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A roupa, parte da vida cotidiana, pode ser feita à mão, escolhida e imaginada, ou

comprada pronta, como produto de um novo modo de vida. É, assim, expressão de uma organização das atividades humanas, dos comportamentos que constituem as sociabilidades urbanas (SOARES, 2011). Nas primeiras décadas do século XX, as cidades mobilizaram hábitos e atitudes que delinearam novas formas de convívio social. A instalação de fábricas, com seu maquinário, e as vias de transporte, por exemplo, imprimiram outro ritmo ao cotidiano urbano, no qual

a velocidade, por exemplo, surge como signo do moderno e pode ser traduzida no deslumbramento pelas máquinas, que vão do automóvel ao instantâneo da fotografia. A velocidade seduz e dita novos gestos e comportamentos em que carros disputam o espaço das ruas com carroças, cavalos, bondes e pedestres. Essas máquinas enchiam as cidades de barulho e de fumaça, mas, aos olhos da época, afirmavam os ares de uma metrópole (SOARES, 2011, p. 36, grifos da autora).

As indústrias têxteis, desde o início do século XX, propiciaram uma nova elaboração do vestuário e estabeleceram outros ritmos de confecção e de venda, inaugurando também novas formas do vestir. A roupa pronta, associada com a velocidade, a economia e o aprimoramento da confecção, aparece como sinônimo de praticidade e conforto. Considerando a existência de um público resistente e desconfiado em relação às novas mudanças, os veículos de comunicação buscavam atenuar as incertezas,tentando criar um hábito de consumo até então não consolidado28.

Nesse sentido, a revista Manchete apresenta, numa seção intitulada “Inquéritos – O Brasil pergunta”, uma ampla explicação sobre o possível fim da roupa sob medida. Do

28A inversão da má reputação da roupa confeccionada industrialmente ocorreu, sobretudo, pelo investimento

publicitário empregado por Albert Lempereur e Robert e Jean-Claude Weill (França), que disseminaram os discursos sobre a qualidade e o preço baixo da roupa pronta. Alguns modelos propostos por Lempereur aparecem publicados no Jornal das Moças e serão apresentados mais adiante, no capítulo 5. Ver Grau (1999).

texto ali presente destacamos os argumentos do preço acessível e o da economia de tempo nas provas e contraprovas da roupa sob medida. Além disso,Manchete (ano 1, n. 6, 31 maio 1952, p. 8) defendia que, “com a perfeição conseguida na confecção ficou garantida a este novo ramo de comércio pleno êxito, porque o homem evolui e evoluindo torna-se essencialmente prático e econômico”.

Na sequência, a revista elabora um discurso detalhado sobre as novas preferências de vestuário da classe média carioca, ressaltando inúmeras vezes que a mulher que veste uma “roupa pronta”, ao invés de uma “sob medida”, não perde sua elegância, pois esta lhe é inata.

SR. EDUARTO ALIJÓ, QUAIS SÃO AS PREFERÊNCIAS DAS MULHERES DA CLASSE MÉDIA NOS SEUS ESTABELECIMENTOS DE MODAS?

[...] A mulher brasileira, especialmente a carioca, representada na sua maioria pela classe média, tem a verdadeira concepção da elegância, pois está a par de tudo que surge de novo no domínio da moda e tem o sentido prático para a escolha de seu vestuário e que a prática nos ensinou ser o mais difícil. Temos observado que, sendo graciosa no andar, não encontra dificuldade em completar sua elegância natural, adquirindo vestidos prontos, sem qualquer prova, mediante apenas uma pequena retificação, o que lhe permite comprar por preço mais acessível o seu vestuário. Acompanhando a tendência elegante da mulher brasileira, esforçamo-nos na apresentação constante de vestidos e costumes de linha moderna, baseados nos modelos europeus e americanos, aos quais damos um cunho todo nosso, tudo dentro de uma elegância sóbria que agrada sempre à classe média [...]. O nosso atendimento à classe média, nas condições descritas, em nada deslustra a tradição “rafinée” de nossos estabelecimentos, pois continuamos a merecer a confiança e a preferência de nossa clientela de maiores recursos que adquire modelos originais e nos confia encomendas de seu vestuário sob medida, pois temos para este fim um pessoal competente, técnico e artista (MANCHETE, ano 1,n. 6, 31 maio 1952, p.8, grifos nossos).

A imagem feminina evocada no discurso é a da mulher elegante, de gosto apurado, e possuidora de um andar gracioso. Essas características são atribuídas à mulher brasileira,

mais explicitamente a das classes média e alta da população carioca. Talvez essas mulheres citadinas, representantes da então capital nacional, tenham sido escolhidas como mentoras de todas as outras deste país, já que supostamente se mostram interessadas no consumo das roupas prontas – feitas com esmero, rigor e padrão internacional. Além disso, conforme o discurso, seriam elas uma mostra dos indivíduos da espécie feminina brasileira que começaram primeiro a evoluir, pois não querem mais desperdiçar o tempo com provas e contraprovas do vestuário sob medida.

A linguagem empregada no texto tem como intenção conquistar a consumidora desconfiada, sublinhando que as mudanças na maneira de vestir fazem parte da evolução humana. Essa concepção evolucionista do comportamento social faz parte de um discurso científico elaborado ainda no começo do século XX. O filho de Charles Darwin, o cientista George, sugeria que, assim como os organismos, o traje também tem seu processo evolutivo. Seguindo o exemplo da seleção natural, o cientista dizia que a hierarquia da evolução do vestuário estava relacionada com o desenvolvimento da capacidade de adaptação do organismo às condições ambientais (ROCHE, 2000).

A matéria da revista, ao atribuir à mulher evoluída um papel especial nas decisões de compra, credita a ela as habilidades de escolha daquilo que melhor consagrava a imagem de elegância de sua família. Nessa concepção, a importância econômica e social alcançada pelo vestuário de uma família seria resultado da lógica da divisão de trabalho entre os sexos, sendo que, conforme destaca Bourdieu (2007, p.103), à mulher se confere a “precedência em matéria de gosto (enquanto tal precedência é atribuída aos homens em matéria de política)”.

As crianças, nessa concepção, seriam organismos que evoluem à medida que seus sentidos são aprimorados pelas condições de seu meio. Tal como os adultos, elas também participam da evolução da moda e se destacam pela elegância. Esse discurso foi reforçado pela revista Jornal das Moças numa edição especial que veiculou a inauguração de um departamento de modas para meninas na cidade do Rio de Janeiro, a “Exposição Carioca”. No título, a matéria anuncia que as crianças de então seguem a evolução da moda e justifica, citando pesquisas com base em “autores ilustres da psicologia”, que as crianças bem vestidas têm um “desenvolvimento e personalidade aprimorados”, pois a roupa é “um atrativo que afeta os sentidos infantis”.

Figura 22 – Exposição Carioca

A moda em evolução, de acordo com a revista, é aquela disseminada nas camadas sociais mais distintas. Por meio da indumentária vendida na Exposição Carioca, a menina aprenderá a vestir-se de modo apropriado à vida na metrópole e, ao mesmo tempo, terá o conforto psicológico de ser aceita em seu privilegiado grupo de pertencimento. As roupas figuram a graça, o brilho, a beleza e a harmonia das cores, elementos destacados no discurso como importantes para o aprimoramento sensitivo da garota, o qual seria despertado desde o nascimento, mediante o contato com os laços, as rendas e as fitas de seu enxoval. O discurso é construído também de forma direta, com entrevistas que destacam a sabedoria de uma figura feminina – Madame Nilza Vasconcelos Haddock Lobo, chefe da loja – que alia seu trabalho à prática de ser mãe e mulher elegante, além de conhecedora dos códigos indumentários das classes distintas.

Essa garota “evoluída” fará parte de um seleto grupo de consumidores, que busca na moda a inspiração estrangeira e a exclusividade de modelos que diferenciam gostos e comportamentos, mesmo que para isso seja preciso adaptar ao clima brasileiro aquilo que se veste em outros países. Em nome do “bom gosto” e da “elegância”, os adultos são chamados a oferecer esse aparato de trajes à menina, sem medir esforços e sacrifícios para obtê-los. A “boa aparência”, mostrada como resultado de um processo natural e evolutivo é, por certo, componente de um cenário construído pela loja. Podemos compreender, aqui, que os atos de comprar e vestir essas roupas são parte de um sacrifício, de uma imitação e do espelhamento, e seu resultado merecerá visibilidade e exposição, como sugere o próprio nome da loja: “Exposição Carioca”. Ademais, o retrato da cliente oferecido pela loja e feito por fotógrafos estrangeiros contribui para a produção de uma estratégia da aparência infantil.

A reportagem, ao afirmar que a loja “Exposição Carioca” está preocupada em oferecer um vestuário à garota debutante para que esta afirme sua personalidade e brilhe nas reuniões sociais, traz à tona as maneiras pelas quais a moda opera: imitação, convenções, estilos desejados e costumes ditados (ROCHE, 2007). A roupa vendida na loja ajudará a adolescente a definir sua personalidade pela imitação de uma moda estrangeira 29. Vestida com esse status, a garota terá garantido o apoio social e sua inserção num grupo determinado. A imitação lhe oferecerá o conforto de não agir sozinha, de não experimentar o sentimento da vergonha e, assim, “aparecer como um produto do grupo, como um receptáculo de conteúdos sociais” (SIMMEL, 2008, p. 23).

Nessa mesma edição do Jornal das Moças (n. 2.029, 6 maio 1954), encontramos inúmeras fotografias que correspondem aos estilos de roupas anunciados na reportagem. A publicação de treze fotografias de crianças e a descrição de seus vestuários convidam o leitor a sentir a textura, a ver as cores, a seguir os pontos, a brincar nas pregas, a prender e a soltar nós, fechos e botões... 30. Um desses instantes capturados pela lente do fotógrafo, por exemplo, revela-nos um desfile no qual as meninas se exibem ao olhar atento de adultos. Em outro, crianças vestem um figurino distinto para os cenários de suas brincadeiras. Um novo olhar para a roupa e para a criança começava a surgir na revista, dirigido e produzido “especialmente de Paris e New York para JORNAL DAS MOÇAS”.

A série de exemplares dedicados ao vestuário infantil revela, desse modo, o lugar de importância atribuído aos sujeitos infantis. Os editores, ao veicularem modos de vestir e de agir, trazem uma impressão específica sobre o que é ser criança. As posições escolhidas para a pose das crianças delimitam uma aparência desejável, reproduzindo a noção de bom gosto em comportamentos, gestos, aparências e vestimentas.

Os modos de produzir a aparência podem aqui ser pensados a partir de uma construção histórica do sentimento de identidade individual. Corbin (1991) percebe que esse sentimento foi acentuado e difundido, ao longo do século XIX, no qual se identifica, por exemplo, a importância atribuída ao bebê nos retratos familiares. Estes, por sua vez,

29Mesmo que a loja se apresente ao público ornamentada de plantas tropicais e com uma coleção de trajes

que combinam com nosso clima, a reportagem menciona elementos estrangeiros, como Walt Disney, modelos encomendados dos Estados Unidos e a presença de um fotógrafo vindo de Paris, especialmente para compor o ambiente distinto que a loja deseja inspirar.

30 A discussão dos trajes publicados nesta edição da revista será feita mais adiante e detalhadamente no

configuram uma teatralização dos gestos, das atitudes e das expressões faciais. A apresentação das imagens sociais do corpo é elaborada dentro de rituais precisos que constituirão a esfera privada:

Milhões de retratos fotográficos difundidos e cuidadosamente inseridos em álbuns impõem normas gestuais que renovam a cena privada; ensinam a olhar como novos olhos para o corpo, especialmente para as mãos. O retrato fotográfico contribui para esta propedêutica da postura objetivada pela escola, ao mesmo tempo em que difunde um novo código perceptivo. A arte de ser avô, assim como o gesto de reflexão do pensador, obedecem a partir de agora uma banal encenação (CORBIN, 1991, p. 426).

Ao longo do século XIX, foi elaborada e imposta uma estratégia da aparência, da qual faz parte um sistema de convenções e ritos precisos que acentuam o sentimento de identidade individual (CORBIN, 1991). A vida nas cidades também impulsionou o rompimento com os laços familiares, estimulando outras ambições, liberdades e novos prazeres. Uma das formas de diferenciação entre as elites e o povo ocorreria por meio da higiene, configurando uma aparência de limpeza, a qual se definia por não andar manchado, “limpar as vestes, evitar os modos grosseiros, pentear a cabeleira, lavar às vezes as mãos, eventualmente se ‘desemporcalhar’ e, tardiamente, aspergir água-de-colônia” (CORBIN, 1991, p. 444).

O desenvolvimento de um novo olhar social lançado sobre o indivíduo é percebido por Chartier (1999), ainda entre os séculos XVI e XVIII, quando as sociedades ocidentais começaram a vivenciar práticas e expectativas novas que as levaram a produzir espaços, objetos e representações diferentes dos conhecidos até então: desenvolveu-se aí um processo de privatização da vida, uma consciência de si mesmo e dos outros. O rompimento com um fausto monárquico, com a demonstração da grandeza do príncipe e das realezas absolutas emancipou a sociedade civil francesa da segunda metade do século XVII. Suas novas aspirações valorizaram o gosto como sinal de distinção: o luxo de uma minoria seria o fator de distância em relação a uma maioria vista como rude e vulgar:

[...] o bom gosto, evidenciado em si e nos outros pelo refinamento das maneiras, pela estetização do estilo de vida, pela busca de prazeres delicados, autoriza a afirmação de uma distinção não mais na submissão obrigatória às formalidades restritivas da etiqueta curial, e sim na liberdade cômoda e privada de uma existência confortável. Os arranjos dos pequenos apartamentos, as decorações de interior, os móveis e as vestes concebidas para a intimidade doméstica, as

atenções culinárias que discriminam produtos e cozimentos são sinais de uma nova maneira de viver que já não precisa da cena pública para marcar ostensivamente as distâncias sociais, mas pode satisfazer-se com uma certeza de superioridade vivida em privado, auto-atribuída (CHARTIER, 1999, p. 166).

Na pintura, uma tendência para a “especialização” começava a aparecer nos países setentrionais no século XVI, atingindo extremos maiores no século XVII. Assim, verdadeiros especialistas surgiram para pintar o céu, peixes, retratos,ou para produzir o mesmo tipo de pintura em série, por exemplo31. No campo da filosofia, Mora (2001) lembra que as análises sobre o conceito de gosto foram mais frequentes,sobretudo, a partir do século XVIII, tendo como pioneiro o trabalho do Pe. André – Essai sur le beau –, cuja ideia de um gosto inerente ao espírito humano influenciaria Montesquieu na escrita de seu ensaio entre os anos de 1753 e 1755.

Antes disso, entre 1728 e 1729, Montesquieu viajara pela Itália e, embebido dos prazeres da arte renascentista, fizera anotações que mais tarde usaria para compor suas ideias. Em 1757, A Encyclopédie dos Iluministas dedicou um verbete ao gosto e o concedeu a Montesquieu32. Para ele, o gosto era visto como um prazer efêmero que nos liga a algo pelo sentimento e estaria relacionado à capacidade de discernir características dos objetos ou fenômenos. Mas o pensador observa que ver um grande número de objetos não é o suficiente: é preciso uma ordem para algo ser visto com prazer; e aí está o papel da arte, que deveria ser simétrica, contrastante e surpreendente:

A alma gosta de variedade; mas se gosta da variedade é porque, como dissemos, foi feita para conhecer e para ver: portanto, é preciso que ela possa ver e que a variedade lhe permita fazê-lo; quer dizer, é preciso que uma coisa seja simples o bastante para ser percebida e variada o suficiente para ser percebida com prazer (MONTESQUIEU, 2005, p. 8).

31Na França e na Inglaterra do século XVIII, um novo interesse por seres humanos comuns se sobrepunha aos

interesses por elementos decorativos exteriores, símbolos do poder, permitindo maiores produções que beneficiariam a arte do retrato. Ao final da Revolução Francesa, as ideias sobre a arte começaram a passar por muitas mudanças, e uma delas seria a atitude do artista em relação ao conceito de estilo. Em períodos anteriores ao século XVIII, o estilo era o modo de fazer as coisas, a melhor maneira que se poderia encontrar para alcançar certos efeitos. Porém, no decorrer da Revolução Francesa, os artistas já se sentiriam livres para escolher quaisquer temas e imaginar, sem utilizar nenhum modelo, rompendo com as tradições antes estabelecidas (GOMBRICH, 1999).

32Trinta anos após o ensaio de Montesquieu, Kant, em Crítica do juízo, discorreu sobre o gosto como a

Em seu estudo, há uma única menção sobre a sensibilidade: seria a faculdade de experimentar várias ideias ou vários gostos, estabelecendo entre eles inúmeras relações. “Pessoas grosseiras” teriam apenas sensações únicas e nada acrescentariam ao que a natureza lhes oferece. Mas as “pessoas delicadas”, sendo capazes de reconhecer que cada ideia, cada gosto e cada prazer são plurais, conseguem multiplicar infinitamente suas sensações primeiras, conforme exemplifica Teixeira Coelho no posfácio da obra de Montesquieu (2005, p. 109).

Conceitos como o do bom gosto e o da sensibilidade, que diferenciam pessoas grosseiras de pessoas delicadas, os quais já importavam a Montesquieu no século XVIII, aparecem no conteúdo das revistas aqui discutidas, revelando o posicionamento político de seus editores. Nas revistas infantis analisadas, encontramos muitos espaços para a difusão de um tipo de julgamento do gosto. Em O Tico-Tico, há uma ambiguidade concernente ao gênero: os ideais de bom gosto se prescreviam nos conselhos de boa alimentação e higiene, no vestuário adequado e nos temas das ciências exatas e humanas, que davam ao leitor o refinamento cultural de que precisaria para manter-se distinto socialmente. Em Cirandinha, o julgamento do gosto se faz presente em inúmeros conselhos que demonstram a necessidade de ter asseio, boas condutas e cuidado com o lar. Para eles, por exemplo, um lustroso sapato, próprio para um menino sério e inteligente. Para elas, a elegância e a delicadeza de um vestido com rendas, laços e babados, adequado às meninas comportadas.

Os editores das revistas analisadas usam inúmeros exemplos para difundir ao público um julgamento do que é de bom tom e do que não é. Provavelmente, para eles, seus “pequeninos leitores” precisariam de parâmetros para aprender a discernir atitudes, visto que, ao recorrerem a histórias, ilustrações e poemas, traçavam o comportamento da criança nas esferas da vida pública e privada, manifestando um meticuloso olhar para as aparências de meninos e meninas.