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As obrigações propter rem, segundo os ensinamentos de Henrique Mesquita, trazidos por José Eduardo Costa:

São vínculos jurídicos mediante os quais o titular de um direito real fica obrigado para com outra pessoa à realização de uma prestação de dar ou de fazer. Trata-se de uma obrigação inserida nos quadros de um instituto de direito real, de acordo com a qual o titular do direito tem o dever jurídico de executar uma prestação de dar ou fazer107.

A atormentada diferenciação entre o direito real e o pessoal deu origem às obrigações propter rem, como destaca San Tiago Dantas, em sua consagrada monografia dedicada aos direitos de vizinhança, tratando-se de um artifício jurídico, para qualificar certas figuras ambíguas que tenham características tanto dos direitos reais como dos direitos pessoais108.

Ainda que as pesquisas a respeito do tema não tenham permitido precisar a sua natureza jurídica, situando-a em uma zona cinzenta, trazendo a necessidade de criar uma figura mista, uma categoria jurídica autônoma109, que não se enquadra na seara dos direitos reais, tampouco na dos direitos obrigacionais, a verdade é que, como realça Paulo Carneiro Maia, ―possibilita resolver conflitos de direitos que pesam sobre o devedor de uma coisa por esta sua simples qualidade‖110.

Alberto Trabucchi111 assim definiu as obrigações propter rem:

106 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das Coisas, p. 191/2.

107 COSTA, José Eduardo. A responsabilidade pelas despesas e tributos imobiliários e as obrigações propter

rem, in Direito Imobiliário Brasileiro, p. 426.

108 MAIA, Paulo Carneiro. Obrigações propter rem, RT 315- 455, jan/1962.

109 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral das Obrigações, p. 14 110 MAIA, Paulo Carneiro. Obrigações propter rem, RT 315-455, jan/1962.

111 TRABUCCHI, Alberto. Istituizoni di Diritto Civile, p. 555. “Quando la persona dell‟uno o dell‟altro

soggetto dell‟obbligazione sia mutevole, si parla di obbligazione ambulatorie. L‟ambulatorietà si deve intendere nel senso che la titolarità del rapporto dipende dalla titolarità di un altro rapporto, e quindi la stessa titolarità del rapporto di cui si tratta muta con il mutare dei soggetti del rapporto cui ci si riferisce”. Tra le obbligazioni con soggetti mediamente determinati vanno ricordate le obbligazioni reali, propter rem o ob

rem, nelle quali la persona del debitore può mutare (ambulatorietà passiva) in dipendenza del rapporto di proprietà o possesso che viene a esistere tra il soggetto e una determinata cosa‖. (tradução livre do autor)

Quando a pessoa de um ou de outro sujeito da obrigação se altera se fala de obrigação ambulatória.

A ambulatoriedade deve ser entendida no senso que a titularidade da relação depende da titularidade de outra relação, e, assim, a mesma titularidade da relação da qual se trata, muda com a mutação dos sujeitos da relação sobre a qual se havia referido.

Entre as obrigações com sujeitos mediamente determinados, vamos recordar as obrigações reais, propter rem ou ob rem, nas quais a pessoa do devedor pode mudar (ambulatoriedade passiva) dependendo da relação de propriedade ou posse que vem a existir entre o sujeito e uma determina coisa.

Serpa Lopes112, por sua vez, caracteriza-as da seguinte forma:

Certos ônus reais vivem acessoriamente presos às relações obrigacionais, estas figurando como um elemento principal; outros casos surgem, como no título ao portador, em que o direito de obrigação se incorpora em um documento transmissível, consoante os modos e regras inerentes à propriedade. As obrigações propter rem apresentam esse efeito especial. Como a própria denominação o indica, são obrigações cuja força vinculante se manifesta, tendo em vista a situação do devedor em face da sua situação jurídica de titular do domínio ou de uma relação possessória sobre uma determinada coisa, que é a base desse débito. Apresenta-se, em linhas gerais, com aquela mesma face que resulta do direito de retenção, sob este aspecto, isto é, o direito de retenção tem por pressuposto um debita cum re juncta, embora, sob outros pontos de vista, radicais sejam as diferenças. Nas obrigações propter rem, o devedor é determinado de acordo com a relação que o mesmo possua em face de uma coisa (propriedade ou detenção), que é conexa com o débito. Tais obrigações nascem, assim, da posse da coisa, sendo transmissíveis ainda que a título particular, a quem quer que, mesmo

invito creditore, exerça a posse do imóvel, causa da obrigação.

A transmissibilidade da obrigação, em decorrência da titularidadde do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo ou posse sobre o imóvel constitui característica relevantíssima das obrigações propter rem, na medida em que a modificação subjetiva da relação jurídica, viabilizará a sua exigibilidade do sucessor, garantindo ao credor alcançar o resultado pretendido113.

Cumpre, porém, salientar, que as obrigações propter rem são consideradas114, assim como os direitos reais, taxativas, de modo que a autonomia privada não seria apta a criar obrigações desta natureza, quando não estabelecidas por lei, até porque não se justificaria,

112 Curso de Direito Civil, Obrigações em geral, vol.II, p. 46-47. Não é outro o entendimento de Beatriz Areán,

Derechos Reales, vol. 1, p. 60.

113 AGUILAR CORTEZ, Antonio Celso. Obrigações “Propter Rem” (visão contemporânea), p.37. 114 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas, p. 129; GOMES, Orlando. Obrigações, p. 22.

senão em virtude de lei, a compulsória transmissão de obrigação de titular antecedente115, sem prejuízo de se convencionarem as condições dessas decorrentes116.

Tem-se decidido, inclusive, que a obrigação de reparação ambiental é propter rem e a responsabilidade dela decorrente é atribuída ao proprietário, acompanhando a coisa e transmitindo-se ao proprietário atual, mesmo que não seja o causador do dano117, flexibilizando o nexo causal, para proteção ao meio ambiente, ―ao responsabilizar o titular da propriedade independentemente de um nexo entre a sua conduta e o dano provocado‖118.

A este respeito, o Superior Tribunal de Justiça, em lapidar acórdão da lavra do eminente Ministro Herman Benjamin, trouxe importante lição sobre as restrições convencionais do loteamento, como estipulação contratual em favor de terceiro de natureza propter rem que levou a paralisação de obra de prédio residencial, porque

As restrições urbanísticas-ambientais, ao denotarem, a um só tempo, interesse público e interesse privado, atrelados simbioticamente, incorporam uma natureza propter rem no que se refere à sua relação com o imóvel e aos seus efeitos sobre os não-contratantes, uma verdadeira estipulação em favor de terceiros (individual ou coletivamente falando), sem que os proprietários-

115―PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS - Fornecimento de água e tratamento de esgoto - Serviços usufruídos por ex-

ocupantes ou primitivos proprietários do imóvel e objeto de cobrança administrativa em relação ao atual titular de seu domínio - Cobrança pleiteada com apoio no § 2o do artigo 19 do Decreto Estadual n° 41.446/96 que qualifica a obrigação como sendo de natureza propter rem - Matéria, contudo, privativa do legislador federal, posto que versa sobre a criação de nova figura de natureza propter rem, por força do art 22, inciso I da Constituição Federal - Ação principal e cautelar julgadas procedentes - Sentenças mantidas - Recurso improvido.‖ (TJ/SP,Apelação com Revisão n° 99 7.8 73-0/0, Rel. Des. Antonio Maria, j. 24.11.2009.)

116 Nas lições de José de Oliveira Ascensão: ―Os particulares serão os melhores juízes do próprio interesse: eles

saberão moldar a norma ao caso concreto, inventando as formas de interpenetração dos direitos, capazes de obter um rendimento máximo. A lei reconheceu aliás esta verdade, uma vez que elencou os direitos reais, mas não os tipificou; que proibiu a introdução de novas figuras, mas admitiu que o conteúdo das figuras possíveis fosse regulado pelo título constitutivo.‖ (As relações jurídicas reais, p. 355).

117―A obrigação de recompor o meio ambiente tem sólido fundamento constitucional e legal; a obrigação é

considerada 'propter rem', acompanha a coisa e é transmitida ao proprietário atual, ainda que não tenha ele sido o causador do dano. A obrigação tem vários fundamentos. Um, de ordem legal, foi visto acima. Outro de ordem prática, uma vez que apenas o proprietário atual pode recompor o meio ambiente, já que dele é o domínio e a posse do bem. Outro mais amplo que ultrapassa a questão legal, bem expresso pelo Desembargador Renato Nalini no caso Ministério Público vs Canagril - Cana Agrícola Ltda, AC n° 397.682.5/1-00 (que cuidou da queima da palha da cana-de-açúcar por ocasião da colheita), e que lembra o dever das gerações presentes de preservar o meio ambiente para as gerações futuras.‖ (Apelação nº 994.06.166690-5, Câmara reservada ao Meio Ambiente. Des. Rel. Torres de Carvalho. Julgado em 04/12/2010) (sem destaques no original) ―A moderna visão do Direito Ambiental não colide com o mais dogmático positivismo Pois a Reserva Legal tem natureza de obrigação propter rem e adere ao domínio e ao título, (...)‖ (Apelação Cível nº 402.646-5/7-00, Câmara Especial do Meio Ambiente. Rel. Des. Renato Nalini. Julgado em 29/06/06).

118 BETIOL, Luciana Stocco. Aspectos da Responsabilidade Civil Ambiental aplicada ao Direito Imobiliário, p.

sucessores e o próprio empreendedor imobiliário original percam o poder e a legitimidade de fazer respeitá-las. Nelas, a sábia e prudente voz contratual do passado é preservada, em genuíno consenso intergeracional que antecipa os valores urbanísticos-ambientais do presente e veicula as expectativas imaginadas das gerações vindouras119.

As despesas condominiais são igualmente consideradas obrigações propter rem, consoante as lições de João Batista Lopes120:

Precisamente em razão das peculiaridades desse novo direito real, seu regime jurídico não pode ser explicado simplesmente pelas normas que regem os direitos pessoais, nem também pelas regras gerais dos direitos reais.

À luz dessas considerações, é lícito concluir-se que as despesas de condomínio melhor se ajustam ao tertium genus das obrigações propter rem, cujo perfil é diverso das obrigações reais e das pessoais.

Da mesma forma, identificar as condições previstas na Convenção de Condomínio, no Regulamento Interno ou ainda, em Assembleias Gerais regularmente convocadas e cujas deliberações sejam aprovadas, com observância do quorum legal, como obrigações propter rem, contribui para a manutenção do condomínio e a própria transmissão das obrigações aos futuros adquirentes ou ocupantes das unidades autônomas, a qualquer título.

De nada adiantaria o estabelecimento de certas normas no ambiente condominial, instituídas em decorrência do exercício do direito de propriedade, caso estas servissem apenas àqueles condôminos que tivessem subscrito a convenção, sendo relevantíssimo que tais normas sejam oponíveis contra todos, o que decorre do próprio texto de lei, sendo certo que, em decorrência de tal previsão legal121, as obrigações são transmitidas aos adquirentes, sucessores, ocupantes e até mesmo aos prestadores de serviços, disseminando as normas de maneira a garantir o bom funcionamento das áreas e serviços comuns122.

119 STJ, 2ª Turma, Resp nº 302.906/SP, rel. Min. BENJAMIN, Herman. j. 26.8.2010. 120 LOPES, João Batista.. Natureza propter rem das despesas de condomínio, p. 258.

121 A convenção de condomínio, desde que registrada, será oponível contra todos, como disposto no artigo 1333,

Parágrafo único, do Código Civil.

122 Como afirma, pragmaticamente, Ênio Santarelli Zuliani, após corroborar a natureza de obrigação propter rem

das normas insertas na convenções de condomínio: ―O que importa é que, sendo ato ou regra com poder de lei ou obrigação a ser cumprida pela vinculação ao direito de propriedade, cabe respeitá-la para impor uma diretriz administrativa e de comando civil, estabelecendo o controle de conduta que concilia a convivência das pessoas de diversos níveis sociais, cada qual com seus hobbys e todos de temperamento heterogêneo.‖ (Condomínio Edilício – Aspectos Controvertidos, p. 397).

As hipóteses de obrigações propter rem são distinguidas entre as meramente legais, como a obrigação do proprietário do prédio confinante de concorrer para as despesas de construção do muro divisório, daquelas em que há autorização legal para o estabelecimento voluntário de tais relações jurídicas de caráter misto, como as decorrentes da convenção de condomínio, situações em que existirá a modelação do conteúdo e exercício do direito de propriedade123.

Nas convenções de condomínio, verifica-se a incidência da autonomia da vontade no campo dos direitos reais, sem que isso implique modificação do conteúdo do direito real ou violação do princípio do numerus clausus, mas sua adequação ao caso em concreto, instituindo consideráveis restrições ao exercício do direito de propriedade, por intermédio de obrigação propter rem.

Por meio das normas insertas na convenção de condomínio, condomínios de casas, por exemplo, instituem limites construtivos e padrões estéticos, entre tantas outras restrições, cuja validade, consoante as precisas lições de André Pinto da Rocha Osório Gondinho, decorre de

Um critério seguro de legitimidade no bem-estar da comunidade condominial. As restrições convencionais à propriedade do titular da unidade autônoma, mediante a constituição de obrigações propter rem pela convenção condominial, só se justificam quando correspondem à necessidade de se evitar conflitos de interesse entre os titulares dos direitos reais correlacionados, como, por exemplo, aqueles decorrentes do mau uso da propriedade, nas relações de vizinhança. Assim é que quaisquer outras formas de restrição, não relacionadas às normas de boa vizinhança e paz condominial, configuraram ofensa ao exercício lícito do direito de propriedade124.

123 GONDINHO, André Pinto da Rocha Osório. Direitos Reais e Autonomia da Vontade, p.125. 124 Ibidem, p. 131.