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Dispositivos teórico e metodológico: a construção do objecto de estudo

CAPÍTULO II – ESTRATÉGIAS DE INVESTIGAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DO

1. Dispositivos teórico e metodológico: a construção do objecto de estudo

No âmbito das ciências sociais, a análise das políticas públicas é uma perspectiva de entender o social e a sua regulação, um modo de estudar a política através da acção dos actores. Este olhar empírico sobre as políticas públicas é por nós partilhado no sentido de nos orientar no processo da investigação, na definição dos dispositivos teórico e metodológico, na construção do nosso objecto de estudo. Trata-se de um processo circular e de interacção entre a teoria e a pesquisa empírica, em que o debate em torno da prevalência da uma ou de outra deixa de ter sentido; o fundamental é valorizar o que o património acumulado de interpretações pode trazer à descoberta do terreno e o que, por sua vez, o escrutínio empírico contribui para novas conceptualizações do problema. A pertinência deste exercício metodológico liga-se à capacidade de a teoria alimentar uma constante confrontação com a pesquisa empírica; significa que a teoria não é aplicável mas sim utilizável (Ferreira, F. I., 2005: 124 citando Friedberg, 1993). Este posicionamento orienta-nos do seguinte modo:

– Por um lado, a teoria surge como o ponto de partida, o primeiro código de

leitura (Almeida & Pinto, 1986: 56) para o reconhecimento do terreno a pesquisar, para a construção de dispositivos heurísticos e para a recolha de informação sobre o impacto da medida política da criação dos CME em cada espaço local;

– Por outro lado, a exigência da pesquisa empírica, a grande abrangência do espaço e do tempo a investigar – onze CLE/CME da AMLT/CULT ao longo de quase duas décadas –, a variedade do corpus inventariado e/ou construído1 colocam-nos

1 Quando falamos de corpus inventariado e/ou construído referimo-nos às fontes documentais dos

CLE/CME das 11 autarquias da AMLT/CULT (Regimentos Internos, Actas, Convocatórias e Outros documentos), às entrevistas aos presidentes das câmaras municipais e aos vereadores da educação e às notas de campo dos CLE/CME (cf. Anexo II, Inventário geral das notas de campo; Inventário geral da documentação; Inventário geral das entrevistas dos 11 CLE/CME da AMLT/CULT). Quando falamos de produtos resultantes do tratamento do corpus falamos das monografias, das checklists dos CLE/CME e da análise de conteúdo do corpus documental dos CLE/CME. Também utilizamos a referência de acervo documental dos CLE/CME na mesma acepção atribuída ao corpus documental (inventariado e/ou construído).

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perante a necessidade de reformular a metodologia inicialmente prevista (no projecto de investigação2), de ajustar o quadro teórico de referência e de nos aproximarmos a novas abordagens disciplinares (Afonso, N., 2005: 24). Com o desenvolvimento da reflexão e da pesquisa surgem novos dados que nos fazem questionar e reflectir sobre os fundamentos epistemológicos e metodológicos desta investigação.

Trata-se de uma atitude mental (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 2005: 46), na linha do pensamento durkheimiano, de construir o objecto de estudo ultrapassando as evidências do senso comum, mantendo a «distinção entre o objeto «real», pré- construído pela percepção, e o objecto da ciência como sistema de relações construídas propositalmente» (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 2005: 46). Esta atitude mental, esta forma de encarar a investigação como um espaço e um tempo de produção de conhecimento, «um discurso sobre a realidade cujo processo de produção se fundamenta na relação entre a observação empírica rigorosa e sistemática e a sua reconstrução narrativa com base no raciocínio lógico» (Afonso, N., 2005: 21), insere-se nos

paradigmas interpretativo e crítico no sentido de se analisar «a realidade social no contexto da estrutura de referência dos actores sociais e não na do observador da acção» (Afonso, N., 2005: 34). Na perspectiva interpretativa o trabalho do investigador centra- se nos actores, nos significados que estes atribuem às suas acções e às dos outros com quem interagem (Guerra, 2006: 17).

Optámos por metodologias qualitativas que investem no trabalho de campo, no inquérito no terreno, mas também na pesquisa documental; utilizámos técnicas diversas de recolha, de produção, de tratamento e de análise de dados (descritas em pormenor ao longo deste capítulo). Adoptámos uma postura compreensiva em que o foco da análise incide sobre o sentido da acção e as diferentes racionalidades dos actores, partindo do pressuposto «de que as lógicas que regem o conjunto social estão também presentes nos microcosmos que as compõem, mas que é necessário também multiplicar os terrenos de observação para dar conta da diversidade do social» (Guerra, 2006: 31).

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Para se conhecer o projecto inicial de investigação consultar o seguinte artigo: Cruz (2007). Conselhos Municipais de Educação: política educativa e acção pública. Sisifo - Revista de Ciências da Educação, 04, 67-76. Disponível em http://sisifo.fpce.ul.pt.

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Este desafio de passar do particular ao geral, de descobrir em cada terreno observado as convergências e as divergências nos processos políticos susceptíveis de estar presentes em múltiplos contextos similares serve-nos de inspiração para a definição de aspectos estruturantes da investigação: referimo-nos à tipologia do estudo desenvolvido e aos dispositivos teórico e metodológico arquitectados. Conciliam-se duas lógicas de investigação que se cruzam e se complementam: o estudo intensivo e monográfico com o estudo extensivo e comparativo.

O estudo intensivo e monográfico remete-nos para as abordagens naturalistas, «para a investigação de situações concretas existentes e identificáveis pelo investigador sem intervenção, sem manipulação física e deliberada de quaisquer variáveis» (Afonso, N., 2005: 43). Esta primeira fase do plano de investigação, apresentada de forma breve, caracteriza-se por ser intensiva e vertical, pois abrange cada um dos onze CLE/CME (num período alargado de tempo) e abarca um conjunto de metodologias e de técnicas qualitativas como o trabalho de campo (as notas de campo), a pesquisa documental, a entrevista semidirectiva, a checklist 3 e a análise de conteúdo. Tem uma dupla vertente: por lado, é um trabalho no terreno, de visitas de campo e de pesquisa de arquivo; por outro, é um trabalho de oficina, artesanal e minucioso, tanto na organização e no tratamento do corpus inventariado como na redacção das breves monografias. Aproxima-se, de algum modo, da tipologia dos estudos realizados (simultaneamente) em múltiplos locais referenciados por Bogdan & Biklen (1994) como sendo de indução

analítica, metodologia utilizada quando o foco da investigação incide num problema ou numa questão específica: «Procede-se à recolha e análise de dados a fim de desenvolver um modelo descritivo que englobe todas as instâncias do fenómeno» (Bogdan & Biklen, 1994: 99). Este modelo descritivo é o que estrutura as monografias, as quais imprimem ao estudo intensivo a originalidade de estabelecer um diálogo enriquecedor com as abordagens de carácter histórico, de privilegiar a temporalidade do processo político de cada CLE/CME e transmitir a visão segmentada e particularizada do que é a política educativa em cada contexto local.

3 O termo checklist decorre da natureza do próprio instrumento heurístico, já que escrutina e controla a

fiabilidade dos dados recolhidos na pesquisa documental sobre o processo de transição/instalação do CLE/CME, sobre a constituição, regimento e funcionamento, agendas das reuniões e circulação de informação no CME. Começa por ser um projecto de inquérito às autarquias. O reconhecimento do terreno leva-nos a alterar a estratégia metodológica e a optar pela checklist, conforme se explica posteriormente.

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O estudo extensivo e comparativo surge no cruzamento e na complementaridade do estudo intensivo e monográfico. Esta segunda fase do plano de investigação caracteriza-se pela apropriação que se faz do dispositivo metodológico anterior e do seu esquema de categorização de análise; todo o corpus inventariado e/ou construído é transversalmente trabalhado à luz das quatro entradas analíticas correspondentes às quatro dimensões de análise. Este exercício põe em evidência as semelhanças e as dissemelhanças nos processos de apropriação da medida política nos onze contextos locais e valida, empiricamente e de um modo indutivo, as hipóteses explicativas que se avançam a propósito da política dos CME à escala nacional. «A comparação indutiva não é somente uma descrição, ela é também uma explicação (ou mais uma tentativa de explicação)» (Hassenteufel, 2005: 114). Passa-se da segmentação e da descrição do estudo intensivo e monográfico (dimensão local da política) para a condensação e interpretação de dados do estudo extensivo e comparativo (dimensão nacional da política) desenvolvida em quatro eixos de análise.