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2. A GLOBALIZAÇÃO E A TRANSNACIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE

2.4 O PLURALISMO JURÍDICO

Na atual conjuntura social percebe-se que o Estado tem renunciado algumas prerrogativas do seu poder soberano, diminuindo o controle exercido sobre assuntos econômicos, políticos e legais, sujeitando-se a uma autoridade superior, como ocorre na União Europeia. Além disso, por uma forte pressão dos competitivos mercados globais, os Estados têm perdido sua capacidade de guiar e proteger sua economia. Percebem-se ainda, na sociedade contemporânea, evidentes sinais de diminuição das funções legais tradicionais do Estado (TAMANAHA, 2007: 386-387).

Nos termos já expostos, para suprir a falta de regulamentação legal estatal, muitas organizações e instituições privadas elaboram regras que se aplicam às suas próprias atividades. Em situações de conflitos, muitas vezes as partes conflitantes recorrem a arbitragens, temendo a ineficiência, falta de credibilidade e altos custos dos Tribunais do Estado. Favelas, comuns em grandes cidades ao redor do mundo, têm se organizado com pouca ou nenhuma presença legal oficial, e mantém a “ordem” utilizando-se de outras normas e mecanismos sociais criados por seus moradores.

Essas situações caracterizam a atual face do pluralismo jurídico (TAMANAHA, 2007: 386-387).

Pluralismo jurídico existe sempre que os atores sociais identificam mais de uma fonte de direito dentro de uma mesma arena social (TAMANAHA, 2007: 396). Ainda que haja intenso debate entre pesquisadores sobre o conceito de direito para fins de definir o alcance do pluralismo jurídico, a ideia que prevalece é a do direito como algo mais abrangente que a lei produzida pelas instituições estatais. Ehrlich entende que o direito é fundamentalmente uma questão de ordem social, que pode ser encontrado em todos os lugares (EHRLICH, 2007: 24 apud DUPRET, 2007: 5). Woodman afirma que o direito abrange um contínuo que vai da forma mais clara da lei estadual até as mais vagas formas de controle social (WOODMAN, 1998 apud DUPRET, 2007: 5). Griffiths conclui ser o direito a autorregulação de cada área social (GRIFFITHS, 1986 apud DUPRET, 2007: 5). Dupret aduz que a lei é determinada pelas pessoas na área social em que vivem através de seus próprios usos comuns (DUPRET, 2007: 5). Teubner, em referência a Griffiths, compartilhando do mesmo entendimento, assinala que o atual pluralismo jurídico tende a substituir o fator propriamente jurídico pelo controle social (GRIFFITHS, 1986, p. 50, nota 41 apud TEUBNER, 2003: 19).

O fato é que o pluralismo jurídico está em toda parte, sempre que se reconhece mais de uma fonte normativa por meio de práticas sociais em uma determinada área social. É o que se verifica em todos os campos sociais, uma aparente multiplicidade de ordens jurídicas, desde o nível local, dentro de um município, até o nível mundial. Somados às leis municipais, estaduais, distritais, nacionais, internacionais e transnacionais, convive-se atualmente com regras advindas da religião, e normas de cunho cultural ou étnico, como as regras observadas nas aldeias indígenas. Há também uma forte influência privada na produção normativa, que tem como exemplo mais notável a já citada lex mercatoria, que dita as normas do comércio transnacional (TAMANAHA, 2007: 375).

José Eduardo Faria (2004: 155-156), ao analisar o pensamento jurídico contemporâneo, descreve o pluralismo jurídico:

“Na medida em que sob essa generalidade e flexibilidade do novo perfil do direito positivo do Estado-nação as organizações financeiras internacionais e as

corporações transnacionais formam complexas redes de acordos formais e informais em escala mundial, estabelecendo suas próprias regras, seus procedimentos de auto-resolução de conflitos, sua cultura normativa e até mesmo seus critérios de legitimação, bem como definindo suas próprias identidades e regulando suas próprias operações, o que se tem na prática é uma inequívoca situação de pluralismo jurídico; pluralismo esse aqui encarado na perspectiva da sobreposição, articulação, interseção e interpenetração de vários espaços jurídicos misturados. Tendo como característica básica a “porosidade” dessas múltiplas redes normativas, esse tipo de pluralismo é que confere tanto a especificidade quanto a originalidade das instituições de direito

emergentes com o fenômeno da globalização econômica.”

Discorrendo sobre o tema, Teubner (2003), em suas pesquisas, destaca a produção de “ordenamentos jurídicos globais sui generis”, apontando os ordenamentos jurídicos de grupos empresariais multinacionais, o direito produzido por empresas e sindicatos para regular relações de trabalho, coordenação em escala mundial na área da padronização técnica, e o discurso dos direitos humanos, conduzido, a princípio, em esfera global (TEUBNER, 2003: 10).

Como atores sociais do pluralismo jurídico, além das corporações transnacionais, Organizações Não Governamentais (ONG) internacionais e entidades sindicais globais, destacam-se também as redes transgovernamentais, com poderes de regulamentação, a exemplo do Financial Stability Forum (Fórum de Estabilidade Financeira), composto por três organizações transgovernamentais;o Comitê de Basiléia de Supervisão Bancária, Organização Internacional da Comissão de Valores e Associação Internacional de Supervisores de Seguros; juntamente com outras autoridades, nacionais e internacionais, responsável pela estabilidade financeira em todo o mundo. Redes ativas também têm sido criadas por juízes e outros organismos internacionais (TAMANAHA, 2007).

Na atual sociedade capitalista, o direito não é mais monopólio de uma entidade política, social, institucional ou jurídica específica, mas resultante de suas diferentes possibilidades de articulação e interação, que fazem com que estes espaços se relacionem de forma complexa e dinâmica, resultando em uma combinação de várias concepções de legalidade e distintas gerações de normas, antigas e recentes; numa mescla desigual de ordenamentos jurídicos com diferentes regras, procedimentos, linguagens, escalas, áreas de competência e mecanismos adjudicatórios (FARIA, 2004: 163).

A visão de uma lei uniforme e monopolista que governa a comunidade é claramente obsoleta. A expansão do capitalismo e o movimento de pessoas e ideias entre os países está cada vez mais célere, trazendo muitas consequências transformadoras para a lei, sociedade, política e cultura. E a globalização traz uma quantidade expressiva de regimes jurídicos supranacionais e internacionais, com potencial para afetar diretamente as pessoas, não importando onde elas vivem (TAMANAHA, 2007: 410).

Os sistemas tornam-se autônomos, voltando-se para seus próprios interesses e resolução dos problemas e conflitos criados internamente, não deixando espaço para o Estado e seu sistema jurídico exercerem sua capacidade de gestão, subordinação, controle, direção e planejamento sobre todos eles. O Estado dispõe de menos condições para fazer prevalecer os interesses públicos sobre os interesses específicos dos agentes produtivos, para disciplinar os comportamentos individuais e exigir observância às regras de seu ordenamento (FARIA, 2004: 195).

Partindo da premissa de que é a própria sociedade civil que impulsiona a globalização dos seus diferentes discursos, e não a política, Teubner (2003: 14) defende a tese de que “o direito mundial desenvolve-se a partir das periferias sociais, a partir das zonas de contato com outros sistemas sociais, e não no centro de instituições de Estados-nações ou de instituições internacionais”, motivo pelo qual nem as teorias políticas, nem as teorias institucionais do direito podem fornecer explicações adequadas da globalização do direito. A teoria pluralista do direito desempenharia melhor este escopo.

Teubner (2003) aborda a teoria do pluralismo jurídico como sendo o único meio adequado para interpretar o direito global, que se distingue do direito tradicional dos Estados-nação, e já está amplamente configurado nos dias atuais, ainda que com pouco respaldo político e institucional no plano mundial, mas estreitamente atrelado a processos sociais e econômicos dos quais, segundo o autor, recebe seus impulsos mais essenciais.

A fragmentação característica do direito global, com suas múltiplas cadeias e ordenamentos legais constituídos a partir das interações dos espaços político, social e jurídico, não implica em uma ordem caótica. Ainda que autônomos, esses espaços, ao

se relacionarem, influenciam-se reciprocamente, embora não necessariamente com o mesmo peso ou poder de influência. Desta forma, cada um deles poderá, por determinado período, atuar como sinalizador, balizador, delimitador ou polarizador dos demais (FARIA, 2004: 163).

Apesar da fragmentação expressa pelos múltiplos microssistemas normativos, e ainda que a lei do Estado atue com diferentes intensidades nos variados espaços sociais, Tamanaha alerta que muito dificilmente ela será completamente irrelevante. A lei pública está em uma posição exclusiva, simbólica e institucional, que deriva da posição única do Estado, no plano nacional e internacional, na ordem política contemporânea. Além disso, os sistemas jurídicos oficiais do Estado, pelo menos os que funcionam de forma eficaz, tem uma distinta capacidade instrumental que lhes permite se envolver em uma ampla gama de atividades possíveis, e de exercer uma ampla quantidade de possíveis metas ou projetos, que se estendem muito além da regulação normativa (TAMANAHA, 2007: 411).

2.5 REFLEXOS DA TRANSNACIONALIZAÇÃO DOS MERCADOS NO DIREITO