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Vestindo-se com inocência: Relações ofuscadas entre adultos e crianças

Figura 42 – Mãe e filha

As relações entre adultos e crianças e os sentimentos a elas demonstrados podem ser percebidos, dentre muitas formas, por meio das roupas. Assim, por exemplo, os atos de lavar, passar e coser uma vestimenta infantil remetem-nos não apenas à higiene e à saúde, mas também ao zelo e à delicadeza prestados a um ser que é visto em sua fragilidade. Podemos, assim, nos perguntar: por que o uso excessivo de ornamentos nas roupas e nos enxovais de crianças pequenas? Seria por uma necessidade dos adultos de lhes exprimir aconchego e proteção? Por meio das peças de roupas sugeridas às crianças, as receitas de costura evocam sentimentos, desejos e ideais aos sujeitos infantis, como destaca diversas vezes a revista Jornal das Moças: “Gracioso pijaminha”; “encantador conjunto para menina”; “sensível modelo para menino”; “romântico trabalho bordado a cores”...

Mais do que proteção e cobertura, a roupa pode significar a criação de uma nova pessoa, dizer o que somos e o que queremos ser. Conforme salienta John Harvey (2003), as pessoas constroem suas subjetividades também pelo ato de vestir. O corpo infantil, considerado frágil, dependente de cuidados e inocentemente nu, é tomado pelo adulto e revestido de um conjunto de aparatos e práticas que o torna gracioso, sensível, encantador, educado, protegido e aconchegante. Qual é o tipo de imaginário que a revista de moda descreve sobre as crianças?

Laura Maria é uma linda menina de cinco anos, já está ganhando presentes e esse gracioso vestido de três babados. Entretanto, Laura Maria tem oito amores que são um boizinho, um coelhinho, um cachorrinho, um elefante, um burrinho, um patinho e um peixe. Todos estes brinquedos são muito fáceis de fazer. Se você quiser dar mais prazer à sua filhinha experimente fazer você mesma estes bichinhos, seguindo as explicações que damos. (SUPLEMENTO “JORNAL DA MULHER”, ano XXVI, n. 1.820, 1 dez. 1955, p. 48).

A revista de costura funciona como um desses meios que oferecem os aparatos, as técnicas e as receitas para a construção de crianças em suas diversas idades e ocasiões. Folhear as páginas com as imagens dessas crianças significa, para a leitora, a esperança de fabricar e costurar um ser ideal. Para que o “gracioso pijaminha” ou o “gracioso vestido” seja usado pela menina, é preciso que um adulto os confeccione. O trabalho não estará restrito ao “corte e costura”, ou seja, não é uma atividade realizada apenas pelo emprego de uma matéria concreta – o tecido, a linha, os botões etc. –, mas também por meio do simbólico: ao mesmo tempo em que se produz a roupa, se produz a imagem da criança, seja

ela delicada, meiga, sensível ou forte, por exemplo. Provavelmente espera-se que os outros confirmem aquilo que a roupa pretende revelar e lhe digam elogios como: “que garotinha mais encantadora!”.

Ao participar da vida social, a criança está imersa em um universo cujos olhares, gestos e palavras lhe atribuem sentidos em função de seu comportamento e de sua aparência. A relação criança-adulto é, portanto, marcada por projeções e desejos de ambas as partes. Se existem ideais e representações em torno da infância, é importante destacar que também existem idealizações em relação aos adultos, principalmente àqueles que assumem os cuidados e a educação das crianças, como é o caso, preponderante, da figura feminina.

Poderíamos dizer que a mulher, ao costurar, figurava-se como “autora da vida”: ela poderia compor, inventar personagens, experimentar, trocar, refazer, improvisar, mudar, cortar, medir, prender e soltar... Talvez essa fosse uma de suas poucas oportunidades para fazer escolhas. Como lembra Barthes (2009), o vestuário detalhado da revista produz uma vivência imaginária e faz a leitora sonhar. Ao compor uma aparência por meio do vestir,

podemos nos dedicar mais completamente a uma emoção (como o pesar), ou a um “espírito” (como um espírito de festa ou bem-humorado), ou a um personagem (como o do homem de negócios, sério e confiável). Em todos estes existe uma espécie de mágica, como se, ao vestir as cores correspondentes, estivéssemos convidando os gênios ou demônios do prazer, do amor, da devoção, dos negócios, a tomar nossos corpos e almas (HARVEY, 2003, p. 18, grifo do autor).

A confecção de uma roupa infantil era apresentada nas revistas de costura como um meio de viver intensamente um conto de fadas, uma ocasião para entregar-se à fantasia, deslocando-se a um mundo alegre, de sonhos e de imaginação.Talvez por isso muitas páginas exibissem imagens de bailes de carnaval, momentos de festa e de exposição das mais variadas fantasias criadas pelas mães das crianças que, se conseguissem que seus filhos fossem destaques nas revistas, seriam honradas por seus esforços, alcançando o luxo e a distinção desejados.

Figura 43 – Baile infantil do Botafogo

Fonte: Jornal das Moças, n. 2.022, 18 mar. 1954, s.p.

Reingressar no cotidiano infantil era um dos caminhos encontrados pela mulher para afastar-se dos problemas e do cansaço de seus afazeres. As mensagens descritas nas revistas de costura convidam a leitora a entrar neste mundo: “Em seu álbum de histórias mágicas, não deve faltar esse conto de fadas que são as roupinhas da garotada” (JORNAL DAS

MOÇAS, n. 2.111, 1 dez.1955, p. 40)34. Através da trasladação ao “mundo mágico da infância”, a mulher renovaria o espírito materno e se purificaria, consagrando eternamente a criança dentro de si.

No Jornal das Moças muitos trabalhos de costura são dirigidos à figura da mulher infantilizada e transformados numa saudosa brincadeira de boneca. Os editores desenham o vestuário da criança e empregam, nas descrições das costuras, termos no diminutivo, tais como “filhinha”, “roupinha”, “modelinho” e “vestidinho”. Um dos exemplares traz a receita de um acolchoado vestido infantil e parece sugerir, conforme podemos ler na postura da menina fotografada, que a mulher fará de sua filha um brinquedo à espera de seus afagos35. Mães e filhas estariam ligadas pelo simbolismo da boneca; quando adulta, era esperado que a mulher continuasse a brincar de casinha, como o fizera em sua infância, buscando consolo em “prazeres inocentes”.

34Ver, no capítulo seguinte, a Figura 74.

35Vale destacar que a ocorrência do vestuário para o menino é ínfima nas publicações pesquisadas do Jornal

Figura 44 – Vestido acolchoado

Fonte: Jornal das Moças, n. 2.034, 10 jun. 1954, p. 23.

Ideais de pureza e ingenuidade eram relacionados à infância e deveriam ser preservados na educação da menina, a fim de compor o eu feminino. Este, uma construção histórica, ganha expressividade através da boneca. Nas mãos da menina que brinca, a boneca é capaz de transformá-la em mãe. Projetada no mundo adulto, a menina costura as roupas da “filhinha”, faz sua comida, cuida de sua higiene e saúde. A partir de então,

realidade e fantasia começam a caminhar juntas, embaçando a linha tênue que divide a infância do mundo adulto. A mensagem é clara: “Mulher: a filha que você gerou será a sua boneca e receberá seus afagos e cuidados”.

Poderíamos pensar aqui na boneca, conforme propõe Formanek-Brunel (1998), como um objeto da cultura material e que, por isso, pode nos oferecer uma compreensão do vivido pelas sociedades. Analisando as bonecas produzidas e comercializadas nos Estados Unidos de 1830 a 1930, a autora percebe esses objetos como pertencentes a uma educação burguesa voltada à instrução diferenciada dos meninos e das meninas. Enquanto estas eram educadas na esfera doméstica, na qual aprendiam habilidades específicas para assumir papéis no lar, devendo ser gentis, puras e sacrificar-se emocional e fisicamente, os meninos, por outro lado, eram ensinados a serem assertivos e individualistas, assumindo um lugar na esfera pública ao lado de outros homens. Deveriam ser racionais, protetores e encorajados ao mundo dos negócios. A autora analisa ainda que, no processo de criação das bonecas, homens e mulheres demonstraram intenções diferentes em relação às habilidades práticas e emocionais a serem aprendidas pelas garotas, expressando noções variadas sobre a identidade feminina. Enquanto os homens criaram e comercializaram bonecas que simbolizavam a domesticidade e retratavam suas concepções de feminilidade, algumas mulheres e crianças inventaram e produziram bonecas com representações mais flexíveis sobre a infância de meninas e meninos.

Corbin (1991) percebe que, na primeira metade do século XIX, a boneca francesa representava uma mulher em miniatura e correspondia aos cânones femininos da época. A boneca adulta, assim, era um objeto que reproduzia as hierarquias sociais, fato que facilitava a consciência da identidade social dos indivíduos sendo, para as mulheres daquele período, uma importante mediadora da busca do eu, das intimidades e da construção de si. Por meio desse brinquedo, a criança poderia expressar suas confidências e lhe emprestar uma linguagem: “Bordar o enxoval da boneca, organizar um baile para ela, imaginar seu casamento delineiam o destino que virá; toda esta atividade compreende ademais uma sociabilidade infantil que permite o aprendizado dos papéis femininos e dos usos mundanos” (CORBIN, 1991, p. 482). Quando, no final do século XIX, a boneca se tornou bebê, ocorreu um empobrecimento desse conteúdo psicológico, pois o brinquedo convidaria apenas ao exercício do papel materno, reforçando o aprendizado de prendas domésticas.

Assim, podemos concluir que as revistas, ao trazerem a figura da boneca para a relação entre mãe e filha, ofereciam a possibilidade de a mulher exprimir seus sentimentos, sua imaginação e criação, pois ela produziria, para sua “filha boneca”, roupas e enxovais; elaboraria penteados; prepararia festas, por exemplo. Cultivar uma relação de boneca com a criança era um meio de a mulher expressar-se, buscando formas de manifestar seus desejos, já que, muitas vezes, isso lhe era negado na vida social. Por outro lado, essa relação pueril entre mãe e filha delinearia seus destinos maternos, reforçando os sentimentos de pureza e ingenuidade convenientes a ambas as figuras femininas.

Figura 45 – Bonequinhas

Fonte: Jornal das Moças, n. 2.029, 6 maio 1954, p. 24.

Ao propor um estudo sobre a relação mãe-filha, Becchi (2003) discute que as experiências aprendidas pelas meninas na tenra idade costumam acontecer por intermédio de um ser muito semelhante a si mesma, a mulher. A educação da menina, inscrita em um universo de iguais, é uma pedagogia do gesto e do corpo, através da qual se vê, muito mais do que a imitação e a partilha, o espelhamento.

Ocorrem, entre mãe e filha, relacionamentos de grande proximidade que chegam, às vezes, à reciprocidade. Não somente as meninas percebem a mãe como modelo, mas é a própria mãe que incentiva esse comportamento das filhas, cultiva-o de forma sedutora, colocando em prática uma pedagogia não diretiva, que parece muito diferente daquela utilizada no caso do filho homem [...]. Haveria, portanto, entre mãe e filha, desde a mais tenra idade, um tipo de pedagogia do espelho na qual a filha imita a mãe e a toma, por muito tempo, como objeto de amor exclusivo, como modelo (BECCHI, 2003, p. 50).

A autora afirma ainda que, por muito tempo, meninos e meninas eram criados juntos, seja por amas ou tutoras, seja por suas mães, mas uma linguagem minuciosa dos gestos distinguia, nas crianças, o feminino e o masculino. Essa linguagem gestual era empregada na educação da menina que, impedida de falar demasiadamente, considerada frágil e fadada a viver a natureza infantil durante toda a sua vida, permanecia no silêncio, aprendia gestos de afeto, de boas maneiras e ligados ao dia a dia do trabalho, o qual exercita precocemente. Enquanto os meninos aprendiam gestos de ganho nos trabalhos externos, as meninas aprendiam gestos de serviço no interior da casa (BECCHI, 2003).

A “mãe” é, portanto, uma figura cultural, cujos significados ultrapassam as determinações biológicas e são definidos socialmente. Sua imagem de modelo e espelho para a filha faz parte de um mosaico no qual se misturam valores e ideais de diversos grupos que participam de sua construção. A revista Cirandinha funcionava como um desses meios que reforçam, produzem e definem a maternidade, a feminilidade e a infância. Em uma de suas páginas, percebemos o destaque dado à relação entre mães e filhas, vistas como companheiras na costura, no silêncio e na solidão.

Figura 46 – Companhia da mamãe

A atividade de costura, conduzida a uma esfera lúdica, servia como um dos momentos para a distração da mulher, um meio pelo qual ela aliviava o cansaço, manifestando suas habilidades e entregando-se à criação. A menina, do mesmo modo, era convidada a acompanhar sua mãe, já que também precisava ter uma folga dos seus afazeres domésticos e escolares. Observamos que mãe e filha estão vestidas de maneira semelhante e são retratadas como amigas e companheiras. O sentimento que as une é o da abnegação. O sacrifício que fazem em nome do lar e da família as impulsiona à santidade. A costura e o bordado seriam resultados desse momento de interiorização e silêncio, talvez, mesmo, uma ocasião íntima de cumplicidade, de conselhos e desabafos.

A figura da mãe conselheira e estrela-guia para a filha é evocada em um dos editoriais de Cirandinha. Nele, a revista afirma que a menina, ao atravessar momentos de dúvidas, perigos e enganos na vida, tem como apoio a sua mãe, fonte divina de experiência: “Ela é a orientadora natural que Deus te destinou e, por isso, nas hesitações, dúvidas e receios, para ela não hás de ter segredos, nem reservas, nem mistérios. E, então, com seu amor e sua experiência, ela te guiará, tudo fazendo para que venhas a ser feliz” (CIRANDINHA, ano IV, n. 40, jul. 1954, p. 3).

Os avós, por sua vez, constituem a fonte mais sublime de experiência e respeito familiar por parte das crianças, o que pode ser demonstrado no editorial da revista O Tico- Tico, que tem como narrador e remetente o “vovô”. Em outro exemplar de Cirandinha, um texto aconselha que a menina seja a companhia para a avó, pois ela é “a segunda mãe que nós temos, porque é duas vezes nossa mãe”. A vovó aparece desenhada tricotando no sofá, em companhia da neta. A mensagem é semelhante àquela ensinada para a relação de cumplicidade entre mãe e filha:

Vovó sente-se só, e gosta de nossa companhia. Que é que custa dar à Vovó um pouco de alegria, permanecendo junto dela? Ela fala sempre as mesmas coisas, porque está velhinha e esquecida, mas isso lhe dá prazer e não custa escutar. [...] Se a netinha fugir de nós, não for boa e carinhosa, amiga e paciente, isso não nos entristecerá? (CIRANDINHA, ano IV, n. 41, ago. 1954, p. 10).

Assim, a inserção social da menina passaria pelos conselhos da mãe e da avó, por meio delas aprenderia a costura, a culinária, os cuidados da casa e a responsabilidade com os irmãos mais novos, além de outros segredos da vida adulta. O modo como seria educada

e a compreensão de seus sentimentos expressar-se-iam por meio da experiência dessas duas figuras ligadas maternalmente às filhas ou às netas. Essas mulheres representavam tanto a sabedoria guardada de herança para o futuro familiar da menina quanto o esquecimento, pois poderiam ser vistas como “objetos” solitários, recostadas num canto silencioso da casa, entregues aos seus pensamentos e fadadas ao cansaço.

Gilda de Mello e Souza (1987) percebe esse sentimento de reclusão feminina, ao analisar a relação das mulheres e seus vestidos no século XIX. A mulher daquele período tinha na moda o único meio lícito de expressão e, por meio dela, atirava-se à descoberta de sua individualidade, refazendo, inquieta, o próprio corpo, como uma artista que cria seus vestidos e imprime marcas nas maneiras de usá-los, de andar, de dançar, de parar, de observar e de concordá-los com seu corpo, salientando suas partes e chamando atenção aos detalhes.

É através dessa caligrafia dos gestos que a mulher revela a sua alma contida, reclusa, ligada aos objetos de que se apodera harmoniosamente, absorvendo-os no seu ritmo total. Encerrada em si, menos por uma necessidade de sua natureza do que por uma imposição da sociedade, reabsorve o impulso artístico, mergulhando a sua personalidade toda na obra de arte que inscreve no cotidiano (SOUZA, 1987, p. 104).

Ao que nos parece, a costura era compreendida como uma atividade saudável e conveniente à mulher. Tais características podem ser encontradas também no ofício de escritora, conforme debatido por Virginia Woolf em 1930, quando analisa o lugar das mulheres na literatura. Para a autora, a sociedade considerava o trabalho da escritora como uma atividade respeitável e inofensiva às mulheres, pois escrever não perturbava a paz do lar. Determinada em prosseguir nessa carreira que, para ela, deveria significar a prática da liberdade e da franqueza, Woolf menciona que precisou matar em si mesma o fantasma do “Anjo do lar”, o qual ela define como uma mulher

[...] extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que queria se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto (WOOLF, 2013, p. 12).

Virginia Woolf diz que somente conseguiu alcançar a imaginação em seu trabalho, redescobrir e farejar ao seu redor, quando matou o “Anjo do Lar”.Se pensarmos nesta figura como uma forma de bloqueio da liberdade e da criação, poderíamos nos indagar se as mulheres às quais se destinavam as revistas de costura dos anos de 1950 estariam livres para imaginar. As opções e os caminhos de trabalho lhes eram oferecidos previamente e traziam julgamentos morais e valores nos quais a sociedade se ancorava. O mundo no qual as revistas convidavam a leitora a imergir era o de fantasias e sonhos infantis, ou, em outras palavras, o habitat deste Anjo doméstico. Raramente as revistas analisadas mostravam às meninas e às mulheres outros espaços em que pudessem experimentar a liberdade de “se expressar em todas as artes e profissões abertas às capacidades humanas” (WOOLF, 2013, p. 14).

Se considerarmos que o tipo de costura proposto pelas revistas funcionava como um exercício de pormenores, é possível compreender o emprego demasiado de detalhes e ornamentos em roupas, enxovais e no mobiliário da casa como o resultado de uma grande valorização do trabalho manual, já que este poderia, ao mesmo tempo, ser um meio de subsistência e de distração. Talvez por isso se justifique a importância dada à costura, mesmo sendo aquele um período em que grandes lojas de departamentos investiam na comercialização da roupa pronta. O “faça você mesmo”, constantemente empregado no conteúdo das revistas femininas, pode ser visto a partir de muitos pressupostos: desenvolver a autonomia da mulher nos serviços que lhe cabem; ter a garantia de que suas prendas significarão a conquista de um bom casamento; ocupar seu tempo ocioso com “tarefas saudáveis”, por exemplo.

Quando pensam na lógica do conforto, Jean e Françoise Fourastié (1962) sugerem, na década de 1950, uma reorganização do lar e o abandono das ideias tradicionais de grandeza e luxo decorativo. Para a manutenção de uma casa, a economia de forças seria indispensável, visando libertar a mulher da alienação decorrente do incessante serviço doméstico. Os autores analisam que, enquanto uma série de melhorias tecnológicas foram aportadas ao trabalho dos homens, o espaço do lar onde estavam as mulheres ainda guardava equipamentos e mobiliário de difícil manutenção, disfuncionais e que geravam muito cansaço. Os trabalhos domésticos elementares e inúteis deveriam ser extintos, para que a mulher desfrutasse de tempo e se entregasse a outras atividades intelectuais. Dentre

as medidas sugeridas pelos autores, está a sobriedade no enxoval infantil e a retirada de ornamentos e acessórios usados muito mais por necessidade afetiva dos adultos do que propriamente das crianças. “La mode des berceaux ornés de dentelles, de volants et de fanfreluches est très dispendieuse, l’entretien en étant difficile ; la vieille idée génératrice de ces accessoires, l’idée de protection, est évidemment périmée” (FOURASTIÉ; FOURASTIÉ, 1962, p. 100)36.

Parece-nos, entretanto, pela análise dos conteúdos das revistas, que justamente a grandiosidade, o supérfluo e a decoração minuciosa são aconselhados no mobiliário da casa e no enxoval das crianças. Quando os discursos se voltam à economia das práticas, eles o fazem muito mais por razões atribuídas a uma carestia enfrentada do que visando proporcionar maior liberdade à mulher. Ora, abdicar de sua sujeição às atividades do lar seria abandonar a feminilidade e desamarrar-se dos laços familiares. Experimentar o conforto, para a mulher, era justamente buscar o prazer na grandeza e nos infindos detalhes tão enaltecidos nas fontes aqui analisadas.

Finalmente, depois de tanto “carregarem pedras”, mãe e filha buscavam contentamento na costura e no bordado. Talvez se deleitassem com a revista para as meninas, Cirandinha, na qual a mamãe é a figura evocada na seção de figurinos e bordados: “Mamãe vai fazer para mim”, pois a ela era demarcada a missão de deixar à sua filha o legado da costura. O papai e o filhinho, por sua vez, usufruíam juntos de um