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É tanto que, o dia que o matriciamento vem, o médico fica lá quatro horas O que é muito raro Porque é uma aula! [CSF 02]

O matriciamento, eu via mais como uma forma de qualificar o profissional do posto de saúde para uma observação mais detalhada desse assunto, do tema. No caso, era eu né? O médico vinha mais para me ensinar, pra que eu participasse, aprendesse mais e tal. [ ...] Mas eu via como sendo mais uma atividade para qualificar, melhorar a atenção do profissional. Claro que além de atender o paciente né? Mas tinha essa função também de nos apresentar esse lado psicológico, psíquico do comportamento... [CSF 05]

O matriciamento é bom porque a gente aprende. O psiquiatra vem aqui e me ensinou coisas que eu não sabia. Mas a maioria das vezes eu não tenho dificuldades com psiquiatria não. [CSF 06]

Observamos que os profissionais sentem-se valorizados, reconhecendo o apoio matricial como uma oportunidade para se tornarem profissionais melhores, e mais capacitados para as demandas de saúde mental.

Não pudemos observar os atendimentos conjuntos, porém nos chamou a atenção que, enquanto a presença do psiquiatra era bastante valorizada e comentada, sendo inclusive referida como “uma aula do psiquiatra”, em nenhum momento houve menção espontânea ao trabalho da enfermagem do CAPS no apoio matricial. Ainda que isso aponte para certo êxito no caráter pedagógico necessário ao matriciamento (CAMPOS; DOMITTI, 2007), percebemos pelos relatos que as discussões (ou “aulas”) versavam geralmente sobre os aspectos biomédicos do cuidado: sinais e sintomas, diagnóstico, adequação da prescrição medicamentosa. Mesmo o relato dos enfermeiros da EqSF sobre o matriciamento revelavam que suas dúvidas eram a respeito de psicofármacos, tais como tempo de efeito, interações medicamentosas e dosagem. Esses achados foram consoantes uma pesquisa sobre o apoio matricial realizada também em Fortaleza, na SER IV, onde uma das fragilidades encontradas foi a centralidade das decisões terapêuticas na figura do médico (JORGE et al., 2012).

Em nossa fase de observação, em uma ocasião em que iríamos observar o matriciamento, este foi cancelado porque o psiquiatra não pôde comparecer ao serviço devido a uma emergência familiar. Ainda que o profissional de enfermagem do CAPS estivesse disponível, informou por telefone ao CSF do cancelamento da atividade, não ocorrendo atendimento conjunto. Os pacientes previstos foram atendidos e medicados no centro de saúde apenas pelo médico de família, gerando insatisfação na equipe e nos usuários.

Também no CAPS, um profissional questiona o sucesso dessa estratégia pedagógica em algumas unidades, que não querem atender os pacientes com problemas de saúde mental sem a presença de um psiquiatra:

Então a primeira coisa que eles colocam é: "nós não vamos atender mais, porque não está podendo vir as visitas do médico pra cá". Então só funciona se tiver um psiquiatra lá daqui ou do AD [CAPS ad] , que não é assim. Enquanto que a pessoa passou dois anos capacitando o outro pra atender? Então a lógica não consegue ser invertida. Não cabe ao CAPS geral o matriciamento. Cabe a atenção básica, de certa forma, se permitir a essa nova lógica. Com CAPS ou sem CAPS. Mas a gente ainda não conseguiu chegar a esse estatuto, está entendendo? Então precisa de algo mais. [CAPS 03]

Esse relato se refere ao momento em que a ida da equipe de apoio foi interrompida pela indisponibilidade de transportes, ao final da última gestão municipal. Revela, porém, que uma vez interrompida a visita dos profissionais do CAPS, não é possível manter a mesma resolutividade nos atendimentos em saúde mental. O intuito do apoio matricial, em seu aspecto de aprendizagem, é que ao longo do tempo as equipes de referência tornem-se capazes de resolver uma maior quantidade de demandas, progressivamente selecionando apenas casos mais graves para o atendimento conjunto e discussão de caso (TÓFOLI; FORTES, 2007). Contudo, não está presente na literatura sobre o tema uma previsão de tempo para a retirada das equipes de apoio, constituindo na realidade uma estratégia de educação permanente (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010c).

Outro profissional do CSF reconhece o aprendizado, mas sente falta de alguns conhecimentos que considera necessários para lidar com saúde mental:

Eu nunca tive [contato com o CAPS], a não ser no matriciamento. A não ser isso, eu não sei. Assim, algum treinamento sobre medicação, a partir de quantos dias sem tal medicação o paciente corre risco de entrar numa crise. Eu não recebi. [...] Modificou minha forma de atender, porque antes eu não tinha nenhum conhecimento. E durante o atendimento, ali naquele momentinho pequeno, ele tirava alguma dúvida que eu tinha. Algum conhecimento eu conseguia ter. [...] Mas assim, não foi repassado sobre medicações, ações, para quê que serve, características de patologias. [...] Gostaria que tivesse treinamento, e que a gente tivesse a ajuda dessas equipes. Por mais tempo, porque a quantidade de pacientes está cada vez crescendo. Os transtornos de ansiedade em maior quantidade, procurando a unidade. [CSF 03]

A entrevista da qual extraímos o excerto acima foi realizada no período em que o apoio matricial já estava suspenso, de forma que o profissional afirma o interesse do retorno da equipe. Porém, ao ressaltar também algumas temáticas relacionadas a medicações e psicopatologia, comenta que o tempo de contato com o CAPS é muito

pouco, pois o atendimento é “um momentinho pequeno”, e a ajuda das equipes deveria ser “por mais tempo”, pois a demanda em saúde mental tem aumentado. A percepção de

que o tempo do apoio matricial é insuficiente aparece com bastante frequência em relação ao aspecto assistencial, uma vez que só eram atendidos quatro pacientes por encontro mensal:

Porque nós somos divididos em três áreas I, II e III. Fazia de cada área separado. Porque senão não tinha nem condição. E assim, só são quatro pacientes por atendimento, entendeu? E pronto. [CSF 07]

Era assim... era muito complicado. Porque a equipe vinha um período [um turno] por mês. Não era nem um dia. Geralmente dois pacientes novos, e no máximo dois retornos. Para atender as três áreas. [...] Então assim, eu só tinha oportunidade de ter acesso ao psiquiatra e à equipe, a

cada três meses. Mesmo que fosse só uma área, não suportaria. Porque a quantidade está muito elevada de pacientes que necessitam de receita e de medicação controlada. [CSF 03] E a quantidade que era atendida era muito pequena. Duas, três. Quatro pessoas com muita briga. [...] E também, devido aos problemas da pessoa, tinham pessoas que passam mais de uma hora conversando, de seus problemas que não foram resolvidos em outros atendimentos no próprio CAPS. Você sabe que problema de saúde mental não é resolvido assim, como uma mágica. [CSF 02]

E outra: o psiquiatra, ele vem uma vez [por mês]. Aí aquele paciente, para você retornar novamente para fazer todo o acompanhamento, é difícil, porque na demanda sempre acaba aparecendo paciente novo. [CSF 02]

O programa de saúde mental da unidade de saúde, ela é muito restrita. [...] Porque é muito esporadicamente que se vem um profissional da saúde mental para fazer os determinados atendimentos à demanda que se tem na unidade. [CSF 04]

O sentimento de que a demanda não é contemplada nesse encontro mensal foi bastante presente. Um único profissional também se referiu à necessidade de mais contato com um psicólogo, além do psiquiatra, ressaltando que a psicóloga do NASF também está na unidade poucos turnos por semana:

Então eles poderiam mandar também, além de um psiquiatra por mês, uma psicóloga também. Vir um outro dia, no mês, né? Porque é só aquele dia. Para dar um suporte melhor. Então, assim, é... Eu acho que, já com isso, melhoraria. [CSF 01]

Ressaltamos que a responsabilidade pelo acompanhamento dos pacientes atendidos na consulta conjunta não cabe apenas aos profissionais especializados da equipe de apoio, podendo esse paciente ser acompanhado também em outras ações da EqSF. Supomos que, por serem casos considerados inicialmente como muito complexos pelo médico de família, continuava-se com a percepção de que o psiquiatra era necessário longo do acompanhamento. Podemos questionar que, se o acompanhamento necessita sempre do psiquiatra, é sinal de que aquele caso mantém-se responsabilidade do especialista, e não da atenção primária. Isso somente se justificaria pelo caráter pedagógico do apoio, objetivando que futuramente outros casos semelhantes pudessem ser acompanhados apenas pela EqSF.

Podemos perceber que, quanto mais pacientes necessitam do acompanhamento da equipe especializada, maior será a percepção de que há uma demanda não contemplada pelo matriciamento. Daí a percepção ainda bastante recorrente de que é necessário mais tempo da equipe de apoio presente no CSF. Contudo, temos de considerar que a presença do psiquiatra no CSF implica em sua ausência no CAPS, e ainda que o CAPS da SER III tenha maior disponibilidade de psiquiatras que os outros do município, a ausência impacta o serviço:

Aí onde eu considero que, mais uma vez o inchaço da instituição CAPS, por conta da não implantação de outros serviços, fez com que o tempo não permitisse. O tempo, principalmente. Então eu sair do CAPS para fazer esse tipo de supervisão, implica em eu deixar de atender no CAPS naquele horário. E no CAPS havia uma população que já está... Então, havia uma pressão, e de repente eu me vi voltando para o CAPS para atender aquela demanda. [CAPS/HSMM]

Mas no período que eu trabalhei, às vezes ficava também a questão que um administrador de saúde levava em consideração. Que tem também a questão do número de pessoas. Porque às vezes eu me via em um período de três horas, que eu poderia demandar para atender uma clientela de X pessoas, quando eu ia a essas outras unidades, às vezes era para atender um caso ou dois que tavam precisando de uma supervisão. E o administrador também leva em consideração esses aspectos. "Poxa, tô deixando de fazer atendimento para tantas pessoas aqui, para um número menor ali". E ainda nessa carência de profissionais. [CAPS/HSMM]

Dentro de uma organização sistêmica de serviços de saúde mental, é esperado que, uma vez organizado o atendimento de demandas leves na atenção primária, ocorra uma redução dessa demanda em serviços mais complexos, como CAPS e hospitais psiquiátricos. Contudo, temos que levar em conta se apenas a demanda de sofrimento psíquico grave já não é excessiva para a capacidade atual dos serviços abertos. Conforme expomos no anteriormente, o índice de CAPS/100mil habitantes em Fortaleza é de 0,57, e na SER III, de 0,63. Seria necessário, portanto, praticamente a duplicação do número de serviços para chegarmos ao índice ideal.

Outra questão destacada pelos profissionais do CSF acerca do apoio matricial diz respeito à dificuldade de comunicação ainda existente. Ainda que a presença física das equipes de apoio tenha provocado mudanças na relação com o CAPS, a comunicação entre profissionais ocorre apenas durante os atendimentos conjuntos: De interação mesmo, eu não vi diferença não. Porque acabou aquele atendimento ali, eu não tinha mais contato. Talvez, se eu precisasse e ligasse, talvez eu até tivesse conseguido falar com o médico, perguntar alguma coisa. Mas eu... nunca teve esse contato não. [CSF 03]

Tem só no dia que eles vêm para acompanhar a gente no atendimento. Fora isso, não. [CSF 02] A comunicação é muito curta. Eles ligam e dizem, ou que vem ou que não vem. Então não existe a questão de ligar e perguntar "e aí, como é que tá a paciente, o tratamento? O que vocês tem percebido? Tem percebido que os pacientes tem melhorado? Não? " [...] Seria bom se tivesse uma parceria melhor, uma comunicação melhor entre o posto e o CAPS. Tivesse um diálogo melhor. [...] Para saber a respeito dos pacientes, se precisa de algum suporte. [CSF 01]

A ligação [telefônica] que tem daqui do posto é só, porque, como aconteceu deles faltarem, a própria coordenação já entrou em contato para saber o porquê. E geralmente a resposta é bem... bem curta. "Ah, porque o médico faltou" ou "não, porque o médico tá de férias" ou então "ah, porque houve um problema aqui". Não tem assim, que poderia ter, de na hora [dizerem] "não, ele faltou, mas a gente tá mandando outro dia. A gente vai... contornar a situação. Vai resolver o problema". [CSF 01]

A ausência de contato direto entre os profissionais, ainda que por meio do telefone, prejudica bastante o apoio matricial, pois é este instrumento que permite o contato imediato em uma situação de dificuldade que surgem fora do dia de atendimento conjunto. Sem o acesso à distância ao apoiador, mesmo problemas simples, que poderiam ser resolvidos imediatamente, tem de ser encaminhados para o dia da visita da equipe, causando acúmulo de demandas e maior demora em resolvê-las. Segundo os relatos, a comunicação telefônica ocorre apenas para justificar a ausência da equipe no dia marcado, sem possuir nenhum papel resolutivo de remarcar a consulta ou prestar algum outro apoio à distância.

Tendo em vista a necessidade de conciliar muitas agendas – da equipe de apoio, da equipe de referência e dos usuários – uma desmarcação traz muitos prejuízos para a organização da demanda e continuidade do tratamento. Além das ausências por motivos pessoais diversos, também identificamos problemas relacionados ao transporte do CAPS, o que geralmente ocasiona atrasos nos atendimentos:

Esse problema do horário do transporte é básico. Porque os pacientes chegam aqui num horário, e eles [a equipe de apoio matricial] iam chegar num horário um pouco mais tarde, porque eles já estavam esperando o transporte lá [no CAPS] para vir pra cá [para o CSF]. [...] Eles vão para o CAPS, aí o carro era um carro que vinha para cá, e daqui ia buscá -los. Então nem o transporte eles tinham. [CSF 02]

Todas as relações entre os serviços possuem exigências materiais, e não apenas a disponibilidade e capacidade técnica da equipe. O contato telefônico, por exemplo, exige a existência do aparelho e linha telefônica em ambos os serviços. Já o apoio matricial, por exigir o deslocamento constante dos profissionais do CAPS, necessita tanto do automóvel e gasolina16, como de condições favoráveis do trânsito e assiduidade do motorista. Esses detalhes, aparentemente óbvios ou banais, muitas vezes não são considerados na literatura, mas são preocupações constantes dos gestores da saúde. Conforme descrevemos na seção CAPS, dificuldades na gestão municipal ocasionaram a suspensão dos transportes da SMS, interrompendo o apoio matricial em todo o município. E anteriormente a essa retirada, mesmo havendo disponibilidade de transporte, outras dificuldades no deslocamento ainda ocorriam, prejudicando a agenda das consultas conjuntas.

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Em nossas experiências pessoais de trabalho na ESF do município de Fortaleza, era bastante frequente a suspensão das visitas domiciliares ao final do mês, pois havia acabado a cota mensal de gasolina do transporte.

As dificuldades de comunicação e de transporte têm efeitos negativos na credibilidade e até na compreensão do funcionamento do apoio matricial em cada centro de saúde. O relato de um profissional do CSF descreve um “desentendimento” comum entre os serviços:

Ai ela [uma usuária] foi pro CAPS, quando chegou lá no CAPS, daí eles pegaram - o CAPS adora fazer isso - disseram que aqui no posto ia ter o matriciamento que ela podia vir, que ela não precisava marcar. Ai eu disse: “Dona [fulana], não é assim”. No posto não funciona desse jeito. No posto funciona assim: enquanto não vai ter [matriciamento] , ela vai continuar no CAPS. Então desde esse dia, ela veio uma vez aqui, que foi exatamente no dia que não teve o médico. [...] Eu disse: "Está vendo porque eu não queria que você viesse? Eu não quero que você quebre o seu tratamento." [...] Ai ela disse: "Não [sicrana] , então eu não vou vir mais. Eu vou pedir lá pra eu continuar lá [no CAPS] ". [CSF 07]

Os atrasos e cancelamentos ocorridos no CSF Fernandes Távora geram, para alguns profissionais e usuários, desconfiança ou mesmo descrédito em relação às atividades propostas. Essa preocupação foi relatada também por outros profissionais, inclusive no CAPS:

ENTREVISTADO 1: Não era uma coisa certa. Nesse ano também tem a questão das