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1.5 Restrições ao direito de propriedade

1.5.2 Direito de vizinhança

Os direitos de vizinhança constituem restrições, de ordem legal, sem prejuízo de outras de natureza voluntária, como as servidões. Não visam criar vantagens para nenhum prédio, mas apenas evitar prejuízo, enquanto as servidões criam vantagens para alguém.

Para San Tiago Dantas, constituem direitos reais inominados ou obrigações propter rem, preferindo todavia considerar os direitos de vizinhança direitos reais, já que a pretensa taxatividade dos direitos reais enumerados pelo Código Civil não impede o surgimento de novas relações dessa natureza e, ―como em todas elas existe um titular que espera de alguém um pati ou um facere,”94 esclarece que, entre os deveres jurídicos que podem dar origem às

91 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Reais, p. 207

92 ELIAS FILHO, Rubens Carmo. As despesas do condomínio edilício, p. 52-58.

93 Para Carlos Alberto Dabus Maluf (Limitações ao Direito de Propriedade, p.124) que as denomina de

limitações legais são as “expressas em leis especiais, em regulamentos administrativos e no próprio Código Civil”. Em leis especiais, encontram-se, entre outras, na: a) Lei de condomínio (Lei 4.591/64); Lei de parcelamento de solo (Lei 6.766/79); Lei do inquilinato (Lei 8.245/91); Estatuto da Terra (Lei 4.501/64); Lei de Falências (Dec. Lei 7.661/45): limitações do direito de propriedade do concordatário (artigos 149 a 167); Alienação Fiduciária de Garantia – propriedade resolúvel; Limitações pela Desapropriação – função social da propriedade; Limitações impostas pela preservação ao meio ambiente (Lei 6.938/81)

relações de vizinhança, os mais comuns seriam os deveres de tolerância, que consistiriam na obrigação imposta a um proprietário para que consinta que outros interfiram em sua esfera jurídica para realizar atos que ele estava em condições de repelir e os deveres de abstinência, que compreendem as privações impostas ao proprietário no seu poder de uso95.

1.5.2.1 Direito de Construir

Em consonância com a nova concepção de propriedade, o artigo 1.299 do Código Civil prevê que: ―O proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos‖. , ou seja, tem o proprietário o direito de dispor do que lhe pertence da forma como melhor lhe aprouver, no entanto,

Sofre restrições determinadas pela vizinhança e pelos regulamentos administrativos. As restrições da primeira categoria, em linhas gerais, acham-se expostas nos artigos imediatos do Código. As da segunda categoria são objeto de diplomas legais especiais, baixados pelo poder público competente, em todas as cidades bem dirigidas, dizendo respeito à segurança, forma, higiene e estrutura dos prédios96.

Logo, distinguem-se as restrições de vizinhança das administrativas, as primeiras atingem o direito de propriedade em sua substância, enquanto as segundas delimitam o uso da propriedade97, ―Ambas incidem sobre o mesmo objeto - a propriedade privada – mas com finalidades diversas: as restrições civis protegem especificamente os vizinhos – uti singuli; as limitações administrativas protegem genericamente a coletividade – uti univers‖98.

Há ainda as restrições voluntárias, instituídas tanto mediante imposições impostas pelo empreendedor de loteamentos urbanos tais como as restrições convencionais de loteamento99,

95 DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil III, p. 252

96 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas, p. 175. 97 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir, p. 36.

98 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. p. 633

99 VENOSA, Silvio de Salvo. Direitos Reais, p. 360. O artigo 45, da Lei 6.766/79 faculta até mesmo ao loteador

que já tiver vendido todos os lotes e aos vizinhos o direito de promover ação destinada a impedir a construção em desacordo com restrições legais e contratuais. A este respeito, recomenda-se a leitura de José Rogério Cruz e Tucci, Restrições ao Direito de Construir: Novas Perspectivas, in Revista do Advogado nº 63,

como também aquelas delimitadas pelas Convenções Condominiais, especialmente para condomínios edificados no horizontal, por exemplo, os villages e demais condomínios de casas.

Na seara condominial, merece igualmente relevo o disposto no artigo 1.313, inciso I e § 1º, do Código Civil, ou seja, o dever de o proprietário tolerar que o vizinho entre em seu imóvel, mediante aviso prévio, para:

I – dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório; [...] § 1º. O disposto neste artigo aplica-se aos casos de limpeza ou reparação de esgotos, goteiras, aparelhos higiênicos, poços e nascentes e ao aparo de cerca viva.

Isto porque, costumeiramente, os condôminos precisam autorizar o ingresso em seus imóveis de encanadores, eletricistas, técnicos de empresas de televisão a cabo, entre outros profissionais para facilitar a realização de serviços e reparos nos apartamentos vizinhos, localizados no mesmo piso, no piso superior e inferior, sendo defeso impedir tal ingresso por violação ao direito de vizinhança e das próprias normas convencionais que usualmente estabelecem tal obrigação aos condôminos.

Muito relevantes também as restrições ao direito de construir previstas no artigo 1.301 do Código Civil, que veda a abertura de ―janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de metro e meio do terreno vizinho‖. , com repercussão no direito à intimidade, como salienta Gilberto Haddad Jabur: ―São abstenções que, longe de criar vantagens para este ou aquele prédio, tendem a obstar a devassa na intimidade, que estaria parcial e circunstancialmente comprometida, ante a proximidade em que permaneceriam as construções‖100.

Direito Imobiliário, págs. 19-2 e Hélio Lobo Junior, As restrições urbanísticas no parcelamento do solo urbano e o Registro de Imóveis, in Revista do Advogado nº 90, Direito Imobiliário e Registral, p. 62-70.

1.5.2.2 Uso anormal da propriedade

Prevê o artigo 1.277 do Código Civil que:

O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização da propriedade vizinha.

Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.

Como ensina Arnaldo Rizzardo:

Os direitos de vizinhança importam necessariamente em restrições ao direito de propriedade. O direito de uma pessoa exercer sua propriedade deve ter em conta o direito de outra pessoa também usufruir de seu bem. Por outras palavras, o aproveitamento da propriedade por alguém encontra limites no mesmo aproveitamento de seu vizinho101.

E este dever de não importunar os vizinhos independe de acordo de vontades ou do direito de servidão, são, na realidade, simples aspectos dos deveres inerentes à propriedade, impostas pela boa convivência social, que se inspira na lealdade e boa-fé.

A propriedade deve ser usada de tal maneira que torne possível a coexistência social. Se assim não se procedesse, se os proprietários pudessem invocar uns contra os outros seu direito absoluto e ilimitado, não poderiam praticar qualquer direito, pois as propriedades se aniquilariam no entrechoque de suas várias faculdades102.

São defesos, consequentemente, atos de uso e fruição da propriedade que violem a sua normal utilização, levando em consideração as normas urbanísticas aplicáveis e os limites ordinários de tolerância, ou seja, atos que excedam aos limites do razoável, da normalidade, observadas as normas aplicáveis, tanto com relação às perturbações sonoras, quanto aos riscos de segurança e saúde. ―Em suma, tudo quanto possa, de modo geral, afetar a segurança, o sossego e a saúde dos vizinhos representa uso nocivo da propriedade.103.

101 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas, p. 479.

102 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas, p. 145. 103 Ibidem, p. 146.

Obviamente que a definição do critério de normalidade, quando inexistirem limites legais predeterminados, esbarra na subjetividade que dependerá do critério íntimo do juiz para a sua aferição e a determinação, se for o caso, de cessação da atividade considerada nociva ou até fixação de indenização.

O uso anormal da propriedade equivale ao uso abusivo e intolerável, visto que aquilo que esteja dentro dos níveis de normalidade deve ser tolerado pelo vizinho. Por exemplo, é razoável e tolerável o volume alto em dias festivos, em aniversários, mas não o é se ocorrer todos os dias, prejudicando o descanso dos vizinhos. Por outro lado, diferente será caso a localidade da propriedade seja própria para a instalação de uma casa de shows e esta tiver tomado todas as precauções previstas nas normas administrativas aplicáveis, hipótese em que o vizinho, provavelmente, terá que tolerar o incômodo104.

Interessante também a questão colocada por Maria Helena Diniz ao tratar da pré- ocupação do imóvel a exigir uma tolerância maior daquele que chega posteriormente e se sente incomodado com as interferências, ―a anterioridade da ocupação não tem o condão de paralisar toda propriedade nova, sujeitando o que chega posteriormente a se conformar com tudo, hipótese em que se teria uma servidão e não restrição aos jura vicinatis”105., sendo o verdadeiro desafio compatibilizar os interesses particulares de sossego, consoante as lições de Marco Aurélio Bezerra de Melo:

Como se depreende da análise legal a intenção do legislador foi a de deixar bem claro que a solução dos conflitos será obtida segundo as circunstâncias do caso concreto. Sem dúvida, há que se reconhecer diferenças importantes no julgamento de uma ação de dano infecto em uma zona rural ou urbana para fins exclusivos de moradia com uma demanda que gire em torno do

104 Neste sentido, exemplifica Marcelo Benacchio: ―[...] o hábito de arrastar móveis durante a madrugada, como

julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, configura uso anormal da propriedade. [...], a avaliação do uso normal da propriedade também encerra questões de lugar, assim, o canto de um galo no meio urbano, por sua frequência, encerra uso anormal da propriedade, todavia, em meio rural há uso normal e, portanto, tolerável.

A criação de um cachorro de estimação de pequeno porte em um apartamento deve ser tolerada pelos condôminos, o que não acontece com oito cachorros e dezoito gatos em área residencial urbana por força de questões de sossego, higiene e segurança‖. (Responsabilidade civil no Direito de Vizinhança decorrente da Cláusula Geral do Uso Anormal da Propriedade, in Direito Imobiliário Brasileiro, p. 383).

105 DINIZ, Maria Helena. Direito das Coisas, p. 235; Carlos Alberto Dabus Maluf sintetiza numa fórmula a

doutrina sobre as limitações do direito de propriedade derivadas da vizinhança: “Aquele que não usa de sua propriedade de modo ordinário, segundo as condições normais da situação do imóvel, do tempo e do lugar, mas antes procede com abuso do seu direito, sem proveito próprio sério e legítimo, com mero intuito malévolo, ou por espírito de chicana, bem assim aquele que cria um risco novo, exercendo uma atividade legítima, mas nociva a terceiros, será responsável pelos danos que produzir a estes e às coisas destes‖. (Limitações ao Direito de Propriedade, p. 47).

interesse de morador(es) de uma zona de baixo meretrício, de grande exploração industrial ou, ainda, de localidade predominantemente comercial106.