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Ao mesmo tempo em que as revistas infantis da editora O Malho dialogavam com a escola, trazendo conteúdos formais e poemas persuasórios, inúmeros personagens, histórias em quadrinhos, páginas de montar e passatempos eram oferecidos às crianças como divertimento. Ao se incumbirem de uma instrução diferente daquela recebida dentro da escola, as revistas seriam polvilhadas de fantasia e de publicidade.

Figura 13 – Publicidade de Alginex

Fonte: O Tico-Tico, Edição do Cinquentenário, out. 1955, p. 47.

A literatura presente nas revistas Tico-Tico e Cirandinha deixou de ser como a do fim do século XIX, que essencialmente trazia recomendações de higiene e puericultura, ela continha o que Becchi (1998) chama de uma “pedagogização da infância”: veiculava-se, sobretudo por meio das ilustrações, a imagem de uma criança perfeita, e tal perfeição não estaria fora do alcance de seus leitores. Essas imagens projetadas funcionam para mostrar a possibilidade de construir uma criança melhor e os produtos a serem utilizados para isso.

Essa “pedagogização da infância”, que abriga uma idealização da criança perfeita, educada em família, agradável à vista, virtuosa e superdotada, se faz por meio de um espaço privilegiado: livros, revistas, jornais para mulheres, textos publicitários e programas televisivos, por exemplo. Há um esforço, na publicidade, para dissimular todos os infortúnios que a sociedade adulta coloca à criança para submetê-la às suas regras, propagando imagens da criança feliz num mundo onde a infância não é, necessariamente, feliz (BECCHI, 1998).

É possível perceber, no início do século XX, a disseminação de uma série de desenhos, ilustrações de livros e personagens animados que influenciavam não só o imaginário infantil, como também a própria imagem de infância.Personagens de ficção, bonecos e bichos de pelúcia dotados de características humanas começavam a rodear as crianças. Uma das capas do Almanaque d’O Tico-Tico evidencia a presença da “criança feliz” acompanhada de amigos e de animais.

Figura 14 – Capa de 1953

Fonte: Almanaque d’O Tico-Tico, 1953.

Ao estudar o periódico infantilSesinho (1947 a 1960), destinado às crianças das famílias operárias, Brites (2004) destaca a presença de diversas histórias cujos personagens eram animais que portavam características humanas e valores morais. A sapiência era demonstrada através de exemplos da natureza, considerada, nessa literatura, como a melhor

“mestra”. Coligiam-se dela valores como prudência, persistência e esforço, transformando- os “em dimensões inquestionáveis – porque naturais – da vida” (BRITES, 2004, p. 67).

Da mesma forma que em Sesinho, encontramos na revista Cirandinha inúmeras histórias nas quais os animais são os mentores da educação da criança. No poema de Galvão de Queiroz, intitulado “Formiguinha ajuizada”, o autor se vale dos personagens da fábula “A cigarra e a formiga” para reinfundir lições ligadas aos valores adultos, como o matrimônio. O próprio título impõe um julgamento sobre a atitude da personagem, prescrevendo à leitora uma conduta desejável.

Figura 15 – Formiguinha ajuizada

Fonte: Cirandinha, ano IV, n. 37, abr. 1954, p. 21.

O tema do casamento – o lugar privilegiado do amor – aparece nas revistas infantis e adultas como a solução óbvia para a realização dos casais.Isso porque o matrimônio ordenaria a vida dos solteiros e daria sentido à vida das moças. Tal sentido só se completaria efetivamente com o relacionamento bem cultivado e com a maternidade. Desde

pequena, a menina era acostumada a ler e ver imagens de casamento em poemas, quadrinhos e outras histórias, nas quais se consagrava o final feliz da vida conjugal de bichos, princesas e outras pessoas. Além disso, algumas páginas que propunham um momento de divertimento às meninas também reforçavam esses mesmos valores.

Figura 16 – O noivo e a noiva

Fonte: Cirandinha, ano I, n. 1, abr. 1951, p. 20-21.

Porém, esse “final feliz” da vida da mulher, ilustrado com tanta veemência no decorrer da infância, poderia, na fase adulta, desfazer-se facilmente em fracassos, desapontamentos e traições. Em contato com a literatura das revistas femininas, as mulheres aprenderiam a conformar-se e a ficar com os maridos a quaisquer custos para salvar o casamento. Por meio da abordagem de relacionamentos fracassados, inúmeras colunas alertavam as mulheres para a importância de fazer uma boa escolha e não correr o perigo de ficar solteiras ou malcasadas.

Em vista disso, a preparação para um bom casamento era incentivada em muitas histórias e conselhos desde a tenra idade das meninas, como mostram as páginas de Cirandinha. Valendo-se, algumas vezes, do julgamento e da autoridade da figura masculina, o conteúdo da revista voltava-se, sobretudo, ao ensino de algumas tarefas concernentes a uma “boa esposa”: tirar manchas do tecido, saber a equivalência de pesos e medidas na cozinha para o preparo de suas receitas, fabricar uma espátula de madeira para servir bolos, descascar a cebola sem irritar os olhos, limpar espelhos manchados e conhecer alguns segredos da costura, por exemplo. Obviamente, todos esses ensinamentos não bastariam, se a garota fosse muito distraída. Era preciso manter os pés no chão (de casa), tomar cuidado com as futilidades, com as influências externas que comprometeriam a organização do lar. Quantas moças teriam deixado todos os seus afazeres em favor da radionovela, esse perigo sedutor que bailava aos ouvidos pelas ondas do rádio! Quantos lares estariam sujeitos a perecer, graças à insensatez de muitas mulheres... Mas tal risco não correria a leitora de Cirandinha, já acostumada a ler os quadrinhos que a salvaguardariam de possíveis desastres...

Figura 17 – Diva

Fonte: Cirandinha, ano VI, n. 64, jul. 1956, p. 8-9.

Para consertar o fracasso do feijão e, pelo menos, garantir a sobremesa, a mesma revista, numa página adiante, ensinará a menina a ser uma boa doceira, e naquela cozinha não há qualquer rádio para atrapalhar a culinária. Também não há pausa para a radionovela ou “distrações frívolas”, como observamos em outro exemplar que, ao ensinar o preparo do doce “Cabelos de Anjo”, permite que a menina, durante o longo cozimento da receita, aproveite o tempo para repassar alguma de suas antigas lições escolares, “a fim de recordar, o que é muito bom” (CIRANDINHA, ano V, n. 50, maio 1955, p. 23).

Percebemos, assim, em muitas histórias na revista Cirandinha, os anseios dos adultos de educar as crianças para o que a sociedade esperava delas, prescrevendo seus papéis como futuras mulheres. Mesmo que adotassem a proposta da recreação, os editores não deixavam de imprimir seus discursos autoritários na educação da menina, atenuando-os com a linguagem descontraída dos quadrinhos.

Ao analisar a história da literatura moderna para crianças, Ewers (1998) discute a literatura autoritária e a antiautoritária, e exemplifica com a Alemanha nos séculos XVIII

ao XX. Na literatura autoritária, a transmissão de valores é feita através de emblemas fixos, julgamentos imutáveis, os quais a criança deve adotar sem refletir. Às vezes, a narrativa traz um conflito de um personagem, que, ao fim, demonstra uma transformação interior e se liberta. A presença de um autor adulto revela valores próprios de seu mundo, do qual se depreendem várias características transferidas aos personagens dotados de autoridade. Esses personagens são, portanto, a expressão do adulto: eles instruem e reprimem, uma vez que, supostamente, seriam os únicos capazes de compreender os problemas das crianças.

Nos editoriais das revistas infantis da editora O Malho, podemos perceber a presença dessa narrativa autoritária, representada, por exemplo, por professores que desejam sempre instruir as crianças. Tal instrução privilegiava, entre outros, temas como amor à família, à pátria e a Deus.

Retomando aqui a ideia de Ewers (1998), quando se refere a uma literatura autoritária, mesmo quando não há um narrador adulto que se dirige à criança, há uma figura infantil “pura”, falando em primeira pessoa na narrativa. Essa figura é sempre uma “criança-modelo” e se dirige às outras para transmitir os valores adultos. Na revista Cirandinha, podemos encontrar uma personagem que faz um julgamento de si própria, chamada Senhorita “Maria-Vai-Com-As-Outras”. Interessante notar que a “Senhorita” ficará de costas à leitora, talvez por não ser uma criança-modelo e pura. Na cena, há também as meninas “corretas”, são aquelas autorizadas a lhe apontarem o dedo.

Figura 18 – Gente que não brilha

Fonte: Cirandinha, ano IV, n. 39, jun. 1954, p. 9.

Assim, o julgamento das atitudes condenáveis da menina será feito tanto pelas meninas virtuosas quanto pelos homens ou meninos, para os quais a menina ou a mulher deveria sacrificar-se e demonstrar suas habilidades. Numa das histórias, traduzida por Galvão de Queiroz e intitulada “O Natal da menina preguiçosa”, a pequena Mariquita

sofrerá o deboche dos meninos, a humilhação e as consequências de suas imprudências, pois não sabia cozinhar, cerzir as meias e cuidar de sua aparência: “Quer enfiar uma agulha, porém... não sabe enfiar... maneja mal a tesoura, e só faz estraçalhar os babados do vestido que queria consertar!”. No final da história, a menina imprudente deixa seu vestido todo inutilizado e não pode participar dos festejos natalinos: “Por não saber trabalhar, e por ter agido mal, teve que ficar metida na cama, triste, escondida, sem correr e sem brincar, todo o dia de Natal” (CIRANDINHA, ano III, n. 33, dez. 1953, p. 16-17).

Esta literatura dirigida às meninas empenhava-se, portanto, em aconselhá-las a agir de acordo com o que era esperado de seu sexo, pois, ao contrário, sofreriam fortes punições morais da sociedade. A começar pela mais tenra idade, era importante garantir que as meninas empregassem todos os seus esforços no aprendizado de situações favoráveis ao casamento. Se quisessem viver a expectativa do grande dia da chegada de um marido, não deveriam ser como a coitada da Maricota, mas, sim, como “a menina boazinha”.

Figura 19 – A menina boazinha

Fonte: Cirandinha, ano I, n. 1, p. 18.

Numa literatura antiautoritária, por outro lado, as experiências infantis narradas são independentes dos valores adultos e, até mesmo, se põem em contradição com eles. O autor real, nesta perspectiva, empresta sua voz adulta e sua arte para deixar expressar a perspectiva da criança, seus julgamentos e experiências, sem instruí-la quanto ao modo de se comportar diante dos adultos (EWERS, 1998). Em raras situações, percebemos, nas histórias em quadrinhos, a ênfase nas experiências infantis, como as da personagem Caxuxa, que aparece em vários exemplares de Cirandinha. Caxuxa é caracterizada como uma criança negra, com baixa escolaridade e que vive no campo, em oposição à suposta “civilidade” das leitoras de Cirandinha. Tais características, enfatizadas pela ilustradora Giselda Mello, intencionam o humor, talvez mesmo por meio do deboche da situação de vida de Caxuxa. Mas, ao fazê-lo, as histórias de Giselda escapam de uma literatura autoritária que é marcante em toda a revista. Caxuxa, em diversas situações, é livre para demonstrar seus próprios julgamentos, com seu modo peculiar de expressar-se e de divertir-

se, por vezes contestando ordens dos adultos e elaborando atitudes a seu modo. A ela não cabe, como função principal, moralizar a leitora.

Histórias em quadrinhos como as de Caxuxa talvez não estivessem presentes nos livros e manuais escolares do período, o que nos permite imaginar que uma literatura que não tivesse o objetivo de instruir e moralizar causaria muita indignação entre professores. Enquanto estes desaprovavam as histórias em quadrinhos voltadas ao divertimento, o mercado editorial para crianças vislumbrava seu sucesso na publicação de gibis norte- americanos, como Pato Donald e Mickey, por exemplo.

Um exemplo dessa indignação manifestou-se em uma matéria do jornal A Noite, de 1956, na qual encontramos uma referência ao programa da TV Tupi, o “Teatrinho Peteleco”25. Tratava-se de um espetáculo feito com bonecos criados porGiselda Mello: Caxuxa, Coquinho, Sinhá, o gato Pechincha, entre outros, possivelmente eram os personagens já conhecidos pelas crianças que liam as histórias em quadrinhos da editora O Malho. A reportagem apresentava a programação infantil e comentava o trabalho de Giselda Mello na televisão, fazendo críticas ao conteúdo e à linguagem das histórias:

Particularmente, temos contra o “Peteleco”, algumas restrições bastante graves, se realmente seu objetivo essencial é divertir as crianças. “Peteleco” anda, nestes últimos programas, muito anti-pedagógico, usando gíria e com sátiras que nunca são recomendáveis e de difícil assimilação pelas crianças. Agrada realmente aos adultos, mas até que ponto pode uma criança identificar-se e apreender o objetivo de suas sátiras? Quem escreve para crianças sabe muito bem como elas são exigentes em suas críticas. Ultimamente “Peteleco” tem agradado mais as crianças pelos seus pinotes e “caretas” do que realmente pelo que diz e faz. [...] O “Teatrinho Peteleco” da semana passada não foi um dos melhores. Muito fraco e sem nenhuma intenção pedagógica [...].

Estas críticas talvez abarquem as mesmas intenções educacionais de um movimento em torno da literatura infantojuvenil da década de 1950. Diversos autores26 escreveram

25Jornal A Noite, edição 15.294, 19 abr.1956,segundo caderno, p. 2. Disponível em Fundação Biblioteca

Nacional: http://memoria.bn.br . Acesso em: 21 jul. 2013.

26 Por exemplo, Cecília Meireles, Lourenço Filho, Júlio de Gouveia, Thales Castanho de Andrade, entre

sobre a literatura infantil a partir de uma perspectiva escolanovista e defendiam uma essência bela, poética, lírica e inocente da criança, o que levou as escolas Normais27 paulistas a incluírem a temática da literatura infantojuvenil no currículo de 1957. Defendia- se que a criança, portadora de uma liberdade natural, poderia ser amoldada pelo meio, por isso estaria vulnerável à massificação das histórias em quadrinhos. Ao dirigir-se às normalistas, alguns intelectuais defendiam a escola como um espaço de proteção da criança, temendo

[...] a destruição do hábito de leitura, o ianquismo desnacionalizante, o incentivo ao crime, à perversão e à subversão dos mais “altos valores” consagrados pela humanidade. Os quadrinhos, dizem os autores, não instruem nem edificam, simplesmente divertem a criança, aproveitando-se disso para infiltrarem-se subversivamente no ambiente das melhores famílias e no cérebro dos pequenos, destruindo os mais fortes esforços da escola, respaldados estes por juízes, Igreja e pelos nossos grandes homens de bem. E, principalmente, os quadrinhos são o mundo da rua, um mundo em apocalipse moral, do qual é preciso preservar a infância (MELLO NETO, 1990, p.26).

As revistas infantis analisadas, Tico-Tico e Cirandinha, faziam parte de um movimento discursivo da década de 1950 em torno da função educativa da literatura infantojuvenil. Tomando como função instruir e educar, essa literatura estava fortemente vinculada à escola, pois seria esse o espaço privilegiado para alfabetizar e ensinar a criança a ser leitora. Porém, a literatura que aparece nas revistas não retrata apenas a criança escolar, já que a concorrência dos gibis, a influência da publicidade e a presença dos super- heróis nas diversas mídias, suscitaram transformações no mercado editorial brasileiro.

Podemos supor, assim, que as crianças das revistas Tico-Tico e Cirandinha são tanto crianças idealizadas, sadias e obedientes, produzidas para a escola, para a família, para o mundo do trabalho ou do matrimônio, quanto crianças que aparecerão, em algumas páginas, provocando risos, devaneios, espantos, porque falam a seu modo, brincam, sujam- se, imaginam e desafiam os familiares, escapando de suas tentativas autoritárias de conceber e narrar a infância. Os adultos, mesmo portadores de sabedoria, conselho e autoridade, não se sairão vitoriosos em todas as histórias...

27O Curso Normal tinha o objetivo de formar professores para atuarem no magistério de ensino primário e era

oferecido em cursos públicos de nível secundário (hoje Ensino Médio). A primeira Escola Normal brasileira foi criada em 1835 em Niterói, no Rio de Janeiro. Ver

<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_escola_normal_no_brasil.htm> Acesso em: 13 out. 2014.

Figura 20 – Caxuxa

Capítulo 3

Vestindo-se com distinção: Você sabe causar uma boa impressão?