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Instrumentação da acção pública

CAPÍTULO I – A ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: ACÇÃO PÚBLICA,

2. Regulação das políticas públicas

2.2. Instrumentação da acção pública

Os instrumentos de regulação da acção pública são, desde há muito, fonte de interesse da sociologia política, principalmente dos autores que trabalham as tecnologias de governo. Mas a sua abordagem tem sido feita mais numa perspectiva funcionalista, no sentido de se considerar a escolha dos instrumentos de regulação e o seu modo operatório como questões técnicas ou então como tema lateral relativamente a outras variáveis como «as instituições, os interesses dos actores ou as suas crenças» (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 11, citando Sabatier, 2000). Lascoumes e Le Galès, na linha dos estudos da acção pública e do Estado desenvolvidos por Weber15 e por Foucault16, e no seguimento das abordagens de outras áreas disciplinares17, propõem-

15 Max Weber, na sua análise das formas de exercício de poder, sublinhou a importância dos dispositivos

no desenvolvimento das sociedades capitalistas e automatizou as tecnologias de governo relativamente às teorias clássicas, orientadas para a soberania e legitimidade dos governantes. Neste contexto de análise, Lascoumes & Le Galès consideram que Weber foi o autor da «primeira problematização do papel dos instrumentos de acção pública, encarando-os como técnicas de dominação» (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 16).

16 Michel Foucault retomou a análise de Weber e sublinhou a importância do que chamou «processos

técnicos» do poder. Propõe o programa de estudos da governamentalidade para trabalhar «por um lado, as formas racionais, os processos técnicos, as instrumentações através das quais ela [governamentalidade] se exerce. e por outro as entradas estratégicas que tornam instáveis e reversíveis as relações de poder que elas devem assegurar» (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 17, citando Foucault, 1994). Segundo Foucault,a

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nos a entrada pelos instrumentos e pela instrumentação da acção pública no sentido de analisarmos e compreendermos as razões que levaram à escolha de um determinado instrumento e não de outro, mas também de averiguarmos e de compreendermos os efeitos produzidos por essa mesma escolha. Esta abordagem teórica permite-nos ultrapassar a perspectiva dos instrumentos de acção pública como «caixa de utensílios» das políticas públicas (perspectiva funcionalista) e avançar para a análise política desses mesmos instrumentos como reveladores dos processos de recomposição do Estado.

Esta forma de entender os instrumentos de regulação tanto decorre de uma mudança da realidade, das alterações experimentadas pelo Estado contemporâneo nas últimas décadas, como das alterações das formas de apreender e de analisar essa mesma realidade no que diz respeito aos campos teóricos e metodológicos. Dito de outro modo, a perspectiva de análise proposta pelos autores da obra Gouverner par les instruments orienta para «uma problematização particular da entrada, na medida em que hierarquiza as variáveis e pode até induzir a um sistema explicativo» (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 33; consultar Estèbe, 2004); pode contribuir desta forma para compreender os «novos instrumentos»18 como modos de governar uma sociedade complexa e fragmentada em que o Estado assume cada vez mais o seu papel de regulador da acção

questão central não reside tanto na natureza do Estado (democrático ou autoritário), mas mais no processo de «estatização da sociedade, o mesmo será dizer, do desenvolvimento de dispositivos concretos, de práticas que funcionem mais pela disciplina do que pelo constrangimento e enquadrem as acções e as representações de todos os actores sociais» (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 17). Contrariamente à perspectiva tradicional de um poder descendente, autoritário e punitivo, Foucault propõe uma concepção disciplinar baseada em técnicas específicas de enquadramento dos indivíduos, que permita à distância controlar e vigiar as condutas. É por esta razão que Lascoumes e Le Galès entendem que a instrumentação está no centro da governamentalidade.

17 Para a construção da perspectiva de análise dos instrumentos e da instrumentação da acção pública,

Lascoumes e Le Galès (2004a: 13-16) mobilizam muitos dos estudos desenvolvidos em diferentes áreas disciplinares de autores que se interessaram pela entrada teórica dos instrumentos e da instrumentação, nomeadamente na história (Elias, 1985), na sociologia das ciências (Callon & Latour, 1988), nas ciências da gestão (Weick, 1979; Berry, 1983; Moisdon, 1997; Maugeri, 2000; Tripier, 2003), na sociologia do trabalho (Pillon & Vatin, 2003; Dodier, 1995) e na sociologia jurídica (Rottleuthner, 1985; Morand, 1991).

18 Lascoumes e Le Galès apoiaram-se nos trabalhos de Christopher Hood (sobre tipologias de

instrumentos de acção pública) para identificarem cinco tipos de instrumentos referenciados em função do tipo de relação política e do tipo de legitimidade que estabelecem. Consideram as seguintes tipologias: legislativas e regulamentares; económicas e fiscais; convencionais e incitativas; informativas e comunicacionais; normas e standards – Best practices. Estabelecem a diferença entre os dois primeiros tipos e os restantes: aos dois primeiros chamam tradicionais e integram-nos em formas legais rotineiras de «comando e controlo»; aos restantes três tipos chamam-lhes «novos instrumentos», pois propõem formas de regulação pública menos dirigista (baseadas na comunicação, na concertação e no conhecimento) de «governar por contrato» (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 360-363).

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pública através de meios menos dirigistas, baseados na comunicação e na concertação, em que o conhecimento tem um papel marcante.

A definição do instrumento de acção pública como «um dispositivo técnico de vocação genérica, portador de uma concepção específica da relação política/sociedade e sustentado por uma concepção de regulação» (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 14; 2004b: 267-275; consultar também Halpern & Le Galès, 2011) esclarece o sentido sociológico do termo, evidenciando o seu cariz institucional e a sua carga axiológica, portadores de interpretações do social e de concepções precisas dos modos de regulação. Os instrumentos são instituições pois constituem um conjunto de normas e de procedimentos que orientam e governam as condutas dos actores e das organizações e enquadram (na perspectiva da estabilidade) a acção colectiva, (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 15, citando North, 1990) através de matrizes cognitivas e normativas agregadoras de valores, crenças e práticas. Os instrumentos não são redutíveis a uma racionalidade técnica nem são neutros. A sua intencionalidade joga-se nos objectos fixados, nos referenciais cognitivos e normativos, em processos plurais de regulação como estruturantes da acção pública segundo uma lógica que lhes pertence. Têm uma história que se desenha no passado da política e/ou de uma medida política de um determinado sector (Muller, 2004a)19 (dando-nos a perspectiva diacrónica) que de algum modo orienta e influencia a escolha de um determinado instrumento e não de outro: «Cada instrumento tem uma história a as suas propriedades são indissociáveis das finalidades que lhe são atribuídas» (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 15). São reveladores privilegiados do tempo e do espaço do passado, da historicidade20 (Gadamer, 1988) dos processos políticos, do modo como se apresenta a memória dos homens e das coisas, da

19 Adoptamos o conceito de sector na perspectiva que lhe é atribuída por Muller (2004a): «Podemos

definir sector como uma estrutura vertical de papéis sociais (geralmente profissionais) que fixam as regras de funcionamento, de elaboração das normas e dos valores específicos, de selecção de elites e de delimitação de fronteiras» (Muller, 2004a: 407). Na perspectiva de análise das políticas e da acção pública, ao falarmos de sector educativo referimo-nos ao conjunto de problemas associados (formal e informalmente), a um alargado leque de populações, de actores e de instituições.

20 Usamos o conceito de historicidade na acepção dada por Gadamer: «Historicidade significa então a

constituição intrínseca do espírito humano que, ao contrário de umintelecto infinito, não aprende de uma só vez tudo o que é, mas, pelo contrário, toma consciência da sua própria situação histórica (Gadamer, 1988: 101).

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sedimentação histórica num dado sector, da genealogia21 desses mesmos processos políticos; mas também projecta e prevê (em parte) a organização do tempo e do espaço a médio e a longo prazo, os jogos dos actores, as mudanças da acção pública e, consequentemente, da reorganização do Estado.

Encarar a acção pública pelo ângulo dos instrumentos de regulação que estruturam os seus programas sectoriais, como os da educação, significa antes de mais analisar a escolha e a combinação desses mesmos instrumentos, ou melhor, observar e estudar as formas diversas de instrumentação da acção pública. Lascoumes e Le Galès definem este conceito da seguinte forma:

Entendemos por «instrumentação da acção pública» o conjunto de problemas colocados pela escolha e pelo uso dos utensílios (as técnicas, os meios de operar, os dispositivos) que permitem materializar e operacionalizar a acção governamental. Trata-se não só de compreender as razões que levam a preferir um tal instrumento, em vez de outro, mas também a considerar os efeitos produzidos por essa escolha (Lascoumes & Le Galès, 2004a: 12).

A centralidade do conceito de instrumentação da acção pública concretiza-se na «teorização mais ou menos explícita da relação governante/governado. Cada instrumento é uma forma condensada de saber sobre o poder social e as formas de o exercer» (Lascoumes & Le Galès, 2007: 105). A instrumentação é uma questão política, já que uma determinada opção e uma determinada estratégia podem originar conflitos políticos que estruturam (em parte) os processos e os seus resultados. Assim, quanto mais a acção pública se define pelos seus instrumentos, mais a instrumentação põe em relevo os conflitos entre os diferentes actores, interesses e organizações.

Este modelo de análise da acção pública proposto por Lascoumes e Le Galès é sistematizado no pentágono das políticas públicas (figura 1.1), em que se propõe a articulação dos cinco elementos estruturantes de qualquer política pública: os actores, as representações, as instituições, os processos e os resultados. A interface teórica e metodológica entre os conceitos de instrumento/instrumentação e o modelo proposto permite-nos observar e analisar o programa de institucionalização dos CME nas suas sequências de acção pública (a definição da agenda política, a decisão política e a

21 A perspectiva de análise das políticas públicas retoma o conceito de genealogia desenvolvido por

Foucault a partir de Nietzsche (Ó, 2003: 12-15) para marcar a temporalidade e a historicidade dos processos políticos.

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operacionalização da política)22, dando uma especial atenção aos seguintes aspectos: à historicidade dos processos políticos; à construção histórica das ordens locais e aos processos de dependência do caminho23 (path dependency); às representações e às configurações da política nos diferentes espaços locais; ao papel do conhecimento como processo social que estrutura essas mesmas representações; aos mecanismos de multirregulação em diferentes escalas de acção pública; aos sistemas de actores, às suas dinâmicas, aos seus conflitos e aos seus paradoxos.