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O papel do conhecimento

CAPÍTULO I – A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: ACÇÃO PÚBLICA,

3. O papel do conhecimento

A sistematização deste processo de problematização e de construção do objecto de estudo, através da relação articulada destas três linhas de análise  acção pública, regulação e conhecimento  permite-nos avançar para a abordagem do papel do conhecimento na regulação da acção pública em educação. Ancoramos este exercício teórico no Projecto Knowandpol, principalmente nos estudos orientados para a descrição «da genealogia e do processo de desenvolvimento de cada acção pública, identificando e caracterizando o papel desempenhado pelo conhecimento nesse processo» (Barroso, 2009a: 988; 2011: 11-25), mas também nos textos de reflexão teórica sobre o papel e/ou a utilização do conhecimento nas políticas e acção públicas (Delvaux, 2009; Mangez, 2011; Barroso, 2009a, 2009b, 2011; Barroso & Afonso, 2011a, 2011b; Carvalho, 2006, 2009, 2011a; Carvalho & Costa, 2011b; Afonso & Costa, 2011; Costa, 2011; Menitra, 2011; Hipólito, 2011; Figueiredo, 2011).

A utilização do conhecimento na política está vulgarmente associada à decisão e ao recurso a especialistas que fazem «uma abordagem que ajuda as pessoas a tomarem

22 Adoptamos as três sequências-chave de uma política pública referenciadas por Hassenteufel

(Hassenteufel, 2008: 9).

23 O conceito de dependência do caminho (Path Dependence) foi inicialmente usado pelos economistas

para explicar que, mesmo que haja uma solução mais eficaz para uma empresa, essa solução pode não ser adoptada. As escolhas feitas em determinado momento, num dado contexto histórico, podem ser condicionadoras das decisões futuras. A ciência política apropriou-se destas análises para entender os processos de emergência e de mudança das instituições. Neste contexto, os neo-institucionalistas utilizam este conceito para evidenciar o peso e o impacto que as escolhas das instituições no passado têm nas decisões do presente, dando conta do processo de continuidade das trajectórias das políticas públicas e da evolução dos regimes políticos. Para North (1990), a dependência do caminho tem menos que ver com as tecnologias do que com o comportamento dos actores no seio das instituições. Estas análises explicam a estabilidade das instituições e a resistência à mudança (Palier, 2004: 318-326)

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decisões bem informadas acerca de políticas, programas e projectos, colocando a melhor evidência disponível no coração do desenvolvimento das políticas e da sua implantação» (Barroso, 2009a: 989, citando Davies, 2004: 2). Conforme nos lembra Carvalho (2006), ao falarmos de conhecimento e de decisão política temos que ter uma visão alargada do que se entende por decisão24 e por decisor político e encarar uma multiplicidade de actores posicionados em diferentes espaços e implicados em todos estes processos. Este autor refere o seguinte:

A categoria «decisor político» tem um alcance mais amplo, compreendendo os actores sociais dotados de autoridade em matéria de políticas públicas de educação (situados em órgãos nacionais/centrais ou subnacionais/descentralizados, organizações locais e que tomam decisões e produzem materiais de carácter legislativo ou normativo no sector educativo), e os actores que, inseridos em contextos sociais organizados, participam nos debates públicos sobre as políticas educativas (e.g., media, associações profissionais, sindicais, etc.) (Carvalho, 2006: 37).

Delvaux (2009) também nos chama a atenção para as definições demasiado restritivas de conhecimento, entendido unicamente como conhecimento científico. Quando estabelecemos a relação entre o conhecimento e acção pública e analisamos a selecção e a articulação dos diferentes saberes num determinado processo político percebemos a implicação de uma multiplicidade de conhecimentos (de diferente tipologia) e de saberes «laicos»25, «muitas vezes formulados de maneira rudimentar e enraizados, essencialmente, em observações e análises subjectivas» (Delvaux, 2009: 962, citando Sturdy, 2008: 4-5). Para Delvaux, a perspectiva abrangente da noção de conhecimento não o leva a considerar como conhecimento qualquer saber incorporado e esclarece:

A designação de conhecimento para tudo o que pretende dizer o real e é transmitido por meio de linguagem oral, escrita (textos, quadros estatísticos …), ou iconográfica (gráficos, fotografias, desenhos, filmes …). As produções científicas inscrevem-se nos contornos deste tipo de definição, mas elas coabitam e estão em competição com uma variedade de saberes profissionais, profanos, dos utilizadores, do governo, dos media … que também consideramos como conhecimentos (Delvaux, 2009: 962-963).

24 Esta visão alargada decorre da perspectiva de análise das políticas e da acção públicas e especialmente

da análise cognitiva que considera que a decisão política não está unicamente nas mãos dos actores pertencentes a órgãos nacionais, mas também em actores pertencentes a órgãos e entidades transnacionais e locais. Consequentemente, a decisão política está presente noutras etapas, nomeadamente na operacionalização da política quando os actores locais interpretam e aplicam as orientações políticas tanto transnacionais como nacionais, adaptando-as aos seus contextos e aos seus interesses. Neste contexto convém mais falar de processo político.

25 Mangez (2011) considera este tipo de conhecimento laico (leigo) extremamente importante para os

decisores políticos. Quando se encontram e debatem os problemas «com professores, com estudantes, com pacientes, com médicos e/ou outros profissionais» (Mangez, 2011: 199) estão a integrar (informalmente) este tipo de conhecimento na decisão política.

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Neste contexto de análise a mobilização do conhecimento alarga-se a todo processo político, desde a formulação do problema à decisão política e à operacionalização, envolve uma multiplicidade de conhecimentos e de saberes, entre os quais, o «conhecimento estatal, o conhecimento investigativo, o conhecimento teórico, o conhecimento prático» (Delvaux, 2009: 989) e implica actores diversos posicionados em diferentes espaços institucionais, níveis e escalas de acção pública, «simultaneamente produtores, tradutores e utilizadores» (Delvaux, 2009: 963). Por conseguinte, a relação entre conhecimento e uma determinada acção pública é fortemente influenciada por quatro factores estruturantes que se encontram interligados e interdependentes: os tipos de conhecimentos mobilizados e mobilizáveis; a natureza das políticas; os tipos de actores (produtores e/ou tradutores e/ou utilizadores); os modos de regulação (Barroso, 2009a: 992). A propósito da associação destes factores, e a título de exemplo, Barroso argumenta o seguinte:

O conhecimento mobilizado não é o mesmo se as políticas incidirem sobre o currículo, ou a avaliação, ou a formação vocacional, etc.; ou se estivermos num sistema de regulação burocrática ou pós-burocrática; ou se os actores envolvidos na definição e aplicação das políticas forem directores, ou professores, ou técnicos da administração, ou autarcas, ou especialistas, etc. (Barroso, 2009a: 992).

Esta forma de entender a relação entre acção pública, regulação e conhecimento reporta-nos a um processo social de grande complexidade em que o conhecimento é cada vez mais um «recurso significativo, capaz de conferir vantagens competitivas» (Mangez, 2011: 198, citando Pons & van Zanten, 2007) e um instrumento de governança, para alterar as representações do mundo e da acção pública, para organizar debates públicos, para orientar o futuro das comunidades e para argumentar e legitimar políticas.

Todos estes processos de construção e de utilização do conhecimento, inseridos numa dada acção pública, abrangem actores e contextos (espaço e tempo) específicos. A este propósito, Mangez propõe-nos a hipótese analítica de regime de conhecimento26

26 Segundo Mangez a contextualização do conhecimento evoca «o que se sabe», mas também «o que se

é» como comunidade (como comunidade transnacional e/ou nacional e/ou regional e/ou local) ou como indivíduo (ser um perito internacional ou nacional, e/ou especialista local). Representa «uma dimensão “pessoal” e histórica do conhecimento» (Mangez, 2011: 206 citando Lawn et al., 2010). Dito de outra forma, a interpretação que cada um faz do mundo depende do seu próprio contexto nacional, o que explica que a razão e a forma como conhecimento adquirem novos significados enquanto circulam. Estes argumentos em torno do regime de conhecimento servem para defender a relevância dos contextos

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para nos ajudar a compreender o conhecimento como um «constructo» social «construído por grupos sociais que podem estar localizados em contextos marcados pelo seu próprio passado e pelas suas posições em relação a outros actores e contextos» (Mangez, 2011: 205). Com esta hipótese estabelece as «relações possíveis entre os mecanismos políticos e institucionais, a tradição cultural e a utilização do conhecimento, a nível nacional» e argumenta que os diferentes regimes de conhecimento na Europa (apesar da europeização) têm significados próprios em função de cada história nacional, do percurso histórico de cada país. Pegando nesta noção estabelecemos uma analogia à escala local. Assim como a história de cada país influi nos regimes de conhecimento da Europa, a história de cada espaço local, as opções passadas dos actores locais, para além de influírem no seu próprio regime de conhecimento também influem no nacional. Ou seja, os regimes de conhecimento introduzem na relação entre conhecimento e acção pública uma invariante fundamental que é a questão da historicidade dos processos políticos em cada espaço nacional, mas também nos diferentes espaços locais:

Ter em consideração a hipótese do regime do conhecimento implica dar novamente ênfase à História. Na literatura sobre política pública encontra-se uma diversidade de conceitos que abarcam a forma como a história molda o presente. Entre os diversos conceitos (incrementalismo, herança cultural, legado político), o que detém maior sucesso é o de «path dependency» («dependência do caminho»). Estes conceitos são normalmente aplicados a sectores específicos para perceber porque determinadas decisões são (ou não) tomadas. Aqui, a perspectiva é mais vasta quando aplicamos o conceito de «path dependency» às formas de lidar com o conhecimento nas políticas públicas, o que pressupõe a existência de uma «knowledge path dependency» (Pons & van Zanten, 2007). O princípio base que permite relacionar o passado com o presente assenta no facto das escolhas e convenções do passado tenderem a moldar e a definir o que é exequível e imaginável actualmente (Mangez, 2011: 208).

4. Descentralização das políticas educativas e a recomposição do papel do Estado