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Um olhar para o vestuário infantil presente nas revistas O Tico-Tico e Cirandinha pode nos ajudar a compreender os gostos e os comportamentos afirmados às crianças. Não se trata de evidenciar se estas agiam e se vestiam de acordo com o que as publicações

mostravam, mas de perceber os discursos e os modos como as crianças eram retratadas nas revistas a elas destinadas. Trata-se, portanto, de tentar apreender uma educação dos sujeitos infantis, refletindo, conforme sugere Soares (2011, p.128, grifos da autora), que

como parte da educação do corpo e expressando de modo profundo a sensibilidade de cada época, as roupas dizem do sujeito profundo, elas compõem os estereótipos, condenam e absolvem indivíduos e grupos, sublinham e apagam pertencimentos. Em sua banalidade, constroem e também revelam as espessuras mais profundas de indivíduos e sociedades.

Assim, poderemos entender as sensibilidades de uma época e os distintivos eleitos para classificar os indivíduos em grupos sociais diferenciados. No que se refere à sensibilidade de uma época, seria possível afirmar que se trata do que é o mais difícil de captar, o mais complexo para se narrar. Como descrever os sentimentos, as sensações, as emoções de um dado fato vivido? Como narrar as sensações de dor e prazer, de conforto e desconforto, causadas por um alimento, uma temperatura de uma dada estação do ano, um ambiente, uma roupa ou um calçado?

No que diz respeito à roupa infantil, podemos perceber seu lugar em discursos que salientavam a importância do asseio e da vida saudável em frases como: não trajar roupas molhadas ou úmidas, manter o cuidado com os sapatos, usar sempre roupa limpa – mesmo que remendada –, cuidar do vestuário para evitar gastos supérfluos à família, dormir e levantar cedo, fazer exercícios físicos moderados e ingerir vegetais. Estes ideais eram perceptíveis nas aparências dos diversos personagens ilustrados em O Tico-Tico, tais como Chiquinho, Reco-Reco, Bolão e Azeitona, garotos que normalmente apareciam com cabelos arrumados, gravata, camisa por dentro da bermuda, meias e calçados nos pés.

No exemplar da revista O Tico-Tico de setembro de 1951, encontramos a seção “Gavetinha do Saber”, cujo intuito é apresentar dicas e curiosidades às crianças. Uma delas diz respeito aos cuidados com os calçados: “Quando molhamos os sapatos a ponto de ficarem encharcados, é bom processo enchê-los de grãos de milho. Os grãos absorvem a umidade e vão inchando, com o que os sapatos se conservam em perfeita forma, sem enrugar” (O TICO-TICO, ano XLVI, n. 1.990, set. 1951, p. 9).

Nas inúmeras páginas das revistas, podemos observar que as crianças são sempre ilustradas com calçados nos pés, seguindo as exigências do asseio em diversos momentos,

como os da brincadeira. Poderíamos pensar, desse modo, tanto no prestígio de usar calçados numa época em que poucas crianças o faziam continuamente, quanto também em seu uso sempre em perfeita forma e sem rugas, mesmo depois de uma chuva, por exemplo.

As propagandas de calçados nas revistas eram constantes e evidenciavam a necessidade de uma aparência mais refinada, condizente com a da criança séria e inteligente. Em diversos números da revista, encontramos o anúncio da sapataria “Insinuante”, a loja que, como o próprio nome sugere, quer fazer-se percebida e distinta entre as crianças mais favorecidas economicamente.

Figura 23 – Publicidade da loja Insinuante -1949

Fonte: Almanaque d’O Tico-Tico, 1949, p. 18

Figura 24 – Publicidade da loja Insinuante -1951

Figura 25 – Publicidade da loja Insinuante –1953

Fonte: Almanaque d’O Tico-Tico, 1953, p. 5

Figura 26 – Publicidade da loja Insinuante -1955

Fonte: O Tico-Tico, Edição do Cinquentenário, out. 1955, p. 44

Os editores d’O Tico-Tico, nos primeiros números da revista, não veicularam anúncios, temendo que estes afetassem o objetivo educacional proposto. Porém logo se viram pressionados a fazê-lo, tal como a revista O Malho 33. Naquele contexto, o papel da publicidade, além de atender aos interesses financeiros dos comerciantes, seria de orientar as famílias “quanto à saúde, à higiene, à alimentação, ao vestuário, ao lazer e à leitura das crianças, inserindo muitas vezes histórias e depoimentos de adultos sobre os méritos e as qualidades de determinado produto” (ROSA, 2002, p. 36).

33Brites (2000b) analisa que o espaço reservado à publicidade na imprensa ainda era limitado no século XIX.

Com o crescimento da cidade e de seu comércio, principalmente a partir das últimas décadas do século XIX, ocorreu uma maior popularização dessa linguagem e da imprensa, atingindo diferentes grupos sociais. A propaganda desse período sofria certa rejeição pela cultura letrada, principalmente das revistas acadêmicas, que a princípio negavam a seriedade das produções as quais continham publicidade. Houve, assim, um amplo debate sobre a presença de anúncios nas revistas infantis da editora O Malho. Esta, para defender o argumento de que a publicidade não ocupava o lugar das histórias e de outros conteúdos, acrescentou mais páginas na revista. Passada uma década do surgimento d’O Tico-Tico, suas páginas traziam, em meio às histórias, marcas de xaropes, sabonetes, tônicos, doces, calçados, roupas e cigarros, por exemplo. Ver Brites (2000b) e Rosa (2002).

As revistas infantis analisadas abrigariam essa publicidade, que atingiria não só a família, mas também – e de forma direta – a criança. Percebemos que, em relação à vestimenta, os anúncios de O Tico-Tico que se dirigiam ao público infantil traziam, destacados, elementos que definiam o que era de mau ou de bom gosto, ensinando às crianças um julgamento de valores. As imagens de meninos e meninas arrumados, felizes e cantarolando, funcionavam como modelos de imitação pelos pequenos leitores, os quais, desde cedo, já saberiam identificar, nos outros e em si mesmos, os sinais da “boa aparência”.

Podemos visualizar, sobretudo na publicidade, um discurso que incita a criança a fazer comparações. Um desses elementos, que demarcaria gostos e pertencimentos, é o sapato, conforme podemos perceber na propaganda da “Casa do Bastos”, outra loja cujos anúncios apareciam com frequência nas revistas. Usando como referência uma cantiga infantil, “Bote aqui o seu pezinho”,o leitor é convidado a “mostrar” seus pés, a fim de comparar com os pés das crianças calçadas com os sapatos da loja, tidos como bons e próprios da “elite carioca”.

Figura 27 – Publicidade da Casa do Bastos –1949

Fonte: Almanaque d’O Tico-Tico, 1949, p. 9

Figura 28 – Publicidade da Casa do Bastos –1953

A publicidade revela-se, desse modo, como uma das formas de suscitar esse desejo de igualar-se e destacar-se. Inúmeros anúncios nas revistas diferenciavam os meninos elegantes: garotos que corriam conseguindo manter o brilho dos sapatos e que brincavam sem despentear o cabelo, como sugere uma propaganda do fixador “Gomalina Excelsior”: “Seja um menino levado, mas sempre bem penteado”.

Figura 29 – Publicidade de Gomalina Excelsior

Fonte: Almanaque d’O Tico-Tico, 1956, p. 128

Este anúncio nos mostra que era desejável aos meninos um comportamento diferente das meninas – fazer peraltices. Podemos imaginá-los saindo para brincar com a face emoldurada pelos cabelos penteados e fixados com gomalina. Seus rostos podem revelar texturas, cores, viscosidade, suor, manchas e cicatrizes que serão recobertas de cuidados e de produtos que assentam uma imagem – a de meninos bem arrumados. Se, por um lado, brincarão, suarão e ficarão corados, por outro, os cabelos continuarão bem postos e firmes, guarnecendo uma aparência de meninos distintos.

O rosto é a parte exposta do corpo, vulnerável e nua, ele exprime emoções, revela sentimentos, marcas do vivido. A face não está recoberta de roupas, mas recebe outros ornamentos culturais que revelam e escondem seus traços: produtos terapêuticos e de embelezamento, por exemplo (YTZHAK, 2000). Artifícios como gomalina, óleos,

maquiagem, pomadas, cremes, talcos e loções recobrirão o rosto de significados, gravando na face mais tenra as marcas de uma cultura.

Os apelos do “bom gosto” manifestado nas escolhas e nos usos dos sapatos e do fixador de cabelos também são reafirmados em relação às roupas prontas, como podemos observar no anúncio da loja de departamentos Mesbla, de 1955. As famílias que desejassem que seus filhos se vestissem com elegância eram convidadas a levar as crianças para uma experiência de compra inesquecível na loja, pois esta seria um ambiente cheio de atrações. A propaganda também chama a atenção para a compra de uma roupa “interessante” e “útil”.

Figura 30 – Publicidade de Mesbla

Ora, o que era considerado útil às crianças? Uma roupa forte, resistente, ou algo simplesmente elegante, “grã-fino”? Essa discussão já acontecera no final do século XIX, com as ideias de Herbert Spencer. Para ele, seria um erro vestir as crianças conforme as ideias que as mães fazem sobre a beleza, ou seja, bem-arrumadas aos olhos das visitas e limitadas em suas ações: não brincar para não se sujar ou estragar a roupa. Spencer defendia que qualquer roupa feita para a criança deveria levar em conta as sensações que nos servem de guia – o calor e o frio. O vestuário teria a função similar à da alimentação: bem agasalhado, o corpo tem menos trabalho de produzir calor. Spencer(1901, p. 241) conclui que

[...] os vestidos das crianças não devem ser tão pesados que produzam um calor opressivo, mas devem ser sempre suficientes para prevenirem qualquer sensação do frio; em vez de serem feitos de algodão, de linho ou dos tecidos geralmente empregados, devem ser de qualquer fazenda má condutora de calor, como as fazendas grossas de lã; devem ser suficientemente fortes para suportarem qualquer ataque, ocasionado pelos divertimentos; e a sua cor deve ser tal que não sofra com o uso e com o tempo.

Os conselhos de vestir as crianças conforme as temperaturas, que já importavam a Spencer, aparecem como temas recorrentes no Almanaque O Tico-Tico de 1951, no qual os editores fazem um alerta sobre a necessidade de usar a roupa para proteger a pele das variações de temperatura, moderando as escolhas conforme as estações do ano:

VESTIMENTA E CLIMA. – O excesso de roupa ou agasalho dificulta a benéfica reação da pele às variações da temperatura ambiente. Do mesmo modo, o organismo se ressentirá dessas variações quando a pele não estiver convenientemente protegida. Uma e outra coisa podem favorecer o ataque das doenças infecciosas. Use roupas adequadas ao clima e às estações: não se

agasalhe de mais, no verão, nem de menos, no inverno (ALMANAQUE D’O

TICO-TICO, 1951, p. 41, grifos da revista).

Porém, parece-nos que a publicidade de Mesbla não tinha como objetivo aconselhar o uso de uma roupa infantil baseada nas sensações do calor ou do frio e, sim, promover a venda de trajes que causassem uma distinção das crianças. Como observa Bourdieu (2007), a “boa apresentação” no universo doméstico fora introduzida pela burguesia, visto que o vestuário das classes populares possuía um uso funcional: a escolha da roupa era determinada por sua maior durabilidade.

Ao afirmar que os gostos funcionam como “marcadores privilegiados de classe”, o autor busca estabelecer as condições em que são produzidos os consumidores dos bens e seu gosto, propondo que este último não é um dom da natureza e que sua formação passa pelo nível de instrução do consumidor e pela sua educação familiar e escolar. As instituições família e escola são os lugares da competência, funcionam como dois mercados que fortalecem o que é aceitável socialmente e desestimulam o que não o é (BOURDIEU, 2007).

Poderíamos dizer que as revistas infantis da década de 1950 trazem em seus conteúdos um tipo de refinamento cultural e escolar – mitologia grega, ciências, lições de gramática, músicas e partituras etc.–, além dos distintivos importantes para classificar a família da classe média e garantir a continuidade de sua linhagem:vestuário, lições de higiene e saúde, boa educação etc.

Essa linhagem apurada é representada em um dos personagens, o menino Chiquinho, que aparece desde os primeiros números da revista. A edição comemorativa de cinquentenário de O Tico-Tico faz uma homenagem aos ilustradores que desenharam Chiquinho entre os anos de 1905 a 1955 e apresenta diversas imagens para mostrar as mudanças em seus trajes ao longo daquele período. A reportagem enfatiza que o modo como o menino se vestia, em 1905, era característico de sua origem: o garoto nascera em terras de além-mar e viera ainda pequeno para o Brasil. Ao final, Chiquinho aparece em sua roupagem de 1955, descrita como mais condizente para a época. O menino representa, assim, uma figura muito particular às crianças da classe média do início do século XX, que usavam o traje de marinheiro para ostentar um padrão europeu.

Havia vestidos e roupas para crianças, importadas da Europa ou copiados de figurinos europeus, que eram verdadeiras torturas para os párvulos, obrigados a ostentar golas de pelúcia e casacas de veludo sob o sol forte do trópico brasileiro. Para o menino, proclamada a República, tornou-se trajo comum, entre a burguesia, o uniforme de Marinheiro Nacional: branco e gola azul, gorro também azul, apito no bolso (FREYRE, 2004, p.184).

Figura 31 – Os trajes de Chiquinho

Fonte: O Tico-Tico, Edição do Cinquentenário, out. 1955, p. 30-31

Em relação à aparência e aos comportamentos femininos, podemos observar um olhar mais específico a esse público infantil na revista Cirandinha, que teria sido, conforme anunciado pela editora O Malho, a primeira revista feita especialmente para meninas. O anúncio de lançamento, em 1951, apresentava Cirandinha como um novo membro da família e pretendia que ela fosse notada a partir da propagação da ideia de que “meninas de bom gosto” apreciavam a revista. Ora, como, então, narrar, medir, classificar e transmitir o que seria de “bom gosto” a uma menina? Como se ensinaria uma faculdade de julgamento a uma criança?

Figura 32 – Publicidade de Cirandinha

Fonte: O Tico-Tico, ano LVI, n. 1985, abr. 1951, p. 9

É notável que a publicação de Cirandinha tivesse surgido num momento em que inúmeras revistas se apresentavam como conselheiras da mulher de classe média, definindo as atitudes e os modos adequados de vestir-se para o aparecimento em público. Desde pequena, a menina teria uma revista feita especialmente para ela, com conteúdos similares aos de outras revistas direcionadas ao público feminino; ou seja, uma leitura que lhe ensinava a incumbir-se da aparência e a cultivar bons modos, para que fosse zelosa nos seus “deveres de mulher”.

A publicação direcionava mais detalhadamente o olhar para a vestimenta na seção “Mamãe vai fazer para mim”. Através desta,demonstrava-se a necessidade de usar uma roupa apurada, sugerindo para isso inúmeros modelos de vestidos que deveriam ser confeccionados pela mãe da garota. A seção destacava os tecidos, as cores e os detalhes das

vestimentas, como, por exemplo, lã, piquê, tafetá, shantung e enfeites em rendas, bordados, flores e plissados.

Figura 33 – Mamãe vai fazer para mim

Fonte: Cirandinha, ano I, n. 1, abr. 1951, p. 11

A roupa de prestígio é o vestido, que se mostra refinado pelo tecido e pela cor. A menina elegante trazia para si os elementos da natureza, como flores, pequenos animais, o céu e o brilho do sol, além de lápis e cadernos, simbolizando a inteligência. Percebemos que inúmeros adornos compõem e dão destaque ao vestuário feminino, sobreposto de excessos como bolsos, pregas, fechos, golas e mangas, elementos aparentemente sutis, mas que funcionarão para delimitar, diferenciar e distinguir as crianças de bom gosto.Como

afirma Bourdieu (2007, p. 56), “[...] o gosto é o princípio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se é para os outros, daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é classificado”.

A revista funciona como um dos lugares onde a menina aprenderia a afirmar determinados gostos e identidades sociais. A educação do corpo infantil ocorre por meio do vestuário, dos gestos e das expressões,cujos códigos são ensinados desde a tenra idade, para que as crianças participem das convenções sociais e saibam estabelecer sentidos ao uso de um bem, dotando-o de excelência ou aversão.

Na revista Cirandinha de abril de 1951, encontramos a ilustração da personagem “Caxuxa”: ela usa um vestido sem muitos ornamentos,um avental branco e sapatos nos pés, sua fala é caricata. A tia é representada como uma mulher trabalhadora, que parece ter saído do serviço de uma casa-grande. Caxuxa é advertida para manter seu avental limpo, mesmo durante o trabalho. Ela é mostrada em oposição às outras meninas brancas, presentes nas demais cenas da revista – as quais figuram o asseio, a boa postura e a polidez – e desempenha o papel de fazer os serviços mais pesados e “sujos”.

Figura 34 – Caxuxa e seu avental

Fonte: Cirandinha, ano I, n. 1, abr. 1951, p. 28-29

A figura da criança descuidada e suja, representada por Caxuxa, será alvejada pela revista, que definirá uma aparência afável às leitoras, já acostumadas a lerem dicas e propagandas de itens de higiene e limpeza. Meninas como Caxuxa poderão, por exemplo, contar com o “Sabão Portuguez” para resolver, de maneira lúdica, o problema da falta de brancura de seu avental.

Figura 35 – Publicidade do sabão Portuguez

Fonte: O Tico-Tico, edição do Cinquentenário, out. 1955, p. 14.

A sujeira na mulher era sinal de desleixo. Quando os meninos se sujavam,eram vistos como ativos, peraltas: embora as revistas também recomendassem a eles o asseio, a sujeira era compreendida como parte de suas brincadeiras. Desse modo, as meninas eram aconselhadas a não se sujarem como Caxuxa, visto que a limpeza deveria fazer-se presente não apenas no vestuário, mas também em todas as partes do corpo, conforme podemos ler nos conselhos de Cirandinha:

nada impressiona tão mal como uma menina com as unhas sujas, crescidas demais ou... roídas. Quando sujas, principalmente, são um triste atestado de desleixo. Que importa que a dona delas ostente os mais lindos vestidos, use as melhores joias e enfeites, se aquelas listras negras, nas pontas dos dedos, estão a gritar, a proclamar que ela não é asseada nem cuidadosa? Cuide das suas mãos.

Dê às unhas o aspecto de limpeza e higiene de uma pessoa civilizada. (CIRANDINHA, ano VI, n. 61, abr. 1956, p. 6).

Para Bourdieu (2007, p. 164), “[...] a identidade social define-se e afirma-se na diferença”. Esta, evidenciada muitas vezes por meio de imagens e discursos que contrastam as pessoas limpas, civilizadas, com aquelas desleixadas e rudes, também ocorre entre brancos e negros. Em algumas situações, a distinção se faz pela forma caricata como os personagens negros aparecem: sempre em histórias “cômicas”, atreladas a uma suposta falta de polidez. Gilberto Freyre analisa um dos personagens da revista O Tico-Tico,o “Azeitona”, um menino negro que contrasta com amigos loiros nas histórias publicadas no início do século XX, e conclui:

Sobre os meninos do mil e novecentos brasileiro exerceria influência semelhante à exercida pelas bonecas e madonas louras, desde o século XIX, sobre as meninas, o Chiquinho de O Tico-Tico, menino louro e subeuropeu, que era idealizado um tanto em contraste com o moleque que o acompanhava: moleque muitas vezes posto pelo caricaturista em situações cômicas (FREYRE, 2004, p. 184).

O olhar para o diferente se afirma em relação ao negro e também ao estrangeiro. A revista traz exemplos de como crianças de outros países se vestem, mas são ilustrações que projetam o exotismo dessas vestimentas, mistificando o vestuário e promovendo uma diferenciação daquilo que é do outro.

Figura 36 – Crianças do mundo

Fonte: Cirandinha, ano 1, n. 1, abr. 1951, p. 4-5

A classificação das pessoas e dos comportamentos ocorre em Cirandinha por meio de histórias, poemas e ilustrações que retratam cenas cotidianas – como as festas, a escola, a casa, as visitas, os passeios, o bonde etc. –, nas quais a criança deveria saber portar-se adequadamente para não envergonhar seus pais. As histórias procuravam ensinar a necessidade de sempre causar uma boa impressão, pois “meninas bonitas não fazem coisas feias”.

Em diversas situações, a linguagem ambígua empregada em Cirandinha classifica rico e pobre, elegante e grosseiro, estudioso e preguiçoso, sujo e limpo, por exemplo, sendo o vestuário um dos elementos que servem para demarcar, diferenciar e distinguir o que seria adequado e inadequado. Destacamos aqui algumas dessas cenas, procurando perceber como são elaborados os códigos que definirão as “pessoas que brilham”.

Em um exemplar da revista Cirandinha, encontramos a poesia “Os pobres”, de Olavo Bilac, cujo conteúdo enfatiza a nobreza dos que ajudam e são caridosos. Na ilustração, apresentada na Figura 37, a roupa velha com sinais de sujeira e de desgaste, o olhar abatido e os pés descalços são empregados para caracterizar uma família pobre que se figura encurralada, no canto do desenho, à sombra de uma árvore. Um menino e uma menina aparecem, trazendo-lhes presentes, e estão de braços abertos, vestindo roupas que,