• Nenhum resultado encontrado

Ao sublinhar a beleza como um imperativo para a aparência das mulheres, as revistas analisadas consideravam que a calça comprida feminina era uma peça de roupa inadequada para o uso cotidiano. Essa roupa aparecia nas revistas geralmente como item de um vestuário esportivo, para uso também na praia, dentro de casa, no carnaval ou como pijama. Em um exemplar do Jornal das Moças de 1955, encontramos uma página com fotos de mulheres usando calças compridas, camisas e até mesmo bermuda, em poses “descontraídas” ao ar livre. Porém, a descrição das imagens deixa claro que o vestuário é esportivo, ideia reforçada também no título da matéria que, escrito em francês, indica a estação na qual esta vestimenta seria permitida: “Avec la permission de l’été” (JORNAL DAS MOÇAS, n. 2.111, 01 dez. 1955. Suplemento “Jornal da Mulher”)42.

Ao abordar os conflitos entre a moda e a moral, Bologne (1986) nos mostra um vasto conjunto de ideias que escreverão uma história da nudez na consciência humana, desde a roupa que serve a esconder nossa vergonha da nudez até a roupa como uma arma suplementar das fantasias da sedução. O pudor faz parte de um dinâmico processo de tomada de consciência da nudez, que é próprio ao ser humano. Este sentimento 43 nasce no momento em que o homem se dá conta de que está nu e de que é um ponto de passagem entre duas ordens de essência, o divino e o animal. O pudor, assim, é um bloqueio do olhar a uma ação (pudor corporal) ou sua representação (pudor artístico), condenada por um código moral pessoal ou característico de uma época. O pudor configura-se, então, como um respeito por si mesmo, uma condenação individual de mostrar-se ou ver-se nu ou vestido inadequadamente. Uma fronteira sutil deste sentimento é a decência, um respeito pelos outros, ou seja, um pudor de caráter social que define, em função de uma época e de um lugar, os limites tolerados para a exibição (BOLOGNE, 1986).

42“Com a permissão do verão”.

43A origem do termo pudor remonta ao século XVI, porém a consciência do sentimento existe antes de este

No vestuário infantil, ainda neste exemplar da revista de 1955, a calça da menina é mostrada como parte de um pijama, e a descrição indica tratar-se de um “gracioso pijaminha em estilo chinês composto de calças de veludo preto ajustadas nas pernas. Blusão em brocado azul claro contornado por um rolotê de seda preta. Botões de vidro preto”.

Figura 72 – Pijama em estilo chinês

Fonte: Jornal das Moças, 1 dez. 1955, n. 2.111, p. 31.

Ocorre, na mesma revista, outra foto de uma menina vestida com calça curta “em algodão liso com barra em tecido listrado” e um “casaquinho com duplo abotoado na frente, gola marinheira e franzido lastex na cintura”. Porém, a mesma restrição do uso da calça ou da bermuda que é feita para as mulheres aparece para as meninas: a imagem sugere tratar-se de uma roupa usada em ocasiões informais, como para dormir ou para o verão e a praia, já que a criança foi fotografada com uma pá e um balde de brinquedo.

Figura 73 – Conjunto para menina

Fonte: Jornal das Moças, 1 dez. 1955, n. 2.111, p. 71.

Em outra imagem as crianças aparecem num parque infantil, e a sugestão é um vestuário para brincadeiras num dia quente. Ao contrário do que se possa imaginar, o vestuário escolhido não é a calça que antes fora considerada “esportiva” e “de verão”, mas, sim, vestidos com “mangas bufantes”, “saias franzidas tipo balão”, “suspensórios abotoados na frente” e “saia godê com dois bolsos embutidos”. Já para o menino, que parece estar bem à vontade com sua roupa, sugere-se um conjunto “composto de blusão em tecido estampado, de linhas soltas. Calcinha [bermuda]em linho de tom liso com uma palinha em lastex ajustando a cintura”.

Figura 74 – Trajes para o parque

Fonte: Jornal das Moças, 1 dez. 1955, n. 2.111, p. 40-41.

Esta imagem, portanto, nos mostra que ainda eram frequentes oscilações no modo de conceber a roupa infantil nos momentos informais. Diferentemente da Figura 63, em que as meninas estão quase imóveis num parque, nesta as crianças demonstram maior movimentação nas brincadeiras, porém as roupas das meninas ainda não seguem a mesma lógica do conforto apresentada na vestimenta “em linhas soltas” do menino.

Tais ambiguidades aparecem também na revista Cirandinha, especialmente nas ilustrações da capa, que expomos a seguir. Podemos observar que a calça comprida aparecia em poucas ocasiões, como na imagem de uma menina que brinca no triciclo. Supomos, no entanto, que a calça não estivesse associada ao conforto necessário a essa brincadeira, mas, sim, à estação fria do ano, visto que, para cavalgar, andar de bicicleta e sentar-se na gangorra, a menina não trocara seu vestido.

Figura 75 – Crianças no triciclo (capa)

Fonte: Cirandinha, ano IV, n. 39, jun. 1954.

Figura 76 – Menina cavalgando (capa)

Fonte: Cirandinha, ano IV, n. 37, abr. 1954. Figura 77 – Menina na bicicleta (capa)

Fonte: Cirandinha, ano VI, n. 71, fev. 1957

Figura 78 – Crianças na gangorra (capa)

Poderíamos aqui nos perguntar por que uma menina brincaria com vestido em situações de montar, deixando suas pernas abertas à mostra, e isso não seria censurado na capa de Cirandinha? Talvez os modos rígidos de conceber a decência feminina fossem abrandados em relação à criança, pois ela era vista como inocente e pura; portanto, livre do pecado intencional.

Ao vermos meninas brincando com seus vestidos, nos indagamos se as ideias de pudor e decência seriam sempre determinantes no vestuário infantil. Embora, em muitas situações, existissem discursos e imagens que reforçavam o recato e a decência feminina, sobretudo nas revistas dirigidas às mulheres, parece-nos que o corpo da criança, por vezes, escaparia dessas determinações. Reconhecemos aqui nossa limitação em apreender os sentimentos individuais manifestados no uso de uma roupa, mas poderíamos imaginar outras sensibilidades provocadas pelo uso do vestido, manifestadas no movimento das saias da menina que anda de bicicleta e da que brinca na gangorra. Um olhar minucioso nos mostra um bailar do vestido que se enche de vento e dança na brincadeira, provocando o

prazer, o riso, a descontração, talvez o mesmo sentimento exprimido por Cora Coralina em suas memórias da infância. A poetisa nos faz imaginar seus rodopios de criança quando vestia um mandrião, vestido amplo e rodante, feito com uma saia velha da avó, com o qual girava e inflava, capturando o vento:

O Mandrião

Eu brincava, rodava, virava roda, e o antigo mandrião se enchia de vento balão.

Aninha cantava, desentoada, desafinada, boba que era.

Meu mandrião, vento balão, roda pião, vintém na mão. (CORALINA, 2001, p. 29).

Figura 79 – Mandrião: vento balão

Fonte: Jornal das Moças, n. 2.049, 23 set. 1954, p. 55.

Somente no final dos anos de 1950 é que encontramos no Jornal das Moças uma maior ocorrência de imagens de meninas e mulheres usando calça comprida.Porém, as publicações dessas fotografias eram feitas juntamente com comentários e julgamentos sobre essas modas estrangeiras, o que nos faz perceber a resistência da revista em relação ao uso feminino dessa peça do vestuário e a preocupação em não ferir abruptamente o olhar das leitoras. Possivelmente, nos países nos quais as fotos foram feitas, a calça comprida já seria parte do vestuário feminino e, interessados em mostrar à leitora o que seria “de última moda” nos países mais sofisticados, os editores do Jornal das Moças admitiam que não

poderiam ficar alheios a esses novos trajes, o que gerava incoerências com os princípios morais defendidos por eles. Mas, ao mesmo tempo, não desejavam afastar o apreço das “boas senhoras” leitoras.

Compreendemos, assim, que a calça comprida fazia parte das condenações em relação à decência feminina e por isso era vista em oposição ao recato do vestido. Sua circulação em outros meios de comunicação e no cinema, por exemplo, gerava desconforto em muitos setores da sociedade. À medida que gerava conflitos e discussões, a calça feminina mostrava, cada vez mais, seus aspectos políticos, ocupando lugar de relevância também nos meios artísticos. Um exemplo da abordagem do tema da calça feminina, que fora alvo de críticas, é o maxixe de 1950 “Vai da valsa”, de Adoniran Barbosa e Renato Consorte (PASSOCA, 2009). A música fora vetada pela censura e foi gravada somente meio século depois44.

Vai da valsa, Vai da valsa,

Eu gosto de mulher bonita Mas quando ela está sem calça... Comprida (Refrão)

A mulher quando é bonita Moda elegante e moderna Gosta de calça comprida

Só pra não mostrar a perna (oi que vai, vai).

Refrão

No andar e no cabelo Na pintura a toda a prova Fica sempre bem mais jovem

Cada dia está mais nova (oi que vai, vai) Desse jeito quase logo

Seguindo na mesma trilha Em vez de ser esposa

Vai parecer ser a filha (oi que vai, vai).

Refrão

Ora, na música, a calça comprida parece estar associada a uma aparência juvenil e, de certa forma, “ingênua”. A vestimenta, mais aceita para a filha do que para a mãe, comporia um visual descontraído e informal. Durante o ano de 1958, as imagens da calça

comprida feminina apareceram com mais frequência no Jornal das Moças. Notamos, analisando uma sequência de meses daquele ano, que a revista primeiramente publicou a imagem da criança e da jovem com essa vestimenta. Teria sido uma opção dos editores mostrar gradativamente imagens da calça comprida, valendo-se da figura pueril? A criança teria servido para compor um imaginário de ingenuidade e descontração em torno dessa peça de roupa que fora apropriada pelas mulheres?

Ao estudar uma história política da calça comprida, Bard (2010) descreve que essa roupa tem sua origem no século XVI, no contexto teatral da fantasia, ligado à comédia e à figura do ridículo. No século XVII, a calça apareceu como traje do trabalho marítimo: pescadores usavam calças que variavam em tamanho e em largura. Esse modelo marítimo inspiraria a moda infantil no século XVIII, trazendo mais simplicidade e conforto. A calça, no século XIX, adquiriu novos significados na passagem de um regime aristocrático para o burguês: nos meios mais privilegiados, os homens adotaram uma veste mais simples e austera, renunciando à erotização e à frivolidade de sua aparência, características que deveriam ficar restritas ao feminino (BARD, 2010, p. 17). A autora também nos lembra que a calça primeiramente fez parte da indumentária dos dominados: o pobre, o camponês, a criança, o vencido, o bárbaro, o marinheiro, o artesão, o bufão.

A calça comprida é uma roupa que nos veste da cintura aos pés, separando nossas duas pernas (BARD, 2010). Quando, entre os séculos XVIII e XIX, os homens das classes superiores adotaram a calça, originalmente uma peça popular, uma hierarquia de gênero e uma ideia de masculinidade foram produzidas: a calça, por muito tempo, era inconcebível às mulheres. E mesmo os calções femininos usados como roupa de baixo, não eram fechados, tinham uma fenda entre as pernas. Segundo Lurie (1997, p. 237), a difusão da calça comprida teria ocorrido a partir da introdução da bicicleta, ao final da década de 1890, para a qual era aconselhado o uso de saia-calça para essa nova prática corporal45.

45As simplificações no vestuário feminino foram impulsionadas pelo ciclismo. As novas práticas esportivas

que surgiram no período da Belle Époque trouxeram mudanças nas roupas, aproximando mais as aparências masculinas e femininas, embora as mulheres ainda precisassem de autorização oficial para aparecer em público usando calças (BARD, 2010).

Além das práticas esportivas, é preciso lembrar que o feminismo, entre os séculos XIX e XX, contribuiu para a politização da aparência e para mudanças vestimentares46. Celebridades na França do século XIX usaram calça como experiência de liberdade, como, por exemplo, a escritora George Sand (1804-1876) e Rosa Bonheur (1822-1899).

O período entre as duas guerras trouxe uma mudança no vestuário feminino: razões práticas levaram as mulheres a usar calça nas fábricas, nas forças armadas e nos campos. O cinema mostraria, por exemplo, filmes de guerra com mulheres usando calça comprida 47. Apenas no fim da década de 1950 e no início de 1960 é que a mulher começaria a vestir calça em ocasiões sociais. Antes disso, não poderia usá-la em um ambiente formal (BARD, 2010; LURIE, 1997).

A introdução da calça na coleção de figurinos femininos do Jornal das Moças permite-nos perceber traços da história dessa peça de roupa, que se manifestariam na revista tanto a partir das situações vistas como “esportivas” quanto a partir da imagem inocente da criança. No exemplar de janeiro de 1958, a calça comprida apareceu primeiramente como um macacão para o menino, como mostrado anteriormente na Figura 67. Nas páginas seguintes do mesmo exemplar, encontramos outro macacão, agora feito para a mulher. Esta tem os cabelos curtos, senta-se no braço de um banco, com o macacão estampado e justo até o tornozelo, segura os óculos de sol e calça uma sapatilha. Seu grande sorriso nos permite uma possível leitura da imagem: “Sinta o prazer de se vestir como eu”, ou “Olhe minha roupa, veja como me sinto à vontade e muito feliz”.

46Em 1891, na França, um grupo de mulheres adotaria pela primeira vez o termo feminista. Seria, então, “no

momento em que o feminismo se afirma como uma força política, conseguindo captar a atenção midiática e política, que emerge a questão da roupa” (BARD, 2010, p. 227, tradução livre).

47Nas telas, um estilo de “mulher moderna” era propagado por atrizes como, por exemplo, Audrey Hepburn,

que evocaria a descontração, ao usar calça e cabelo curto. Admirada, a atriz contribuiu para a aceitação dessa indumentária. Na França, na região de Côte d’Azur, o uso da calça entre veranistas difundiria um estilo “à vontade”, ao sabor do verão. Também a moda inglesa dos anos de 1950 mudaria o caráter masculinizado da calça, trazendo modelos em tecidos elásticos, de esqui, ciclismo e o jeans “cowgirl”.

Figura 80 – Macacão feminino

Fonte: Jornal das Moças, n. 2.222, 16 jan. 1958, s.p.

Porém, o macacão feminino será resguardado de possíveis interpretações errôneas de seu uso, contradizendo a felicidade da mulher que o veste: ao lermos a descrição elaborada pelo “Jornal da Mulher”, a sensação de prazer propiciada por esse traje logo é desviada:

Nós não vamos dizer a vocês que esta indumentária é interessante. Claro que não vamos dizer para você andar facilmente em casa com ela. Pelo ambiente que circunda a moça que o veste, você vê logo que se trata de uma peça de recato, porque ela acentua muito as formas do corpo. Ela é usada nos campos, nos sítios, nos jardins de interior, para você tomar banho de sol e estar bem composta, em vez de usar shorts e roupas de banho de mar... no campo... (JORNAL DAS MOÇAS, n. 2.222, 16 jan. 1958, s.p. Suplemento “Jornal da Mulher”).

O macacão, assim, era condenado por acentuar muito as formas femininas, concepção esta que Souza (1987) percebe ser um dos principais sentidos da roupa, ou seja, de chamar a atenção sobre certas partes do corpo. Nas sucessivas variações da moda, manifestam-se tanto as tendências de devassar o corpo e fazer com que o exibicionismo triunfe sobre o pudor quanto as tendências de cobri-lo sob a coação do decoro e do puritanismo. A primeira atitude, mais rara, acompanha as grandes crises sociais e o afrouxamento da moral, como aconteceu algumas vezes em períodos que antecederam as guerras. A segunda tendência, a do recalque, é a mais comum e caracterizou quase todo o século XIX e parte do XX (SOUZA, 1987).

No mês de fevereiro, a calça tornou a aparecer na revista como peça do vestuário infantil, e, ao contrário do macacão do menino publicado no mês anterior, já seria uma peça disponível para os dois sexos. Aqui o argumento veiculado será o do conforto: “é um traje que se sente bem não só o garoto como a garota”.

Figura 81 – Traje para sentir-se bem

No mês de março o suplemento “Jornal da Mulher” publicou uma fotografia de duas jovens, uma delas com um macacão comprido, camisa e bota e, a outra, com calça e sapato mocassim. Ambas demonstram descontração: uma delas está sorrindo, apoia uma perna sobre um banquinho, segura um copo e pousa, entre os lábios, o canudo. A outra está encostada próxima a uma lareira, com um dos pés flexionados contra a parede.

Figura 82 – Calça para jovens

Fonte: Jornal das Moças, n. 2.229, 6 mar. 1958, s.p.

A mesma revista que antes condenara o uso do macacão em locais fora do campo ou do jardim de interior diria agora que esse é um traje enraizado no nosso país. Os editores justificam o uso da calça nesta situação, usando uma expressão que remete aos sentimentos de pureza da infância: “é uma roupa que permite a que as jovens possam brincar”, tentando,

assim, minimizar qualquer reprovação das leitoras que em anos anteriores estavam acostumadas a encontrar, quase exclusivamente, muitos modelos de vestidos nas páginas da revista.

Hoje em dia esta indumentária está enraizada entre nós do Brasil que já não tem mais fronteiras estaduais. Em qualquer cidade do nosso país qualquer jovem gosta dessa indumentária. E por que? Porque é uma roupa que permite a que as jovens possam brincar, possam praticar vários esportes sem o aborrecimento de ter de segurar as saias etc. São dois modelos lindíssimos e originais. (JORNAL DAS MOÇAS, n. 2.229, 6 mar. 1958, s.p., Suplemento “Jornal da Mulher”).

Aprovado – com restrições – o uso da calça feminina e “enraizado” o traje no julgamento das leitoras, o exemplar de novembro de 1958 já se permitiria publicar na capa a foto de duas mulheres em um navio, projetando o estilo marinheiro, com calças brancas, blusas azuis listradas e sapatilha vermelha, como se estivessem aproveitando um ensolarado passeio no Mediterrâneo... As mulheres com estas roupas são colocadas na capa da revista, como se representassem o triunfar de um traje que, depois de muita negociação, estaria “liberado” para servir de molde às novas costuras de suas leitoras.

Figura 83 – Capa de 1958

No entanto, vale lembrar que, mesmo a calça comprida tendo se tornado uma peça concebível às mulheres, muitos acessórios dolorosos ainda eram usados por debaixo das roupas: sutiãs com armações e enchimentos para erguer os seios, cinta elástica e cinta-liga para segurar as meias, por exemplo. Como propõe Lurie (1997, p.238), “a mulher que usava calças e shorts antes de 1960 só era liberada externamente. Debaixo, suas roupas a comprimiam, espremiam e atavam mais que na década de 20”.

Percebemos, então, que jogos de poder se constituem também por meio de uma peça de roupa: a calça comprida marcaria o limite entre a vida pública e a vida privada, entre a liberdade de mulheres e meninas e sua sujeição. As escolhas de vestir uma calça, uma bermuda, uma saia ou um vestido não estão atreladas apenas à renda, mas também aos jogos de poder e de distinção que estabelecem maneiras de comportar-se, segundo um conjunto de normas de identidades e de conhecimentos (ROCHE, 2000).

Nas diversas situações aqui analisadas, as meninas, especialmente, foram retratadas em desfiles, mostrando os corpos preparados para um dia se tornarem adultas, em momentos de cerimônias, festas, primeira comunhão e, assim como os meninos, em trajes de dormir, fantasias de carnaval ou roupas de cortejos de casamento. Meninas e meninos aparecem também em espaços de brincadeiras e próximos de seus brinquedos.Podemos perceber que, nessas ocasiões, as roupas poderiam adquirir um aspecto mais informal e, algumas vezes, podiam estar associadas ao conforto, embora o uso da calça comprida para meninas ainda fosse reservado a ocasiões específicas.

Assim, nas roupas infantis discutidas aqui, estão presentes as ideias de pureza, elegância, diferenciação e conforto. Isso porque o vestuário, em seus processos de uso, torna-se cada vez mais especializado, não se limitando apenas à função de proteção, mas também àquelas de distinção, performance, conforto e eficácia (SOARES, 2011).

[...] As roupas configuram, também, a percepção mais aguda da ideia de conforto já presente em diferentes atividades humanas, uma ideia que, sem dúvida, é parte de uma história sensível das coisas, dos objetos, de seus usos no fio do tempo e de sua importância nas transformações dos comportamentos humanos tanto na vida privada quanto na vida pública, na vida social (SOARES, 2011, p. 26).

Tais percepções e comportamentos configurados pelas roupas podem ser observados na postura terna das crianças das páginas de moda do Jornal das Moças. Essa postura,

esperada para uma vida pública, parece confirmar a intenção da revista de atingir a família