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Figura 85 – Molde de costura (detalhe)

Pode-se ser pobre, mas usar roupa limpa, embora remendada. O asseio é a primeira virtude do pobre

(Almanaque d’ O Tico-Tico, 1949, p. 70).

Hoje, toda criança quer ser fashion.

(RIBONATO apud TÓFOLI, 2007)48

Do uso de roupas remendadas, costuradas pelas mulheres no lar, copiadas de modelos de revistas de costura, passadas dos irmãos mais velhos para os mais novos, feitas com tecidos nobres ou mesmo com o aproveitamento de sacos de farinha até chegar ao vestuário que compramos pronto – exposto em outdoors, comerciais televisivos, disposto nas vitrines de shoppings e disponibilizado para as próprias crianças escolherem –, temos um percurso de tempo onde se mesclam rupturas, contradições, permanências e afirmações sobre modos de conceber a infância.

Propusemo-nos a realizar, neste trabalho, uma análise sobre a educação das crianças por meio das roupas na década de 1950. Logo, as revistas infantis e adultas constituíram fontes importantes para uma compreensão dos discursos elaborados sobre os sujeitos infantis.

No decorrer desta pesquisa, percebemos que a publicidade expandiu-se a partir dos anos de 1950, sobretudo com a difusão dos meios de comunicação, e dirigiu um olhar para os sujeitos urbanos, dentre os quais a criança. Esta, inserida no cotidiano das cidades, fora considerada potencial consumidora de produtos e de discursos associados ao progresso. Sujeitos do núcleo familiar e escolar, alvo de asserções médicas e pedagógicas, as crianças ganharam espaço também nos diferentes meios de comunicação, como no caso da televisão e de algumas publicações que direcionaram uma “conversa” específica com elas.

Concebidas como um texto a ser lido, as imagens de adultos e crianças que constituem as páginas das revistas analisadas sistematizavam, juntamente com a escrita, um imaginário coletivo sobre os novos comportamentos necessários à vida social urbana. As revistas, ao trazerem imagens de crianças sobrepostas às dos adultos, constroem e desconstroem comportamentos, salientam a necessidade de preservar a ingenuidade, a

48Humberto Rebonato, organizador da 29ª.Feira Internacional Infanto-Juvenil de São Paulo de 2007, em

pureza e a decência, sobretudo quando se trata do sexo feminino. Esses comportamentos também são constituídos pelas roupas e, em conjunto, “vão favorecendo que a infância seja o que dizem que ela é... e, simultaneamente, vão se tornando o campo a partir do qual se negociam novos conceitos e novos modos de ser da infância” (LAJOLO, 1997, p. 232).

Percebemos, nas revistas infantis e adultas analisadas nesta pesquisa, um empenho em construir a imagem de uma criança elegante, que causasse uma “boa impressão” aos outros não só pelas roupas e pelos calçados que usava, mas também pelo conjunto minucioso de gestos prescritos para as diversas situações da vida cotidiana, ou seja, para uma ampla educação do corpo49. Poderíamos citar, para tais situações, a necessidade do controle do tom de voz, a expressão da simpatia, do asseio, da bondade com os pobres, do esmero nos afazeres e a demonstração da inteligência nos estudos. Esses atributos, valorizados no comportamento em público da criança, traziam orgulho a seus familiares, pois eram reflexos de um cuidado esmerado dos adultos, ou seja, a honra de filhos “bem apresentáveis” e cordiais significava uma primorosa herança familiar.

A menina, em especial, era vestida e educada para servir como um “buquê de gentilezas”, conservando a imagem de um ser bondoso e de alma pura. Tal imagem angelical e ingênua, figurada também nos campos da arte e da infância, seria um espelho para a mulher, chamando-a a preservar um “espírito infantil”, maternal e delicado.

É evidente o esforço publicitário em chamar a atenção do público feminino para a aquisição de produtos, amparando-se na imagem reconfortante da criança, como mostram os anúncios de dentifrícios, pílulas virtuosas, tônicos, laxantes, emulsões, calçados, roupas e álbuns de costura publicados nas revistas O Tico-Tico, por exemplo.

A editora O Malho, ao publicar revistas infantis segmentadas por sexo e faixa etária, transmitiu aos leitores valores, anseios, regras e modos diferenciados de agir e vestir-se, fossem eles meninos ou meninas. No intuito de educar as crianças para a vida social, comprometidas com a construção de uma almejada “próspera nação”, as revistas infantis difundiram aos seus leitores as aparências condizentes com estes ideais e logo ganharam prestígio entre pais e professores, pois sustentavam um discurso afinado com a educação de um cidadão “íntegro e saudável” (ROSA, 2002).

Todo o conjunto de adornos e detalhes presentes em vestidos, aventais, toalhas e nos variados itens de decoração da casa evidenciam as especificidades da condição feminina. A roupa dirigida às meninas colocava em relevo os valores do esmero, da graça, do labor e da sofisticação. Pequeninas ou maiores, as garotas eram retratadas usando vestidos semelhantes aos das suas mães, ou aos de bonecas, resguardadas na ingenuidade. Ao mesmo tempo, assumiam responsabilidades com os serviços domésticos por um tempo maior do que os meninos e viam-se como companheiras de outros “anjos do lar”, como a mãe e a avó. Assim, era incentivado que as meninas sonhassem com o matrimônio, brincassem de casinha e arrumassem a cama dos irmãos, pois tão logo deixassem as bonecas, teriam esse mundo à espera. Os meninos eram estimulados a estudar, a cuidar de seus pertences e a brincar, descobrindo e percorrendo espaços como o da rua.

Poderíamos afirmar, portanto, que o olhar para a vestimenta infantil e seus inúmeros detalhes nos permitiu perceber uma manifestação visível de atributos humanos como o respeito, a decência, a afabilidade e a distinção, por exemplo, estabelecidos para compor as aparências dos sujeitos infantis da década de 1950.

Percebemos, de maneira geral, que a criança que habita as páginas das revistas analisadas é tanto a criança evocada nos poemas que exaltam o futuro, a pátria e a esperança de um mundo melhor, como também a criança que tenta abrir uma fresta nas normas rígidas dos adultos para expressar-se ao seu modo. Também é a criança que vende sabonetes, esparadrapos, talcos, remédios, produtos de limpeza etc. e convence o consumidor a desejar sua pureza, ou aquela que se prostra ao lado de homens e mulheres, servindo-lhes de consolo e de elemento protetor. É ainda uma criança para a qual se costuram trajes que irão educar seus corpos em função dos papéis que se espera que assumam na vida social, prevendo o cuidado, a higiene e o cultivo dos bons costumes.

Ao analisarmos a roupa infantil apresentada nas revistas infantis e adultas, percebemos que, nos fios mais tênues das costuras, dos detalhes e dos bordados, expressavam-se sentidos e sentimentos diversos. Sendo assim, poderíamos abrir outras brechas para reflexões e indagações, as quais talvez se embaracem neste tempo presente. É possível cerzir a roupa infantil com as linhas da pureza e da inocência?

Figura 86 – Para brincar de roda