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4. ACORDOS GLOBAIS: INSTRUMENTOS CONCRETOS DE NEGOCIAÇÃO

4.3. DIMENSÃO LEGAL E AVALIAÇÃO DO IMPACTO DOS ACORDOS GLOBAIS

harmonização de interesses e regulação social privada, embora não exista um quadro legal internacional que os ampare juridicamente e lhes confira a necessária segurança jurídica para sua plena eficácia e disseminação.

Ainda que, emergindo do diálogo social, estejam em conformidade com o modelo social europeu, os AMI‟s não encontram sustentação legal nos níveis nacional e internacional, não obstante sofram o impacto do ambiente jurídico nacional e internacional aos quais se destinam. Correspondem, assim, a uma nova forma de regulação social, criada pelos atores sociais, sem um quadro legal preciso. Desta forma sua análise legal interessa não só aos parceiros sociais signatários destes instrumentos, como também às organizações internacionais que podem desempenhar um importante papel no desenvolvimento de um quadro legal para os AMI‟s, e de forma geral, paras as negociações coletivas transnacionais. (Sobczak, 2007: 116)

Não possuindo os AMI‟s qualquer apoio ou ligação institucional a uma ordem jurídica particular, passam a confrontar-se com a dificuldade de ter sua natureza legal definida sob uma perspectiva jurídica clássica.

Entretanto, uma perspectiva sociológica do direito internacional, conhecida como “objetivismo sociológico”, permite uma compreensão da dimensão jurídica do AMI a partir da teoria de que a lei não se restringe a uma forma de regulação estatal de cima para baixo, mas que deve ser compreendida como um meio para resolver uma necessidade de organização social no contexto da crescente atividade transfronteiriça gerada pela globalização. (Papadakis et al., 2008: 82)

Segundo George Scelle, principal proponente desta abordagem, o objetivo das normas, incluindo os acordos privados, é satisfazer a necessidade social dos indivíduos e dos seus grupos e organizar as relações sociais, incluindo as relações de trabalho, no contexto de uma sociedade global resultante da interpenetração dos povos por meio do comércio internacional, em que os indivíduos estão no centro da ordem jurídica internacional. (Scelle, 1932;1934 apud Papadakis et al., 2008: 82)

A função inovadora dos AMI‟s como instrumentos de criação de espaços de diálogo e interação entre atores sociais (sindicatos globais e EMNs) dentro desta perspectiva sociológica do direito, faz com que estes acordos sejam vistos como um fenômeno supra estatal decorrente de uma necessidade social para organizar as interações globais entre a gestão da EMN e sua força de trabalho na era da globalização. Os AMI‟s refletiriam o resultado da interação entre estes atores sociais que necessitam disciplinar suas relações e, de fato, construir o seu próprio quadro legal em âmbito transnacional, acompanhando a dinâmica criada pelo comércio e investimentos internacionais. O quadro jurídico surgido a partir dessa interação poderia coexistir com outras ordens jurídicas, incluindo as negociações coletivas firmadas pelos parceiros sociais no âmbito local, nacional ou regional, que podem incluir os AMIs como parte das iniciativas que se reforçam mutuamente para a institucionalização de um quadro de relações laborais globais. (Papadakis et al., 2008: 82)

Contudo, até que seja construído este quadro legal pelos parceiros sociais, os AMIs continuam sendo firmados sem sustentação jurídica no plano internacional,

fazendo com que aqueles que querem adotá-los como forma de regular suas relações sociais sugiram novas soluções para sua efetiva implementação.

Um dos problemas a ser enfrentado é a legitimidade dos signatários dos AMIs no que diz respeito à representação de todos os trabalhadores da cadeia produtiva, por parte dos sindicatos laborais, e de todas as subsidiárias, e até fornecedores e subcontratados, aos quais são imputados obrigações por meio destes acordos globais.

Por parte das empresas, um ou mais representantes assinam o AMI, cabendo- lhe a responsabilidade pelo cumprimento dos acordos. Quando estes acordos preveem compromissos a serem cumpridos também pelas subsidiárias, surge um problema de representação. Embora o procedimento adotado reflita a realidade dos poderes econômicos dentro do grupo, cada uma das empresas subsidiárias tem sua própria personalidade jurídica, o que independe da integração do grupo econômico. Essa fragilidade de representação torna-se mais evidente quando o AMI define regras para subempreiteiros e fornecedores, que não participam das negociações, e cuja personalidade jurídica própria constitui impedimento para que a gestão da empresa signatáriado acordonegocie por eles. (Sobczak, 2007: 117)

Para tornar possível a negociação e assinatura dos AMIs pelas gestão da ETN em nome também de suas filiais e subcontratadas, far-se-ia necessário que essas lhe conferissem um mandato com poderes para negociar compromissos juridicamente vinculativos. Um mandato dessa natureza, com fulcro na legislação competente, consolidaria o valor legal do AMI e conferiria à empresa controladora certa responsabilidade para garantir o cumprimento dos acordos. (Sobczak, 2007: 117)

Por parte dos trabalhadores, também deve ser analisada a questão da legitimidade da parte signatária para representar todos os trabalhadores da cadeia de produção, em todo o mundo, que mantém vínculo de trabalho com a empresa com a qual é firmado o AMI. Para sanar essa debilidade, já existem AMI negociados de forma inovadora, incluindo representantes de sindicatos nacionais de todos os países onde a empresa atua. Essa abordagem facilita a aplicação efetiva do AMI alicerçado no diálogo social local, e reflete o princípio da subsidiariedade, mantendo os direitos sociais fundamentais que se aplicam a todo o grupo definidos pelo AMI, e estimulando as

negociações descentralizadas em outros níveis, considerando os diferentes contextos nacionais. (Sobczak, 2007: 121)

Ainda considerando os diferentes contextos nacionais em que se encontram as subsidiárias e contratadas afetadas pelo AMI, é necessário que estes acordos façam referência às leis nacionais e convenções coletivas que devem ser observadas localmente. Em muitos Estados, o poder público não possui meios suficientes para controlar a observância do direito do trabalho, e mesmo havendo normas sociais juridicamente vinculativas, estas, muitas vezes, não são eficazes. Assim, quando o AMI prevê o cumprimento da legislação nacional, a eficácia destas normas podem ser ampliadas, inclusive por meio dos mecanismos de implementação e monitoramento do acordo. (Sobczak, 2007: 123)

Sendo os acordos globais compreendidos como “soft law”, por não constituírem instrumento legalmente previsto no Direito Positivo, uma forma de conferir-lhes efeito legal é integrá-los a outras normas juridicamente vinculativas. Muitas empresas incluem seu AMI em contratos com os subcontratantes. As empresas também podem referir-se aos AMI nas convenções coletivas realizadas em cada país, ou acordos coletivos celebrados por cada filial, o que reforça a participação dos atores locais na implementação dos acordos firmados. Essas medidas conferem ao AMI os efeitos jurídicos de uma convenção coletiva nos termos da legislação trabalhista nacional, aumentando a segurança jurídica dos acordos globais. (Sobczak, 2007: 125-126)

Os tribunais também podem reconhecer os efeitos jurídicos de um AMI, mesmo que não estejam incorporados a outras normas legais, se o contrato tiver sido aplicado ao longo de um determinado período de tempo. Em muitas leis trabalhistas nacionais, regras consuetudinárias garantem aos trabalhadores que os benefícios sociais não podem ser retirados, salvo a observância de procedimentos específicos previstos para tanto. (Sobczak, 2007: 126)

A falta de previsão legal específica acerca dos AMI, ainda que seja possível ver neles algum valor legal, causa certa insegurança jurídica às entidades sindicais representantes dos trabalhadores e às empresas. É importante que os sindicatos demonstrem que sua participação nas negociações e nos acordos contribuem para a criação de vantagens concretas para os seus trabalhadores no âmbito local, e que o

não cumprimento do AMI pode levar a penalidades. Caso contrário, os sindicatos podem ser utilizados neste processo como meras estratégias de marketing social das empresas. Por outro lado, a falta de segurança jurídica também é um problema para as empresas. Uma empresa que assinou um AMI pode temer decisões judiciais adversas se uma ação for intentada contra ela porque uma (ou mais) de suas filiais ou subcontratadas não conseguiu cumprir o AMI, mesmo que a própria empresa tenha usado seus poderes econômicos para tentar forçá-lo a atuar em conformidade com os termos do acordo. É importante para as empresas avaliar o risco legal de assinar um AMI. Também é essencial que as empresas que assinam um AMI e não consigam cumpri-lo sejam penalizadas, para evitar o descrédito de todos os acordos globais dessa natureza. (Sobczak, 2007: 127)

Para garantir maior segurança jurídica aos acordos globais, é necessária a constituição de um quadro jurídico para a negociação coletiva transnacional. Este quadro legal deve nomear os negociadores legítimos de ambas as partes representadas, empregadores e empregados, podendo impor aos parceiros sociais um determinado conteúdo mínimo, bem como disposições relativas ao alcance das normas negociadas e ao processo de monitoramento, deixando às partes uma ampla margem de liberdade quanto à definição dos procedimentos e demais conteúdos a serem negociados. Finalmente o quadro deve definir o valor legal e o impacto dos acordos globais, apresentando-se como solução mais adequada a previsão da obrigatoriedade do AMI ser adotado em cada país de acordo com as legislações nacionais dos países em que a empresa possui filiais, seja por meio de decisões de gestão unilaterais, ou por meio de acordos coletivos. (Sobczak, 2007: 128)

A despeito da ausência da segurança jurídica necessária a sua plena e efetiva implementação, os AMIs têm gerado significativo impacto na melhoria das relações laborais e garantia de direitos sociais no nível transnacional. As pesquisas de Platzer e Rub apontam que as evidências empíricas a respeito destas questões ainda são incompletas, mas permitem as seguintes conclusões (Platzer e Rub, 2014: 15-17):

o Acordos globais são, em termos de crescimento e número atual, o elemento mais dinâmico entre as ferramentas utilizadas nas relações sociais no nível transnacional;

o Trata-se de instrumento ideal para ser desenvolvido de forma flexível, que pode se adaptar a uma ampla gama de condições em diferentes empresas e setores, com enorme potencial para assegurar padrões mínimos sociais a partir se sistematicamente implementados, superadas as dificuldades de limitação dos recursos sindicais disponíveis nas áreas de implementação e monitorização;

o A assinatura dos AMIs denotam o reconhecimento oficial das FSI como parceiros de diálogo e negociações no âmbito corporativo global, o que reforç o potencial organizativo das FSI, que passam a ocupar um papel independente no campo de definição dos padrões sociais globais, aperfeiçoando a representação sindical no nível global;

o Os AMI contribuem para a manutenção e renovação do discurso em torno dos direitos humanos sociais, com o fim de assegurar a aplicação destes direitos, destacando a legitimidade destas normas, e reconhecendo os direitos sociais como uma obrigação, também, de governança privada, e como um compromisso fundamental da política social;

o Os resultados empíricos disponíveis acerca da aplicação e efeitos observáveis de AMIs mostram exemplos de impactos positivos, mas específicos, limitados às zonas problemáticas de determinados locais, e seletivos.

Platzer conclui sua análise, observando que, devido a seu caráter voluntarista, e porque ainda existem em número limitado, AMIs devem ser visto, em escala global, como instrumento complementar no fortalecimento dos direitos humanos sociais. Os AMIs não podem substituir as soluções políticas e jurídicas, nem podem eles próprios serem substituídos no papel de reforçar e exigir estas soluções políticas e jurídicas voltadas aos direitos humanos sociais. Afinal, os acordos globais criam um canal adicional para a comunicação, implementação e monitorização dos direitos humanos

sociais, ao tempo em que estabelecem condições prévias para esse impacto social, promovendo a articulação internacional dos sindicatos e contribuindo para a regulação das relações de trabalho transnacionais no nível corporativo. (Platzer e Rub, 2014: 17)

5. CONCLUSÃO

Com o fenômeno da globalização, o Estado passou a compartilhar sua titularidade de iniciativa normativa com diferentes atores sociais, o que provocou uma redução do seu poder regulatório, por força, principalmente, das instituições supranacionais, como as organizações multilaterais, blocos regionais, corporações transnacionais e organizações não governamentais, que passaram a produzir normas de alcance global que competem com as normas estatais, até então soberanas e incontestáveis.

Essa conjuntura propiciou o surgimento de uma nova realidade jurídica, caracterizada pela proliferação, nos mais diversos campos da sociedade, de regulações privadas, que embora sejam constantemente questionadas pela ausência de um quadro jurídico que as ampare e lhes confira validade legal, já gozam de certa legitimidade social, atribuída por seus destinatários, que passaram a adotá-las pela necessidade de regular situações que transcendem as fronteiras do Estado, ou nas quais a entidade estatal não se mostrou capaz de disciplinar com eficiência.

As relações laborais transfronteiriças caracterizam esta ineficiência do Estado na regulação das relações sociais transnacionais, abrindo espaço para o desenvolvimento de negociações com vistas à constituição de normas que garantam aos trabalhadores de categorias econômicas específicas, ou de determinada empresa multinacional, direitos sociais mínimos, independente do país em que exerçam seu trabalho, por meio das negociações coletivas transnacionais.

Não obstante as dificuldades enfrentadas para o regular e efetivo desenvolvimento destas negociações internacionais, principalmente no que concerne à inadequação das entidades sindicais, disponibilidade para negociações por parte dos agentes econômicos, e dificuldades de ordem prática e legal, como a divulgação e implementação das normas negociadas em toda a cadeia de produção e adequação destas normas à legislação local, trata-se, indiscutivelmente, de um avanço no diálogo social no domínio global. Tornou-se possível o debate entre os representantes do capital e do trabalho, sendo, estes últimos, reconhecidos como sujeitos ativos na elaboração e estabelecimento de um padrão sócio laboral a ser observado em esfera mundial.

Na esteira das negociações transnacionais, surgiram os acordos globais, como instrumentos concretos destas negociações coletivas, realizados no âmbito das corporações transnacionais, entre a empresa e seus empregados, aplicáveis a todas as sucursais, e muitas vezes alcançando empresas subcontratadas e fornecedores.

Ainda que se perceba, mesmo no curso das negociações coletivas, uma constante tensão entre as classes empregadora e de trabalhadores, é possível se alcançar, por meio dos acordos firmados, uma convergência de interesses, em que todos sejam beneficiados. Com as negociações coletivas transnacionais, seja na esfera setorial, ou no âmbito das corporações transnacionais, todos os atores sociais têm muito a ganhar.

Adotando os acordos em nível transnacional, as corporações internacionais podem se beneficiar com a flexibilidade das condições concernentes às relações de trabalho, diretamente negociadas pelas partes interessadas, e com a possibilidade de conduzir as negociações com vistas a uma maior produção e um melhor desempenho nas suas atividades.

Os trabalhadores também são favorecidos, reconhecidos como sujeitos ativos na elaboração das normas que regulam as relações trabalhistas, podem exigir e implantar melhores condições de trabalho para a categoria que representam ou no âmbito da corporação transnacional em que trabalham, e difundir as conquistas obtidas a outros locais no mundo onde os trabalhadores não gozem de proteção social adequada, por ineficiência do Estado, ou, até mesmo, pela inexistência de políticas públicas nacionais que ampare as classes sociais mais frágeis.

As negociações coletivas transnacionais beneficiam também, ainda que de forma transversa, o Estado. A despeito da redução no seu papel regulatório na sociedade globalizada, o Estado possui uma posição exclusiva, simbólica e institucional no plano nacional e internacional, desenvolvendo papel essencial na coordenação e adequação de interesses e no desenvolvimento de políticas públicas que aperfeiçoam o funcionamento do mercado e protegem as classes sociais mais vulneráveis. Ainda assim, o ente estatal não se mostra capaz de atuar em todos os setores sociais - que já não mais observam as fronteiras físicas dos territórios - de forma exclusiva e eficaz.

Dessa forma, incapaz de disciplinar as relações trabalhistas transfronteiriças, o Estado pode beneficiar-se dos acordos globais firmados, permitindo e fiscalizando sua implantação local e aplicação das suas normas, que interessam às empresas e trabalhadores, para garantir maior eficiência e produtividade aos estabelecimentos empresariais instalados no seu território, bem como para a melhoria na qualidade de vida dos trabalhadores que se encontram sob sua jurisdição, o que permite resultados benéficos para o bem estar social dos seus cidadãos e para a economia estatal.

Mesmo já existindo mais de uma centena de acordos desta natureza, assinados desde o final do século passado, ainda trata-se de um instrumento novo, sem um quadro jurídico que lhe dê amparo legal, e desprovido de mecanismos que assegurem sua implementação efetiva em toda a cadeia produtiva. Contudo, constituem instrumentos negociais com grande potencial de desenvolvimento, que já produzem efeitos concretos no âmbito do espaço no qual foram firmados, e que vem contribuindo para o gradativo aperfeiçoamento de uma relação mais equânime entre empresa e trabalhadores, por meio do dialogo e fixação de normas que atendam aos reais interesses das partes envolvidas e que, em conjunto com outros instrumentos políticos e sociais, tem o poder de disseminar e ampliar a garantia dos direitos humanos sociais no âmbito global.