquanto objeto de atenção compartilhada.

No caso da saúde mental, além da necessidade de ressignificar eventos agudos como parte de condições crônicas, existem ainda as divergências nas concepções de sofrimento

psíquico/transtorno mental/doença mental. Há ainda a distinção do objeto de trabalho como “o

transtorno mental”, ou como “a pessoa em sofrimento psíquico”, dando margem a propostas terapêuticas divergentes e mesmo antagônicas entre serviços hospitalares e abertos. Nesse caso, além do objeto da rede, cria-se uma tensão entre o que deve ser o objetivo da rede, ou seja, a que visaria o conjunto de intervenções previstas nas diferentes instituições.

Além da coerência, outros dois aspectos fundamentais da dimensão de integração são a continuidade e complementariedade das intervenções. A continuidade acontece quando um paciente necessita de mais de uma intervenção para o seu cuidado em saúde. Ocorre, por exemplo, quando um médico prescreve uma medicação e seu efeito deve ser avaliado por este mesmo profissional dentro de um mês. Ou quando alguém participa de um grupo terapêutico e deve na semana seguinte estar novamente no grupo. Também se refere a quando um problema de saúde crônico ou prolongado tem várias repercussões a médio e longo prazo, que precisam ser lidadas de forma sucessiva. Continuidade significa, portanto, uma organização coordenada das intervenções em saúde ao longo do tempo, de modo a responder à necessidade de ações em vários momentos de um mesmo estado de saúde de uma pessoa ou população, ou de diferentes problemas de saúde desenvolvidos ao longo da vida.

Esse tipo simples de continuidade geralmente se beneficia da manutenção do vínculo com um profissional ou equipe (LIMA et al., 2012; MENDOZA-SASSI; BERIA, 2003). Esses benefícios incluem a facilidade de acesso às informações: ainda que o uso correto dos prontuários permita armazenar as informações essenciais sobre cada caso, e o prontuário eletrônico permita o acesso a essas informações de forma rápida e em qualquer ponto da rede, existem outras informações que não são acrescentadas no prontuário, mas que podem vir a ser úteis em intercorrências futuras.

A manutenção do vínculo é positiva também pelo tipo de relação estabelecida entre profissional ou equipe e o usuário do serviço de saúde. Uma relação de confiança facilita tanto o acesso a novas informações pelo paciente (lembrando que em saúde mental a maior parte das informações é obtida por meio do relato dos pacientes e familiares), como também a aderência à conduta prescrita pelo profissional. Além disso, a própria relação é um instrumento de transformações no usuário, aspecto fundamental no campo da saúde mental (LIMA et al., 2012; MIRANDA; ONOCKO CAMPOS, 2010; SCHMIDT; FIGUEIREDO, 2009). Não apenas pelo estabelecimento de confiança, mas por configurar-se como o

“espaço” onde as transformações acontecem. A psicanálise chama esse fenômeno de transferência, e as demais escolas de psicoterapia utilizam o termo mais genérico “relação terapêutica”. Ainda que nem toda relação duradoura ou mesmo de confiança se estabeleça

como uma relação terapêutica, um vínculo continuado é uma condição necessária para que esta se apresente.

Diferentes serviços utilizam como diretriz a manutenção da referência em um mesmo profissional. Nas ESF as equipes de saúde da família são criadas com responsabilidade sanitária por uma população determinada ao longo do tempo (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2011c). Em vários CAPS é estabelecido um profissional de referência para cada usuário (MIRANDA; ONOCKO CAMPOS, 2010; OLSCHOWSKY et al., 2009). Nas internações psiquiátricas essa prática não tão comum, contudo quando ocorre o seguimento ambulatorial (que muitas vezes é na mesma instituição), existe a preocupação de encaminhar o usuário para seu médico anterior, caso existam uma relação anterior.

Esse modo simples de continuidade pode acontecer também sem a manutenção do vínculo com o mesmo profissional, ocorrendo também entre diferentes serviços. Por exemplo, quando uma pessoa recebe alta de uma internação psiquiátrica no hospital, porém precisa manter o uso dos medicamentos e por isso vai ser atendida novamente por outro psiquiatra em um ambulatório ou CAPS, dando continuidade à terapia medicamentosa.

A forma com que descrevemos até agora a continuidade diz respeito à necessidade de intervenções semelhantes acontecerem ao longo do tempo, de forma que um mesmo profissional ou um profissional com a mesma formação seria capaz de realizá-las de forma relativamente independente. Outro tipo de continuidade acontece quando existe a necessidade de intervenções diferentes ao longo do tempo, de forma que cada intervenção complemente o efeito das anteriores. Isso acontece dentro de uma equipe do CAPS ou do hospital, onde um usuário necessita de intervenções medicamentosas prescritas por um psiquiatra, mas administradas por um enfermeiro ou técnico de enfermagem, participando ainda de oficinas de terapia ocupacional, psicoterapia grupal e/ou individual, ou recebendo suporte em questões sociais por meio do serviço social. A esse tipo especial de continuidade, estamos chamando de complementariedade.

Comumente a complementariedade é referida entre diferentes serviços, conforme estabelecido na própria organização do SUS em serviços e intervenções em níveis primário, secundário e terciário. As diferentes intervenções podem ser agrupadas em níveis de complexidade tecnológica (técnica ou material), de forma que sua inter-relação indica a complementariedade das intervenções. Podemos pensar que a evolução do estado de saúde de um usuário determina o tipo de intervenção necessária, mas é a disponibilidade e capacidade de direcionamento para esse novo tipo de intervenção que estabelece complementariedade enquanto prática. A organização de fluxos sequenciais que contemplem tais necessidades de

intervenção e possibilidades de acesso é chamada de linha de cuidado (MAGALHÃES JUNIOR, 2002). Essa tecnologia de organização e análise das intervenções permite a padronização do percurso de usuários a partir de um tipo de agravo, ou em relação a grupos populacionais específicos, como mulheres, idosos, crianças ou gestantes (REIS; DAVID, 2010).

Além das diferentes densidades tecnológicas, também podemos considerar a articulação entre intervenções de promoção de saúde, prevenção de agravos e recuperação como outra forma de complementariedade, sendo ainda, segundo Pinheiro e Mattos (2003), uma faceta fundamental da Integralidade. Dentro de um sistema de saúde organizado, as intervenções de promoção e prevenção visam à diminuição da necessidade de intervenções de recuperação, trazendo menos ônus para as pessoas – evitando sofrimento e incapacidades – e para o próprio sistema de saúde, gerando economia. Assim, por meio dessas diferentes intervenções torna-se possível executar o monitoramento das condições de saúde, que passam a constituir-se como objeto de interesse do sistema de saúde não só a partir de uma situação de adoecimento. Dessa forma, a atenção à saúde torna-se, pelo menos virtualmente, uma ação constante ao longo da vida dos indivíduos e populações.

Dentro de uma rede ou sistema de saúde, a complementaridade se expressaria pela capacidade de os serviços possibilitarem a continuidade do tratamento por meio do acesso a diversas intervenções em diferentes momentos, geralmente em locais de tratamento distintos. Na mesma direção, outros autores ressaltam a importância da continuidade e da complementariedade - ainda que prefiram o termo “globalidade” – como objetivo-fim da integração:

A integração propriamente dita dos cuidados consiste em uma coordenação durável das práticas clínicas destinadas a alguém que sofre com problemas de saúde, visando a assegurar a continuidade e a globalidade dos serviços requeridos de diferentes profissionais e organizações, articuladas no tempo e no espaço, conforme os conhecimentos disponíveis. (HARTZ; CONTANDRIOPOULOS, 2004, p.232, grifos nossos)

Giovanella e cols. (2002), no intuito de construir um modelo avaliativo para integralidade, operacionalizaram esse conceito em algumas dimensões empíricas: 1) primazia das ações de prevenção e promoção; 2) abordagem integral do indivíduo e da família; 3) garantia da atenção nos três níveis de complexidade; 4) articulação entre promoção, prevenção e recuperação.

Bosi e Uchimura (2006) apontam outros elementos necessários à incorporação da integralidade, assim como da humanização, na avaliação de programas de saúde. As autoras

ressaltam a necessidade da consideração de três níveis sincrônicos: 1) plano ontológico, que demanda a demarcação da concepção de homem e de saúde da qual parte a avaliação, e de condizente aporte teórico-conceitual; 2) plano metodológico, que exige a compatibilidade entre a metodologia utilizada e os pressupostos do programa de saúde a ser avaliado, reconhecendo ainda os aspectos subjetivos e relações de poder implicados na produção do conhecimento; 3) plano político, que justifica e legitima a avaliação mediante a perspectiva de induzir à transformação no objeto de avaliado.

Levando em conta nossa problematização, incluímos em nosso modelo de análise de redes uma dimensão chamada integração, que se subdivide em “coerência” e “continuidade e

complementariedade”.