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Escalas de regulação: transnacional, nacional e local

CAPÍTULO I – A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: ACÇÃO PÚBLICA,

2. Regulação das políticas públicas

2.1. Escalas de regulação: transnacional, nacional e local

«Não é mais possível restringir os espaços nacionais de políticas públicas, [pois] toda a política pública se inscreve em interacções que ultrapassam o simples quadro nacional» (Hassenteufel, 2008: 18). Esta afirmação ajuda-nos a introduzir a ideia de que a construção e a coordenação das políticas e a acção educativa não se resumem, nem se restringem à escala nacional, antes se alargam às escalas transnacional e local. Ou seja, as principais mudanças nos processos de regulação das políticas públicas em educação desenvolvem-se em três escalas de regulação complementares – transnacional, nacional e local – na medida em que se partilham recursos e processos em espaços infra e supra nacionais. Interessa identificar as origens e os efeitos destes processos de regulação e, principalmente, perceber o dinamismo e a complexidade destas mudanças de escala muito para além das transferências, dos deslocamentos de competências entre a Europa, os estados nacionais, as regiões e as autarquias no que possam significar de modificação na regulação da acção pública em educação.

Para Barroso, a regulação do sistema educativo deve ser entendida como um processo complexo «que resulta mais da regulação das regulações, do que do controlo directo da aplicação de uma regra sobre a acção dos “regulados”» (Barroso, 2003: 40). Na sua opinião, mais do que regulação devemos falar de uma multirregulação, já que muitas das acções que garantem o funcionamento do sistema educativo são constituídas por configurações de regulações que muitas vezes se anulam entre si ou, pelo menos, se afastam da sua intenção (princípios, objectivos, processos e resultados). Os estudos comparados de carácter internacional sobre os modos de regulação estatal, no domínio da educação, dão disso conta, assim como evidenciam a existência de aspectos comuns nos novos modos de regulação política no campo educativo12; Barroso fala ainda dos

12 Referimo-nos ao Projecto Reguleducnetwork – «Mudanças nos modos de regulação e produção social

das desigualdades nos sistemas educativos: uma comparação europeia» em que se envolveram cinco países europeus: Bélgica (só a comunidade francesa) França, Hungria, Portugal e Reino Unido (só Inglaterra) e do qual resultaram cinco relatórios sobre a evolução dos modos de regulação institucional

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efeitos operados nos três níveis de regulação (transnacional, nacional e local) e refere-se ao efeito de contaminação patente na transferência de conceitos, de políticas e de medidas operacionalizadas em diferentes países, resultantes tanto da europeização, como da mundialização.

Segundo este autor, as alterações nos modos de regulação fazem-se sentir, em Portugal (como noutros países) pelo efeito da regulação transnacional, mas também das mutações políticas e sociais internas. Neste contexto, analisa as políticas de reestruturação do serviço público de educação (orientadas para a alteração dos modos de regulação estatal) nas perspectivas diacrónica e sincrónica. Por um lado (perspectiva diacrónica), considera que a situação actual no domínio da regulação nacional é o resultado de «um processo de sedimentação normativa» em que se sobrepõem novas regras, orientações e reformas às práticas e estruturas antigas que acabam por permanecer, ainda que «travestidas» (Barroso, 2006b: 53). Por outro (perspectiva sincrónica), realça a introdução de discursos e práticas descentralizadoras no sistema educativo, tanto por via de regulação transnacional como pelas mudanças históricas na sociedade portuguesa. Desta sobreposição de diferentes lógicas, discursos e práticas resultam políticas educativas de carácter ambíguo e compósito, caracterizadas pelo seu

hibridismo. Barroso cita Popkewitz para esclarecer a utilização deste conceito, no sentido de sublinhar os aspectos plurais e mistos das reformas educativas e marcar os novos modos de as entender e de as analisar:

(nos quais se incluiu a descentralização) e das políticas de igualdade de oportunidades em cada um dos países e um relatório síntese de análise comparativa das convergências e das divergências. Com a comparação do desenvolvimento da regulação das políticas públicas na educação secundária nestes países pretendeu-se analisar o impacto das transformações na organização local da escolarização, «incluindo o modo como os actores locais intervêm no processo de reprodução e produção das desigualdades e da segregação escolares» (Barroso, 2006a: 28). O trabalho desenvolvido em Portugal teve a coordenação de João Barroso e abrangeu vários estudos empíricos dos quais salientamos «A intervenção do município na regulação local da educação» (Pinhal, 2006: 100-128). Pinhal, na sequência da investigação desenvolvida no âmbito do seu doutoramento, centrou a atenção nas funções e nas actividades de um município da área metropolitana de Lisboa, no sentido de esclarecer como uma estrutura da administração descentralizada actua no processo de regulação institucional do sistema educativo ao nível local. As suas conclusões levam-no a identificar algumas características dos modos de regulação institucional dos municípios: a) «uma regulação local centralmente condicionada» (as autarquias como operadores locais das normas centrais, salientando-se as peculiaridades destes processos); b) «uma regulação educativa nas margens das escolas» (as autarquias desenvolvem a sua intervenção na regulação do sistema educativo na base da negociação, no «jogo político» entre o central e o local, rejeitando de um modo geral a intromissão na gestão da escola); c) «uma regulação informal difusa» (a autarquia como uma instância de regulação intermédia, com uma crescente intervenção no campo educativo pelo o exercício das «não- competências») (Pinhal, 2006: 125-128).

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Esta ideia de sobreposição ou hibridismo no modo como são concebidas e vistas as reformas educativas obriga a repensar as concepções binárias, emergentes no século XIX, de estado/sociedade (sociedade civil), centralização/descentralização, objectivo/subjectivo e global/local que guiaram as análises dos programas liberais e de esquerda de reforma (Barroso, 2006b: 54, citando Popkewitz, 2000: 172).

Esse hibridismo tanto se manifesta na relação entre países (na forma como estabelece a relação directa entre a globalização e a regionalização como algo complexo, múltiplo, contingente e não linear) como também no mesmo país (no modo como se associam regulações provenientes de modelos diferentes). Podemos falar no caso português da coexistência de modos de regulação aparentemente contraditórios: desenvolvem-se estratégias e práticas de controlo próprias de uma regulação burocrática e centralizada, a par da promoção da descentralização e da autonomia institucional, características dos processos de auto-regulação pelo mercado (Barroso, 2006b: 54, citando Amaral & Magalhães, 2001).

Neste contexto de análise, entendemos por regulação transnacional «o conjunto de normas, discursos e instrumentos (procedimentos, técnicas, materiais diversos, etc.) que são produzidos e circulam nos fóruns de decisão e nas consultas internacionais no domínio da educação, e que são tomados pelos políticos e funcionários ou especialistas nacionais como “obrigação” ou “legitimação” para adoptarem ou proporem decisões ao nível do funcionamento do sistema educativo» (Barroso, 2006b: 44-45). Segundo Barroso, este nível de regulação parte frequentemente dos países centrais e estende-se aos países periféricos e semiperiféricos, num quadro de dependências e de constrangimentos de vária natureza que se integram nos chamados «efeitos da globalização». Também resulta da acção de estruturas supranacionais – União Europeia (UE) – que mesmo não assumindo um poder de decisão em matéria educativa têm uma intervenção marcante no controlo e na coordenação das políticas através das regras e dos financiamentos. Lascoumes e Le Galès (2007) referem esta regulação transnacional como a governança europeia13, em que nas últimas décadas «a União Europeia

13 Lascoumes e Le Galès entendem por governança europeia «um sistema político original que tem três

traços principais: a interpenetração de diferentes níveis de governação (Parlamento, Conferências intergovernamentais, Comissão); a diversidade de actores e interesses organizados não estatais (mais ou menos estruturados em redes); um conjunto de instâncias e de práticas de negociação produzindo acordos que se impõem aos membros. A União Europeia tornou-se uma «polity». A Comissão Europeia e o Parlamento jogam um papel de empreendedores políticos e criam a aliança com os Estados e os actores não estatais. Assim fazendo, a Comissão contribui para a organização progressiva de um sistema político transnacional (Lascoumes & Le Galès, 2007: 22-23).

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produziu, de forma original e gradual, políticas públicas, normas e procedimentos adequados aos seus Estados-membros» (Lascoumes & Le Galès, 2007: 23).

Através dos fundos estruturais são as políticas públicas que se europeízam e se regionalizam em diferentes escalas de acção pública: «assistimos à afirmação de uma política regional europeia, baseada na concessão de fundos estruturais e cujo objectivo é lutar contra as desigualdades territoriais no interior da UE a fim de garantir a sua “coesão económica e social”» (Hassenteufel, 2008: 17). Nóvoa, a propósito da regulação transnacional à escala europeia, refere o seguinte:

O meu argumento é o de que a Europa funciona como um ideal regulatório que tem tendência a influenciar, e até a organizar, as políticas nacionais. Parece-me óbvio que a «homogeneização» não acontecerá. O debate acerca da diversidade dos sistemas educativos nacionais é quase uma tautologia, ainda que tal não acabe com algumas tendências no sentido da definição de metas comuns, estratégias semelhantes e, por isso mesmo, políticas idênticas. (…) A complexidade do debate reclama a utilização de outras abordagens e instrumentos conceptuais. É inútil reproduzir distinções e dicotomias que são incapazes de gerar novos entendimentos. Devemos evitar considerar estas questões como se se tratasse de um conflito entre os «estados nacionais» e as «Instituições europeias». Não se trata de um jogo de soma zero no qual a atribuição de mais poderes à «Europa» resulta automaticamente no enfraquecimento do «Estado-nação», ou vice- versa; esta concepção aritmética do poder está completamente errada (Nóvoa, 2002: 133-134).

Há também outras formas mais subtis e informais de se exercer esta regulação transnacional. Podemos referir os programas de cooperação, apoio, investigação e desenvolvimento com origem em diferentes organismos internacionais (Banco Mundial, OCDE, UNESCO, UE, Conselho da Europa …). Estes programas surgem como exemplos (com diagnósticos, metodologias, soluções próprias) a que recorrem os especialistas dos diferentes países no sentido de encontrarem soluções para os diversos problemas. Assiste-se à contaminação de conceitos, de políticas postas em prática em diferentes países, explicável na opinião de Walford, pela intervenção de funcionários, de membros de governo e de educadores que importam um modelo educativo de um determinado país e o aplicam ao seu próprio sistema (Barroso, 2006b: 46, citando Walford, 2001). Schriewer considera que o «sucesso» deste «empréstimo de políticas públicas» se deve à externalização, à «difusão global de modelos transnacionais e estandardizados do desenvolvimento e da educação» (Schriewer, 2001: 20).

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O conceito de externalização, por seu turno, privilegia o papel dos receptores. Este conceito está enraizado numa teoria de processos de modernização da sociedade, no âmbito da qual se verificou a formação de um sistema educativo complementar ao processo de diferenciação e consolidação de outros sistemas funcionais da sociedade. (…) O conceito de externalização convida, portanto, a que se coloque no centro da atenção analítica a recepção interpretativa e a transformação das circunstâncias internacionais, dos corpos de conhecimento e dos modelos educacionais nos discursos sobre educação em diferentes contextos sociais (Schriewer, 2001: 20-21).

Segundo Ball, esta contaminação e este «empréstimo», apesar de por vezes significarem um exercício retórico de legitimação política, outras vezes traduzem uma real convergência de finalidades políticas mais amplas (Barroso, 2006b: 47, citando Ball, 1998; consultar Charlot, 2007, 132-135). Vários estudos comparados de âmbito internacional, desenvolvidos na perspectiva das políticas públicas, põem em evidência essa convergência na alteração dos modos de regulação dos vários sistemas educativos à escala transnacional, influência externa sentida mais na tomada de decisão e no controlo da sua concretização do que propriamente na imposição de modelos e de soluções comuns14. Barroso (2006a) e Derouet (2002) dão-nos o exemplo dos estudos comparados sobre a intervenção da OCDE nos países do centro e do leste da Europa. Referem-se às políticas de descentralização reiteradas pelas organizações internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, e reconhecem tratar-se de uma problemática internacional.

14 Referimo-nos a vários estudos comparados desenvolvidos em países europeus e nos países da OCDE.

Em primeiro lugar, indicamos um conjunto de estudos comparativos divulgados no primeiro número da Revue Internationale de Sociologie de L’Éducation - Éducation et Société (1998) dedicados à Educação, ao Estado e ao Local, reflexões sobre os problemas postos pela pilotagem da acção pública e a recomposição do Estado: «por um lado, a transformação das formas de controlo estatal não significa o seu enfraquecimento, por outro, um movimento de centralização acompanha muitas vezes um movimento de descentralização» (van Haecht, 1998: 40). Em segundo lugar, referenciamos o Projecto Reguleducnetwork – «Changes in regulation modes and social production of inequalities in education systems: a European comparison» (2002) (anteriormente abordado) e que abrangeu a temática da descentralização. Em terceiro lugar, indicamos os estudos dirigidos por Bajomi & Derouet (2002) sobre «La décentralisation de l’éducation dans six pays autrefois communistes» em que participaram seis países – Hungria, Polónia, Letónia, Roménia, Rússia, República Checa, dos quais resultaram várias abordagens sobre a descentralização e o poder do Estado nesses países e a influência das organizações internacionais em todos esses processos. Em quarto lugar, aludimos aos estudos comparados que envolveram trinta e nove países da OCDE e alguns países emergentes em que participou Mons, sob a designação de «Décentralisation en éducation, équité et efficacité des systèmes éducatifs: l’éclairage international du programme d’évaluation PISA-OCDE», dos quais resultaram elementos reflexivos sobre a generalização das políticas de descentralização na OCDE e as várias tipologias existentes. Estes estudos e outros desenvolvidos por Mons (2007) com base na avaliação das performances escolares dos alunos (PISA) mostram que o bom desempenho destes não passa por um «esquema totalmente descentralizado ou, ao contrário, rigorosamente unificado. Só uma articulação complexa de atribuições geradas pelo governo central e de funções delegadas aos actores locais permite atingir os melhores resultados» (Mons, 2007: 80).

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Estes sistemas de multirregulação funcionam em diferentes níveis, espaços e instâncias (de regulação) das políticas e da acção públicas na educação. Enquadram-se nos processos de recomposição do Estado em que a reestruturação dos modos de intervenção estatal se processa em diferentes escalas. As mudanças que se operaram nos modos de governar a educação fazem-se em espaços de regulação transnacional, nacional e local. Como nos lembram Lascoumes e Le Galès (2007: 5), a multiplicação das fontes de influência (que ultrapassam o quadro nacional) não significa mecanicamente o enfraquecimento da intervenção do Estado, mas antes a sua

recomposição e o reequacionamento dos seus processos de regulação. Nesta perspectiva de análise entendemos por regulação nacional «o modo como as autoridades públicas (neste caso o Estado e a sua Administração) exercem a coordenação, o controlo e a influência sobre o sistema educativo, orientando, através de normas, injunções e constrangimentos o contexto da acção dos diferentes actores sociais e seus resultados» (Barroso, 2006b: 50).