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No Brasil, até o final do século XIX, foram raras as tentativas de editar publicações exclusivamente voltadas ao público infantil; as poucas experiências isoladas tiveram duração curta e alcance restrito, como é o caso, por exemplo, do Jornal da Infância 20. Nas primeiras décadas do século XX havia opções raras de leitura para crianças, constatação que motivou um grupo de intelectuais formado pelo historiador Manuel Bonfim21, pelo jornalista Renato de Castro,pelo poeta Cardoso Júnior, entre outros, a buscar condições para publicar uma revista voltada à criança brasileira, contribuindo para a informação e a formação desse público específico. A proposta do grupo era publicar uma leitura “recreativa”, “divertida”, que, ao mesmo tempo, estabelecesse vínculos com a educação escolar. A imprensa, como veículo de comunicação,chamaria para si a tarefa de prestar auxílio à educação.

Em 1905, no Rio de Janeiro, a editora O Malho publicara o semanário22 O Tico- Tico, primeira revista infantil de quadrinhos do Brasil e das Américas, inicialmente concebida para os meninos. Conforme analisam Lajolo e Zilberman (1985), o surgimento da revista O Tico-Tico se daria num momento propício para o aparecimento da literatura infantil, já que a acelerada urbanização ocorrida entre o fim do século XIX e o começo do XX trouxera às massas urbanas diferentes públicos para diferentes tipos de publicações: revistas femininas, romances, material escolar e livros infantis, por exemplo.

A cultura escolar do final do Oitocentos brasileiro fora construída num tempo de intensa circulação de pessoas, objetos e modelos culturais, dos quais podemos destacar, por exemplo, apropriações e ressignificações do sistema educacional francês (VIDAL, 2005). Ao longo desse período, o Brasil passava por um processo de reelaboração do conceito de identidade nacional na literatura, optando por outros modelos que não o colonial luso e

20O Jornal da Infância, editado no Rio de Janeiro, circulou de fevereiro a junho de 1898 e dele existem

apenas 20 exemplares. A coleção encontra-se na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

21Manoel Bonfim (1868-1932) fez inúmeras reflexões sobre os problemas brasileiros, num período em que

intelectuais higienistas discutiam a modernização do país e do povo, considerado “atrasado”, sobretudo a partir do ponto de vista racial. O historiador era contrário ao determinismo racial e favorável ao intervencionismo do Estado no campo da saúde e da educação (Gois Junior, 2014).

ibérico. As relações político-culturais entre o Brasil e a França se tornariam, a partir de então, cada vez mais estreitas (BAREL, 2002).

O aparecimento de O Tico-Tico ocorreu em um momento de defesa da oficialização da instrução e do ensino elementar obrigatório. Ao intencionar a publicação de uma revista infantil no início do século XX, os editores inspiraram-se, durante muito tempo, em revistas de quadrinhos francesas, como Le Petit Journal Illustré de la Jeunesse (1904-1910) 23. A pesquisa de Cardoso (2008) descreve como a cultura francesa teria influenciado jornalistas brasileiros, num momento em que as revistas em quadrinhos publicadas na França ocupavam um lugar de destaque no cenário mundial.

É preciso ficar claro que O Tico-Tico, diferente do pássaro que lhe deu o nome, era uma ave de rapina que, até próximo ao fim de sua vida, em certas fases, raptou matéria de todos os tipos, não só quadrinhos como textos e ilustrações de publicações francesas, americanas, inglesas, alemãs, italianas e grandes magazines internacionais que circulavam durante a I Guerra Mundial. Os redatores preocupavam-se em manter a qualidade procurada e alcançada desde o início (CARDOSO, 2008, p. 13).

As transformações pelas quais a sociedade passou entre o final do século XIX e o início do século XX fizeram da escola palco de discursos de intelectuais que ambicionavam o progresso, a ordem e a civilidade. As concepções médico-higienistas que nortearam o programa escolar tinham como eixo um projeto direcionado para a construção da nação, a modernização do País e a moralização do povo. Os conteúdos científicos, por sua vez, seriam definidos em função do que correspondesse ao princípio de uma educação integral e em conformidade ao que se atestava nos países mais civilizados (ROCHA, 2000; SOUZA, 2000).

A construção de um homem novo, regenerado e que constituiria o centro da criação de uma nova sociedade seria parte de um projeto burguês de civilidade. A Educação Física, tendo por base as ciências biológicas e a moral burguesa, seria utilizada como instrumento para aprimorar um corpo saudável e disciplinado. Esse pensamento positivista, expresso no Brasil, sobretudo, por Rui Barbosa e Fernando de Azevedo, se tornaria determinante nas primeiras décadas do século XX (SOARES, 1994).

23 Muitos desenhos e capas eram copiados com papel de seda de revistas francesas,e as assinaturas dos

ilustradores eram apagadas. O nome de Benjamin Rabier, famoso desenhista francês, aparecia em muitas ilustrações d’O Tico-Tico.

Nos anos de 1930, O Tico-Tico despertou interesse de professores e autoridades públicas, com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932). O diálogo com a escola se evidenciou, por exemplo, em promoções e concursos feitos pelos editores da revista e entidades públicas, tal como este, promovido pelo Departamento de Educação do Distrito Federal: “Grandes Vultos do Brasil”, em 1939. O concurso chamava as escolas para participarem de uma coletânea de “notáveis” personagens brasileiros publicados no Tico- Tico. Aos alunos que completassem as figuras seriam concedidos muitos prêmios, dentre os quais – e o mais importante –, a matrícula por cinco anos no curso fundamental do Ginásio Paraisense de Minas Gerais, uma instituição considerada modelar (ROSA, 2002, p. 160).

Na década de 1950, os passatempos e os desafios trazidos pelo O Tico-Tico foram incorporados também aos materiais didáticos usados em sala de aula, pois eram considerados estimuladores da argúcia das crianças. Professores colaboraram com a revista, elaborando passatempos, histórias, lições e poesias para recitar, como as de Leonor Posada e de Ofélia e Narbal Fontes, por exemplo. A frequente presença de poesias nas revistas infantis ajudou a transmitir valores às crianças e lições de bom comportamento.

Quando analisam a literatura infantil brasileira, Lajolo e Zilberman (1985) lembram que, até a década de 1960, a poesia infantil tinha um compromisso com a pedagogia e ainda era marcada pelo conservadorismo formal, guardando resquícios parnasianos. Versos de Olavo Bilac e Francisca Júlia compunham esse compromisso pedagógico da poesia brasileira. “A crença no poder comunicativo dos versos é tão forte que, ao longo da tradição da poesia infantil brasileira, valores ideológicos emergentes foram sempre confiados à força persuasória de poemas” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985, p. 146).

A idealização da criança branca, leitora, saudável, em idade escolar, caridosa e patriota era apresentada na revista,em contraste com a criança pobre, geralmente negra, que supostamente não se dedicava aos estudos e não vislumbraria um futuro profissional. Em inúmeras histórias,

aqueles que não eram alfabetizados sofriam humilhações, prejuízos e perdas, traduzidas como “castigo” por não frequentarem a escola e não quererem estudar. Havia um pressuposto de que todos tinham acesso à escola, mas que só uns aproveitavam a oportunidade, outros não. Ora, na realidade, a demanda social, em termos de ensino básico, nunca foi atendida plenamente (ROSA, 2002, p. 126).

Ao analisar a relação entre as mudanças socioeconômicas da década de 1950, o crescimento da população de 7 a 12 anos no Brasil e a expansão do ensino primário, Romanelli (2001, p. 79) percebe que a expansão da escolaridade ultrapassou o índice de crescimento populacional: a população brasileira em 1950 era de 51.944.397 habitantes, sendo 50% dela ainda analfabeta. Em 1960, o número de habitantes do País aumentaria para 70.119.071, e o índice de analfabetismo decairia para 39,5%, fato que sugere um esforço da sociedade pela escolarização, malgrado as deficiências quantitativas ainda acentuadas.

Estariam as revistas infantis da editora O Malho imbuídas desse esforço pela escolarização? Os editores, tendo em vista uma demanda para a alfabetização, intencionavam produzir um material que também fosse vendável à escola? É possível visualizar, em diversos exemplares, uma publicidade que destaca aos leitores os benefícios pedagógicos das revistas:

As três revistas “O TICO-TICO”, “TIQUINHO” e “PINGUINHO” constituem, com “CIRANDINHA”, a melhor e mais sadia “equipe” da imprensa infantil da capital do país. Pais e professores são unânimes em lhes fazer o permanente elogio (CIRANDINHA, ano IV, n. 39, jun. 1954, p. 18).

Páginas rigorosamente cuidadas, onde os pequenos leitores encontram divertimento e sadias lições e onde os professores deparam excelente material utilizável nas suas classes (CIRANDINHA, ano III, n. 30, set. 1953).

“O TICO-TICO” é a revista ideal para o rapaz ou a menina estudante, pelos ensinamentos que contém em suas páginas, já até certo ponto desenvolvidos. “TIQUINHO” é a revista lindamente colorida, para deleite da criançada que não sabe ler mas gosta de bonitos desenhos.

“PINGUINHO” é a nova revista quinzenal, de orientação sadia e que oferece material didático às senhoras professoras, despertando nos pequeninos o gosto pelas letras (CIRANDINHA, ano IV, n. 41, ago. 1954, p. 28).

Em exemplares d’O Tico-Tico publicados nos períodos que correspondiam às férias escolares, é possível observar, nos editorais, conselhos que reforçavam a necessidade de não abandonar as práticas de estudo. Nesse período de descanso, as crianças deveriam aproveitar para ler livros, repassar a matéria e organizar os cadernos de pontos: “Este intervalo no meio do ano letivo, agora no mês de julho, não deve ser encarado como um período de vadiação, em que os livros sejam encerrados nas gavetas e estantes. O menino

que fizer isto cometerá erro grave, do qual poderão advir desastrosas consequências” (O TICO-TICO, ano XLVII, n. 2000, jul. 1952, p. 3).

O intuito da revista, ao valorizar a imagem de uma criança estudiosa, também era vender materiais para que seus leitores tivessem êxito na escola e se distinguissem dos demais pela inteligência e pela boa organização.

A boa ordem impõe que a estudante possua o seu arquivo, o seu fichário para consultas necessárias. Por isso é de grande oportunidade o Fichário do Estudioso que “O TICO-TICO” está oferecendo, com retratos e legendas, aos seus leitores. Magnífica série de fichas ilustradas para coleção, eis o que é a novidade lançada

pela querida revista dos que estudam (CIRANDINHA, ano IV, n. 43, out. 1954,

p. 16, grifos nossos).

Na edição comemorativa do cinquentenário d’O Tico-Tico, em 1955, são descritos inúmeros depoimentos de adultos que tiveram a revista como companheira na infância, e, possivelmente, pessoas que seguiram seus conselhos e obtiveram êxito nos estudos, como este de Celso Kelly, então membro do Conselho Nacional de Educação e professor da Faculdade Nacional de Filosofia:

Tenho d’O TICO-TICO reminiscências de criança: foi a primeira letra de forma, entre ilustrações alegres e felizes, que tive oportunidade de ver. A esse tempo, creio que era a única revista infantil. Seus personagens entraram no mundo dos pequeninos, quase como seres reais, que conviviam conosco. Passados muitos anos, olho para “O TICO-TICO” com a mesma simpatia: já agora, é o meu interesse pelas coisas da educação, dentre elas pela literatura infantil, que me leva a considerar esta revista como uma das mais adequadas à idade, mantendo para com ela a propriedade de certos atributos: a travessura ingênua, os bons sentimentos, a pureza de atitudes, em meio a todas as inquietações das crianças. Seu cinquentenário é, pois, uma data da imprensa e da literatura infantil (O TICO-TICO, out. 1955, p. 7).

Em geral, as imagens de heróis e depoimentos de grupos sociais privilegiados eram exaltados como exemplos de sucesso, afeição e beleza. Nas revistas infantis e adultas analisadas nesta pesquisa, observamos alusões aos modos de vida europeu e norte- americano, referências para a construção de um homem novo e de um país civilizado 24. A infância, desse modo, estava sintonizada com esses mesmos padrões sociais adultos, e as crianças destas revistas infantis eram definidas como “distintas e de bom-gosto”, felizes,

24 É possível, por exemplo, visualizarmos na revista de costura “Jornal da Mulher” inúmeras fotos que

destacavam figurinos publicados em revistas de moda de Paris e de Nova Iorque. Essas imagens compunham um ideal de aparência e estimulavam a costura de roupas consideradas elegantes e distintas.

comportadas, inteligentes, estudiosas, sadias e limpas, elementos que as destacariam como membros de uma vida urbana e escolarizada.